Introdução
Entre 1933 e 1974, Portugal viveu sob um regime autoritário que ficou vulgarmente conhecido como “Estado Novo”, maioritariamente governado por António Oliveira de Salazar e, nos últimos anos, pelo seu sucessor Marcello Caetano. Muitas vezes visto como uma derivação do Fascismo de Mussolini ou mesmo do Nacional-Socialismo de Hitler, o Estado Novo (ou Salazarismo, como por vezes é chamado) caracterizou-se fortemente pelo totalitarismo, colectivismo, forte nacionalismo e, no seu caso particular, pela ausência de separação entre a Igreja Católica e o Estado. Este artigo pretende reflectir sobre a forma como o autor libertário Ludwig von Mises e a autora objectivista Ayn Rand abordariam o sistema do Estado Novo. Apesar de não ser segredo para ninguém que ambos o criticariam – uma vez que ambos foram vozes de referência para a Liberdade durante a primeira metade do século XX – os seus argumentos e objecções ao regime de Salazar seriam ligeiramente diferentes e centrar-se-iam em aspectos distintos. Os parágrafos que se seguem desenvolverão tal afirmação e tentarão justificá-la.
A Potencial Visão de Mises
Como economista, Ludwig von Mises analisaria o sistema do Estado Novo através do estudo do seu funcionamento económico. Mises era um defensor do Capitalismo Laissez-Faire um forte opositor do socialismo. O Estado Novo não era socialista – ou pelo menos não se identificava como tal – mas estava muito longe do ideal de Mises.
Mises opunha-se ao planeamento central e à intervenção do Estado na economia e, ao invés disso, defendia elementos como o lucro, o prejuízo e os preços de mercado como cruciais para a alocação efectiva de recursos e, consequentemente, para a alavancagem da inovação (Niles, 2024). O sistema económico do Estado Novo, pelo contrário, era extremamente intervencionista e, em alguns sectores, extremamente controlador dos preços, prática que resultou na falta de inovação, principalmente no sector agrícola (Mosca, 2007:353, 361). Era também muito adepto de políticas proteccionistas, que impediam a concorrência e o crescimento do capital e contribuíam para uma enorme falta de diversidade do lado da oferta (Mosca, 2007:361). Para entrar ainda mais em conflito com Mises, o Governo do Estado Novo baseou-se muito no planeamento central, criando os chamados “Planos de Fomento”, que se centravam apenas em sectores específicos e até incluíam projectos para as então colónias portuguesas, localizadas a quilómetros de distância, em África e na Ásia, onde a realidade era muito diferente da existente no Portugal metropolitano (Mosca, 2007:348-349).
Creio que estas seriam as duas principais objecções que Mises escreveria em relação a Salazar e ao Estado Novo. Rand seria mais abrangente.
A Potencial Visão de Rand
Ayn Rand concordaria com Mises no facto de o sistema económico do Estado Novo não ser bom, por depender demasiado da intervenção do Estado e não ter em conta políticas de mercado livre (Niles, 2024). No entanto, a autora usaria argumentos diferentes e iria mais longe na sua crítica, focando-se na desvalorização dos direitos individuais por parte de Salazar.
Relativamente à economia, Rand não era tão técnica como Mises. Em vez disso, acreditava que os sistemas económicos devem basear-se no “egoísmo” e permitir a cada indivíduo perseguir o seu próprio crescimento pessoal e interesses, bem como ser capaz de criar valor (Niles, 2024).
Uma das declarações de Salazar que ilustra muito bem o quanto os seus pontos de vista eram opostos aos de Rand é a seguinte – “De um ponto de vista nacional, importa reduzir as despesas privadas, não as despesas públicas” (Guerra, 2004:12). Salazar aplicou o que disse nesta declaração através da contenção das despesas das famílias, controlando a procura interna através de salários baixos e até obrigando os cidadãos a conterem o seu consumo privado através de potenciais punições por “terem um bom estilo de vida” (Mosca 2007:348-350). Para minimizar ainda mais a liberdade de escolha dos portugueses sobre o que consumiam ou não, o Governo tentou evitar ao máximo a circulação de produtos estrangeiros, nomeadamente no sector no sector alimentar (Mosca 2007:353). Por exemplo, um produto tão comum como a Coca Cola foi proibido durante o Estado Novo (Freire, 2023), assim como alguns filmes como “Lolita” ou “Laranja Mecânica” (Instituto +Liberdade, 2024). Em suma, era difícil para alguém perseguir a felicidade e o crescimento pessoal durante o Estado Novo, porque o Governo condicionava fortemente aquilo a que as pessoas tinham acesso e impedia-as de gastar os seus recursos como bem entendessem. Apesar de não existir qualquer proibição formal do empreendedorismo – algo que Rand elogiaria (Niles, 2024) – era também muito difícil ser empreendedor porque os salários miseráveis tornavam difícil investir e qualquer negócio deveria estar alinhado com os valores e objectivos oficiais do Estado.
