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A Epígrafe

 Autor: Marcos Valadares  Tópicos: Ficção  Editora: Instituto Mises Portugal  Idioma: Português
 Sinopse::

No dia seguinte ao quase transtorno causado no busto de Camões por Benita, a Biblioteca Comunitária de Vila Nova de Gaia estava durante aquela tarde bem mais tranquila. Enquanto os usuários passeavam por entre as prateleiras ou estavam sentados lendo algo, Joana Rosa estava organizando os livros no seu balcão que tinham acabado de ser devolvidos. Elegante como de costume, dessa vez ela usava uma saia preta e plissada até a altura dos joelhos, com outra camisa branca com botões de madrepérola, mas o mesmo lenço de seda e o mesmo sobretudo na cor azul real. E eis que enquanto ela organizava os livros para já devolvê-los para as prateleiras, surge um usuário querendo pegar um livro. Se tratava de um homem de cabelos brancos e olhos verdes, com a pele já enrugada e óculos de casco de tartaruga, provavelmente por volta dos 75 anos. Ele vestia um fato tweed em uma cor cinza e por cima de sua camisa branca uma gravata regimental de listras azuis e verdes. Embaixo de seu braço um livro de José Saramago de título Levantado do Chão. Ele se aproxima da bibliotecária, sorri, põe o livro sobre o balcão e pergunta a Joana:

 

  • Tu já leste este livro?

 

E ela responde com uma ar tristonho:

 

  • Não o li ainda. Por quê?

 

  • Porque eu queria saber se realmente é bom e o que tu consideraste da história.

 

  • Compreendo, Saramago tem um prêmio Nobel, então mesmo que tu não goste, é uma leitura que tem sua importância, vou dar uma olhada por entre as páginas.

 

Então, ao abrir o livro, Joana depara com a epígrafe posta pelo autor antes de começar a história, ela arregalou seus olhos por detrás dos óculos redondos de armação dourada e lê em voz alta:

 

  • “E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infância, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?”

ALMEIDA GARRETT

 

Após terminar de ler, Joana sente um enjoo leve e o homem, de nome Pedro Gomes, pergunta após ler o crachá da bibliotecária:

 

  • Tu estás bem, Joana?

 

E ela responde a ele rindo nervosamente:

 

  • Sim!

 

  • O que achaste do que acabou de ler, minha jovem?

 

  • Eu gostaria de saber primeiro o que achastes…

 

  • Tudo bem, eu creio que é um trecho muito inteligente, pois afinal de contas, para alguém ganhar, outro tem que perder!

 

E a bibliotecária diz então olhando nos olhos do usuário da biblioteca:

 

  • Não é bem assim… Sente-se aqui que lhe explico melhor…

 

Sendo assim, Pedro senta-se e Joana diz:

 

  • Vamos começar, o número de pessoas condenadas à miséria para que haja um rico…

 

  • Sim, afinal de contas, o ganho de um tem que vir de algum lugar…

 

  • Lhe pergunto, e se não houvessem ricos, como estariam essas pessoas?

 

Pedro então põe a mão direita sob a testa e olhando para o chão começa a pensar no dizer, quando depois de uma dezena de segundos ele solta:

 

  • Pois então, a renda que estaria com os ricos estaria com as outras pessoas…

 

E a bibliotecária diz em tom levemente desafiador:

 

  • Será mesmo?

 

  • Sim…

 

  • Mesmo?

 

  • O que tu me dizes, Joana? Já que dúvidas tanto…

 

  • Que essa riqueza estaria toda dissipada e logo consumida se fosse distribuída aos pobres do mundo ou da nação…

 

  • Como assim?

 

  • Que essas pessoas gastariam os recursos em suas necessidades e não na geração de mais riquezas e logo estariam mais pobres do que com pessoas ricas existindo, pois são os bem abastados que fazem com que se possa multiplicar a riqueza, que é distribuída através da contratação de trabalhadores e consumo por parte deles.

 

  • Mas aí é que está, Joana, eles não tem que explorar os trabalhadores pobres para serem ricos?

 

  • Na verdade, não há exploração, no máximo abusos em casos pontuais, mas não exploração…

 

  • Como assim?

 

  • Seria exploração se fosse escravidão, que é algo violento e involuntário, um trabalhador recebe pagamento em troca de seus serviços e apenas trabalha naquele serviço porque o desgaste dele é inferior na mente dele em relação ao gosto de receber aquela quantia de dinheiro no fim do mês como salário. Caso contrário, ele procuraria outro emprego ou ficaria em casa.

