Nos estados democráticos modernos, como o nosso, o debate sobre quem é naturalizado é essencialmente sinónimo do debate sobre quem tem o direito legal de votar.
A frase “Acho que devemos expandir o número de estrangeiros naturalizados”, é funcionalmente a mesma coisa que dizer “Acho que devemos expandir o número de estrangeiros que votam”. Não há diferença significativa entre as duas afirmações.
No Ocidente moderno, qualquer debate sobre cidadania é, em última análise, um debate sobre a regalia de votar. Os libertários defensores da imigração em massa tendem a ignorar isso e – muitas vezes de forma dissimulada – fingem que a migração é apenas uma forma de troca económica. Nos Estados Unidos, porém, como na maior parte do Ocidente, a naturalização geralmente é oferecida aos imigrantes depois de passarem por uma série de barreiras muito baixas. No caso da cidadania por nascimento, a naturalização é frequentemente dada a populações que podem ou não ser residentes a tempo inteiro.
Observadores mais honestos da imigração não negam que a imigração se torna politizada quando a naturalização se torna tão livremente disponível. Afinal de contas, os seres humanos nunca são unidades puramente económicas. São também actores políticos.
A politização da imigração imposta pela naturalização leva a oposição porque muitos residentes nativos concluem – com boas razões em muitos casos – que pessoas que são apenas minimamente apegadas a uma comunidade não devem ser membros votantes dela.
O problema em determinar um padrão para a participação política nas urnas era uma pergunta comum entre os primeiros libertários – pessoas que eram chamadas de “liberais” antes do século XX. Esses libertários opunham-se ao poder do Estado e apoiavam a propriedade privada, e também queriam expandir o tamanho do público votante. Mesmo esses reformadores radicais, no entanto, reconheceram a loucura de permitir que qualquer um e todos votassem, independentemente de terem ou não alguma “skin in the game“1. A prudência ditou que os participantes políticos precisavam estar, de alguma forma, investidos na comunidade.
Isso expôs um novo problema: como medimos até que ponto uma pessoa está ligada à comunidade? Historicamente, isso foi medido em termos de tributação e propriedade. Pode ser, no entanto, que, ao considerar o problema da naturalização de imigrantes, outras métricas sejam necessárias. De qualquer forma, a questão sobre a participação política não mudou fundamentalmente desde os primeiros dias dos reformadores libertários.
Locke e os Levellers: O Privilégio dos Contribuintes
Murray Rothbard referiu-se aos Levellers ingleses do século XVII como “o primeiro movimento de massa conscientemente libertário do mundo“. Eram oponentes ferrenhos do absolutismo monárquico e do autoritarismo cromwelliano que se seguiu. Opuseram-se ao mercantilismo, apoiaram o livre comércio e procuraram expandir a franquia2. Por outro lado, também acreditavam numa franquia limitada.
Há um debate hoje entre os historiadores sobre o quão limitada os Levellers pensavam que a franquia deveria ser. O historiador Ralph Raico sugere que os Levellers “eram um produto típico do liberalismo burguês e, de facto, favoreciam a restrição da franquia àqueles que pagavam impostos”. Os historiadores Roger Howell Jr. e David Brewster investigaram num jornal Leveller, “The Moderate”, para uma visão geral dos Levellers sobre quem constituiria “o povo” – isto é, as pessoas que deveriam votar. Howell e Brewster concluem:
Em muitos casos, “The Moderate” tendia a vincular “o povo” àqueles que fizeram algum tipo de contribuição para a sociedade, ou pelo menos o teriam feito em circunstâncias normais. Esses eram os indivíduos que apoiavam o governo por meio de impostos, alojavam tropas em suas casas quando necessário ou que estavam envolvidos em alguma ocupação remunerada.
John Locke, que provavelmente foi influenciado pelos Levellers, tinha opiniões semelhantes. O historiador Mark Goldie descreve a visão de Locke sobre a democracia desta maneira:
Aqui está um teórico da revolução e da soberania popular que mostrou pouco interesse na franquia. Ele próprio provavelmente nunca votou numa eleição parlamentar; e nunca reclamou disso. No parágrafo 213 do “Segundo Tratado”, alegremente convida o leitor a assumir um parlamento composto por uma “única pessoa hereditária”, “uma assembleia de nobreza hereditária” e “uma assembleia de representantes escolhidos pelo povo” – muito inglês e antidemocrático. Vários cientistas políticos ainda insistem piedosamente que Locke era implicitamente um democrata. No entanto, certamente não era um democrata de franquia.
Alguns posteriores comentaristas de Locke tentaram explicar as visões de Locke sobre a democracia, alegando que Locke era realmente um elitista cujas visões libertárias eram superficiais. Rothbard discorda e conclui que, após 1670, Locke era “um expoente libertário da auto-propriedade, dos direitos de propriedade e de uma economia de livre mercado”.
Além disso, como mostra o historiador Mark Knights, Locke era um grande defensor da “franquia do contribuinte”, ou o que Raico chama de “democracia dos contribuintes”.
Direitos de Propriedade Mais Importantes que “Direitos” Políticos
Isto era consistente com a filosofia geral de Locke, uma vez que, como observa Knights, Locke “não invocou direitos naturais ao discutir representação”. Ou seja, Locke, que absolutamente via a propriedade como uma questão de direitos naturais, não acreditava que mecanismos políticos como voto e representação parlamentar fossem uma questão de direitos naturais.
Uma divisão semelhante entre “direitos” políticos e direitos de propriedade é ecoada por Montesquieu. Para Montesquieu, há uma distinção entre o direito político da comunidade e o direito civil da propriedade privada. Como um académico jurista resume a visão de Montesquieu, “as leis políticas não devem de forma alguma reduzir a propriedade privada porque nenhum bem público é maior do que a manutenção da propriedade privada”.