As restrições económicas, porém, não eram o único instrumento de opressão de Salazar. Havia muito mais. Os media, por exemplo, eram altamente controlados pelo Estado e o seu funcionamento baseava-se principalmente em mecanismos de propaganda e repressão (Garcia et al, 2018:11). Se, por um lado, os órgãos de comunicação social eram manipulados para promover a agenda nacionalista, iliberal e ultraconservadora do Governo, por outro lado, existia uma uma prática significativa de censura em torno de mensagens que iam contra essa mesma agenda. Tal situação impedia que as pessoas tivessem livre acesso à informação ou a outro tipo de conteúdos – e, em última análise, de conhecer a verdade – e afectava também aqueles que, tinham interesse em trabalhar na área dos media. De facto, qualquer trabalhador era, de alguma forma, afectado por regras estabelecidas que iam explicitamente contra a concepção Randiana dos seres humanos como seres livres e individuais (Rand, 1967:2). Alguns dos trabalhadores mais afectados eram, por exemplo: a) as enfermeiras e assistentes de bordo, que estavam proibidas de casar; b) professoras, que precisavam de uma licença para casar e eram proibidas de casar com homens que recebiam um salário mais baixo; ou c) os taxistas e carteiros, que eram obrigados a usar um boné durante o trabalho Outras regras arbitrárias que não se referiam a profissões específicas mas à população em geral eram, por exemplo: a) a exigência de uma licença para andar de bicicleta ou usar um isqueiro b) a proibição do divórcio; c) a proibição de beijar em público; d) o serviço militar obrigatório, que podia resultar em ser enviado para a guerra colonial, querendo ou não (muitos homens acabaram por morrer e muitas famílias foram devastadas por isso) (Freire, 2023).
A infracção de qualquer uma destas regras podia resultar em processos policiais que, nos casos mais extremos, resultavam no envio de presos políticos para campos de trabalho nas colónias. Rand opor-se-ia a toda esta legislação, não só porque, como já foi referido, não permitia que os indivíduos se tornassem a melhor versão de si próprios, mas também porque se baseava em premissas altruístas, que afirmavam que as pessoas não deviam agir para si próprias mas para outra pessoa – neste caso, para servir a nação e o Estado (Rand, 1967:20).
Conclusão
Mises e Rand apontariam várias críticas ao sistema do Estado Novo. No entanto, como na maioria das situações, Mises focar-se-ia mais nos aspectos económicos do sistema, enquanto Rand se concentraria mais no papel do indivíduo – ou na inexistência dele. Independentemente das diferenças, os dois autores teriam se oposto ao colectivismo e ao totalitarismo que assolou a população portuguesa durante o Estado Salazarista.
Bibliografia
Freire (2023). Tinta espalhada, vida trancada: os pequenos “crimes” que davam cadeia no Estado Novo. SIC Notícias.
Garcia, J.L., Alves, T. & Léonard, Y. (2018). Salazar, o Estado Novo e os media. Leya.
Guerra, R. (2004). Salazar, o Pensamento Intemporal. Nova Arrancada.
Instituto +Liberdade. Censura Fora de Cena: Filmes censurados pelo Estado Novo.
Mosca, J. (2007). Salazar e a Política Económica do Estado Novo. Lusíada – Repositório das Universidades Lusíada.
Niles, R. (2024). Radical Criticism of Socialism – Bridging Mises and Ayn Rand. [Zoom Lecture].
Rand, A. (1967). What is Capitalism?. Second Renaissance Book Service.