 

  • Certo, você é bibliotecária e sei que não é fácil conseguir ir para outra biblioteca trabalhar, digamos que eu sou o administrador daqui e resolvi aproveitar disso para te colocar para trabalhar por jornadas longas, incluindo os fins de semana e feriados. Como você não tem muita alternativa, tu aceitas a contra gosto e eu não me importo ou até me divirto ao ver tu sofreres no fim das contas. Aí é que está, Joana, o que tu dizes disso?

 

Joana então com um ar estranho diz:

 

  • Não seria exploração, seria um abuso, mas não uma exploração.

 

  • Certo, e o que tu podes fazer contra o abuso fora do estado?

 

  • Posso falar da minha experiência de trabalho em sites acerca disso.

 

  • Mas e se estiver precisando do dinheiro e não puder pedir demissão? E mesmo assim, como outros empregadores vão te contratar se você ficar reclamando publicamente de lugares em que trabalhou?

 

  • Tá, eu sei que estaria como o elo mais fraco, mas enquanto aceito tal situação, é porque o dinheiro que é pago vale mais para mim do que qualquer outro incômodo, se eu não aguentar eu prefiro ficar de pijamas em casa se for o caso.

 

  • Certo…

 

  • Enfim, ninguém é pobre porque alguém é rico, mas sempre alguém é rico porque outro também é rico.

 

  • Me explique isso, por favor…

 

  • É porque nas relações de mercado, ambos os lados, o ofertante e aquele que procura por bens e serviços, ganham quando há as transações. Para alguém ser rico às custas da pobreza alheia não é por participação no mercado, mas sim por espoliação. Logo, no mercado, ninguém é pobre porque o outro é rico, mas sim porque não consegue as oportunidades adequadas de gerar valor naquele momento, local e com as habilidades certas que façam com que enriqueça, ou então, porque não procura por isso ativamente…

 

  • Mas o quê? Com tanta gente pobre por aí, tu dizes que é uma questão de oportunidades na hora, lugar e habilidades certas?

 

  • Sim, infelizmente a maioria das pessoas não sabem aproveitar isso adequadamente, se soubessem, estariam lutando de modo mais adequado pelo seu conforto. Mas é claro, isso não significa que todos serão milionários ou bilionários, mas significa que terão conforto. Só que tem um detalhe que não fica tão claro à primeira vista.

 

  • Qual?

 

  • A Liberdade de se ser a pessoa certa, no lugar certo e na hora certa, não adianta de nada se não existe esse princípio.

 

  • Como se daria isso?

 

  • Com mais Liberdade para empreender, com menos burocracia, menos impostos, menos barreiras para entrar em um mercado.

 

  • Mas me diga, por que alguém é rico porque o outro é rico?

 

  • Pedro, porque quando uma pessoa é rica, ela investe, consome e faz outras coisas que amplificam a riqueza por onde passa, isso tudo gera renda, que também é investida, consumida e gera um ciclo virtuoso que infelizmente muitas vezes é parado devido ao ruído gerado pelas interferências estatais.

 

Então Pedro ajeita a gravata e diz:

 

  • E a questão da desmoralização?

 

  • Pelo o que sei, não há nada mais desmoralizador que a pobreza, especialmente a gerada por interferência estatal, vide o caso de Cuba, onde mulheres prostituem-se para turistas em troca de um sabonete. Essa tentação não existe entre as mulheres de Mônaco pelo o que eu sei. Pois quando o dinheiro some, a honra e a moral são as mais ameaçadas devido a questão da sobrevivência. Por isso inclusive a violência é maior onde há mais pobreza geralmente.

 

  • E o que será que ele quer dizer com infância?

 

  • Condenados à infância?

 

  • Isso…

 

  • Talvez seja a questão da dependência que as pessoas ficam quando não conseguem emprego, geralmente das próprias famílias e sim, isso é um problema terrível, só que a causa dele é justamente aquela, é a falta de Liberdade para se ser a pessoa certa, no lugar certo e na hora certa. São essas interferências que deixam a taxa de desemprego mais alta, pois não se investe tanto e não se contrata tanto.

 

  • Então estás a me dizer que a culpa disso tudo é do estado e não dos ricos?

 

  • Sim!

 

  • E quem controla o estado, Joana?