Montesquieu, portanto, também procurou limitar a franquia aos proprietários de propriedades e, portanto, de acordo com Krzysztof Trzciński, “o acesso [ao voto] ainda dependia do estado de propriedade”.
Tanto para Locke quanto para Montesquieu, a propriedade privada era mais fundamental do que qualquer “direito” político, e isso exigia limitações prudenciais no acesso político que foram projectadas para favorecer a preservação da propriedade privada.3
Para esses libertários, a primazia da propriedade privada não permitia uma franquia irrestrita. Isso convidava ao abuso e à subversão da propriedade privada, e não para sua protecção.
O Triunfo da Democracia de Massa de Rousseau
Infelizmente, as visões modernas de democracia – mesmo entre autoproclamados libertários – colocam os direitos de propriedade abaixo dos “direitos” políticos, com resultados desastrosos.
Muito disso pode ser atribuído à imensa influência de Jean-Jacques Rousseau em quase todas as ideologias modernas. Rousseau era um inimigo intratável da propriedade privada e, no seu “Contrato Social”, um dos seus principais objectivos era subjugar toda a propriedade privada à chamada “vontade geral“. Essa “vontade” seria definida por toda a massa da população votando num estado de total igualdade política. Isso foi uma reversão da visão lockeana e colocou a política acima da propriedade. Assim, Trzciński conclui que o sistema de Rousseau “expandiu significativamente a liberdade política dos membros do Estado, mas ao mesmo tempo, curiosamente, limitou seus direitos de propriedade”.
Hoje, é a visão rousseauniana que prevalece, como tantas vezes é visto em tentativas implacáveis de subverter os verdadeiros direitos de propriedade natural à “vontade da maioria”. Já havia prevalecido na França na época de Frédéric Bastiat, o que levou Bastiat a descrever o Estado como “a grande entidade fictícia pela qual todos procuram viver às custas de todos os outros”.
Mesmo séculos depois de Locke, muitos liberais radicais permaneceram cautelosos com o sufrágio universal. Na Grã-Bretanha, a Lei de Reforma de 1832 expandiu muito a franquia, mas mesmo neste caso, os “recebedores de esmolas” foram excluídos e é difícil encontrar liberais / libertários que apoiassem uma franquia irrestrita. Em vez disso, a ideia por trás da reforma era expandir o voto para uma “franquia de chefe de família” de proprietários menores e para agregados familiares – não nos estamos a referir a um-homem-um-voto. Os reformadores imaginaram os novos eleitores como – nas palavras de um liberal – “pessoas residentes que têm algo demonstrável pela sua responsabilidade”.
Infelizmente, esse foco na propriedade privada acabaria por se evaporar do debate sobre a franquia.
Na segunda metade do século XIX, grande parte do continente já estava bem à frente da Grã-Bretanha, onde prevaleciam as ideias revolucionárias francesas de democracia. Na Alemanha de Bismarck, por exemplo, havia o sufrágio universal masculino décadas antes de ser adoptado na Grã-Bretanha. Provavelmente não é uma coincidência que seja na Alemanha Imperial que o moderno estado social nasceu. Bismarck entendeu como a democracia funcionava e inventou uma “rede de segurança” burocrática nacional como um passo necessário para obter apoio político do público votante.
Escusado será dizer que, nem na França, nem na Alemanha, a expansão inovadora do sufrágio realmente garantiu os direitos naturais do povo. Em vez disso, as maiorias dominantes em ambos os estados cultivaram a democracia como um meio para saquear os contribuintes.
Afinal Locke tinha razão.
Graças ao triunfo do pensamento social-democrata – ele próprio filho das ideologias rousseauniana e revolucionária francesa – vincular a franquia à propriedade é considerado hoje reaccionário e muito burguês. No entanto, permanece entre muitos eleitores o reconhecimento de que pode não ser prudente conceder acesso a direito de voto a toda e qualquer pessoa que esteja presente na sua comunidade física a qualquer momento. No espírito de Locke, Montesquieu e dos Levellers, persiste a noção de que os eleitores devem estar de alguma forma investidos na comunidade. Se não estão investidos monetariamente, de acordo com esse pensamento, então os eleitores devem pelo estar investidos culturalmente, ou por meio de algum tipo de laços históricos com a comunidade.
Como os primeiros libertários poderiam ter dito, isto não é uma questão de propriedade ou direitos naturais. É uma questão de política e prudência.
- Expressão inglesa que significa “ter algo a perder” (N. do T.). ↩︎
- Franquia (franchise): direito a voto nas eleições parlamentares (N. do T.). ↩︎
- Há algum debate sobre se Immanuel Kant conta ou não como um libertário. Kant foi influenciado em alguns aspectos por Rousseau, mas em questões de propriedade, Kant tendia a assumir uma posição libertária. Consequentemente, Kant junta-se a Locke e Montesquieu em favor de limitações à “cidadania activa” – com o que ele quer dizer participação política por meio de actividades como o voto – a fim de proteger a propriedade. De acordo com Trzciński, para Kant, “A possibilidade de adquirir uma ‘personalidade cívica’ completa tinha que ser ligada mais uma vez à obtenção da independência económica. A ideia kantiana de cidadania era uma negação do conceito de cidadania universal de Rousseau” … Ver Krzysztof Trzciński, “Cidadania na Europa: Os Principais Estágios de Desenvolvimento da Ideia e da Instituição”, Studia Europejskie – Estudos em Assuntos Europeus 25, nº 1, (2021): 18. ↩︎
Artigo publicado originalmente no Mises Institute.