 

  • Demagogos em muitos casos.

 

  • E o que seria um demagogo para você, minha jovem?

 

  • Para isso terei que lhe explicar um princípios de filósofos gregos como Platão e Aristóteles baseado na questão dos vícios e das virtudes. Posso te explicar isso em outro dia quando voltares aqui para devolver o livro. Por enquanto creio que é melhor focar nesta epígrafe.

 

  • Certo!

 

  • Veja aqui, ele fala em os ricos condenarem os pobres a ignorância crapulosa para serem ricos. Qual seria o sentido disso, Pedro?

 

  • É tão simples, Joana… O conhecimento, que é o que realmente quebra a ignorância, levaria o povo às seguintes situações: primeira, o povo sairia da alienação e perceberia o quão explorado é, podendo levar a se revoltar contra isso. Segunda, o povo passaria a deter conhecimento em questões diversas que levariam ele a ascender socialmente, ameaçando o status quo da burguesia estabelecida. Além de que um povo ignorante é mais fácil de ser manipulado em praticamente todos os sentidos que possam beneficiar as classes dominantes.

 

Joana então olhava Pedro apoiada no balcão com a cabeça virada para cima com a mão direita apoiando a bochecha, enquanto sorria sem mostrar os dentes, assim como a Mona Lisa. Após dizer tudo aquilo que disse, Pedro solta a seguinte pergunta para a atenciosa bibliotecária:

 

  • Não concordas?

 

E ela responde com um ar de alegria que seria enfurecedor para muitos misturado com uma incrível calma:

 

  • Não…

 

  • Como não? Tu és uma bibliotecária e não uma socialite burguesa…

 

  • Por que deveria concordar por ser uma bibliotecária?

 

  • Porque uma bibliotecária é uma trabalhadora, não uma burguesa…

 

  • Pedro, posso lhe explicar o que penso da resposta da sua pergunta?

 

  • Claro, Joana!

 

  • Certo! O conhecimento realmente quebra a ignorância. Sim, ele levaria o povo a ascender socialmente em boa parte dos casos e isso realmente poderia mexer com o status quo, além de que de fato ele tornaria-se menos manipulável. Tudo isso é ótimo e maravilhoso!

 

  • Tu acabastes de concordar comigo e disse antes que não concorda. O que há de errado?

 

  • O que há de errado é que o povo não é explorado, pela questão que já disse anteriormente acerca de ninguém ser pobre porque alguém é rico, mas sim de que alguém sempre é rico por outro o ser, pois as relações de mercado são um ganha ganha. Quanto à manipulação, ela existe sim, mas ela não é pelo capitalismo, mas sim pelo socialismo.

 

  • Como assim?

 

  • Basta ver o que a maioria das pessoas pensam ou são educadas em instituições de ensino por aí, quase sempre há um ar de socialismo, de querer que o estado garanta coisas e os proteja. Enfim, meu caro, nem entro na questão da desgraça invencível ou da penúria absoluta, pois elas são praticamente redundâncias do que a epígrafe diz antes.

 

Pedro então apenas diz após ouvir a bibliotecária:

 

  • Registre logo o empréstimo do livro, por favor.

 

  • Você não quer levar nenhum outro?

 

  • Qual você sugere?

 

  • O Cálculo Econômico sob o Socialismo de Ludwig von Mises.

 

  • Por quê?

 

  • Porque este livro prova o quanto o socialismo é insustentável por praticamente matar o mercado e seus mecanismos, quanto mais livre melhor…

 

  • Onde já se viu, uma bibliotecária neoliberal…

 

Joana então ri e diz:

 

  • Leve, leia, e depois quando voltar aqui, me diga o que considera, aproveitamos para tratar das questões da democracia, da demagogia e outras questões.

 

  • Tudo bem, vou levar e ler.

 

Então Joana sorri e registra os empréstimos no sistema da biblioteca, entrega os livros a Pedro, que vai embora calmamente. A bibliotecária está novamente sozinha no balcão, ela põe um aviso de que estará sentada em uma poltrona reclinável, pega um exemplar da História de Heródoto e vai passar o tempo confortavelmente lendo até a chegada do próximo usuário interessado em levar um livro ou a ter que organizar as prateleiras, isso se não tiver que pedir para ninguém falar mais baixo ou fazer silêncio.

 

Fim…

Nota: As visões expressas em mises.pt não são necessariamente as do Instituto Mises Portugal.

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