O estudo das relações internacionais1 é fascinante para um anarcocapitalista por muitas razões, mas especialmente por duas. A primeira é que nos permite observar como, num ambiente anárquico, se podem construir ao longo do tempo regras estáveis e duradouras de paz, cooperação e comércio, ou seja, como se pode construir o direito sem um poder central monopolista encarregado de o implementar. O segundo é o facto de ser uma das poucas das chamadas ciências políticas onde ainda é preservado o estudo teórico do estado como entidade e onde o estudo da anarquia em todas as suas formas não se tornou uma área marginal, mas uma parte fundamental do núcleo duro da disciplina. Muitos livros e artigos deste ramo de pensamento ocupam-se do estudo da sociedade anárquica internacional, como os trabalhos de Wendt ou Bull, entre muitos outros. De facto, as principais escolas de relações internacionais, a realista e a liberal, divergem não sobre a existência da anarquia, mas sobre a forma de lidar com ela: com pactos ou tratados, no primeiro caso, ou com instituições internacionais que a moderem gradualmente, no segundo.
Numa inteligente discussão online foi-me dito que a situação anárquica da ordem internacional não era assim tão clara, uma vez que nesta ordem existem fenómenos de hegemonia segundo os quais existiriam alguns Estados mais poderosos do que a maioria, conhecidos na linguagem das relações internacionais como “Hegemónicas”, aos quais os Estados com menor capacidade de defesa se subordinariam e obedeceriam. Os “Hegemónicos” desempenhariam as funções de um estado convencional só que desta vez em âmbito internacional. A verdade é que o sistema internacional dá a aparência de ser ordenado e não funcionar como anarquia. Actualmente, os Estados cooperam pacificamente numa multiplicidade de domínios e os conflitos militares entre eles são quase inexistentes. Mas esta relativa paz na ordem mundial deve-se precisamente ao facto de esta funcionar em anarquia e, como dizia o velho Proudhon, a anarquia é a mãe da ordem.
De facto, há chefes de estado que optam por organizar a riqueza que extraem dos seus povos para a guerra e a expansão do estado em maior medida do que outros, o que leva alguns Estados a preferirem obedecer-lhes em vez de os enfrentarem. A sua força relativa depende dos recursos económicos e humanos que conseguem mobilizar, mas também da sua vontade de lutar. Já houve pequenos Estados muito agressivos e gigantes pacíficos, e isso mudou ao longo da história. Os mongóis, agora pacíficos, foram um povo brutal na Idade Média, enquanto os norte-coreanos, outrora pacíficos, são hoje, por graça dos seus governantes violentos, um estado pária. A estes Estados violentos juntam-se, por isso, Estados mais fracos, na esperança de que os primeiros os defendam de outros Estados violentos mais fracos, ou então para evitar problemas com esses Estados rufias. Daí as alianças, os eixos, as alianças e os blocos que ocorrem frequentemente na política internacional. Mas, mesmo assim, nunca houve uma situação de hegemonia a nível mundial. Mesmo no caso de um sistema bipolar imperfeito, como o que prevaleceu nos anos da Guerra Fria, prevaleceu uma situação de anarquia entre os dois blocos, em que nenhum conseguiu impor-se completamente sobre o outro. Estes blocos tinham, portanto, de funcionar sem uma instância superior que regulasse a sua conduta. Ainda hoje, num sistema de relativa hegemonia americana, vemos como os Estados Unidos não conseguem dominar todos os outros Estados ao mesmo tempo. De vez em quando, vemos a Rússia ou a China a puxar as barbas ao velho Tio Sam e muitos pequenos Estados, como a Moldávia2 ou as Filipinas, preferem trocar as suas lealdades e sentem-se mais protegidos pelos primeiros do que pelo poder americano, já em declínio. Se a anarquia existe em tempos de blocos ou hegemonias, existirá ainda mais em épocas como as de Vestefália, caracterizados por muitos actores estatais concorrentes sem que um deles se destaque claramente, como foi o caso da anárquica civilização europeia, à qual devemos muito do florescimento histórico do nosso continente.
O sistema internacional pode dar-nos boas pistas aos anarco-capitalistas sobre o funcionamento de um sistema na ausência de um regulador monopolista. Em primeiro lugar, podemos observar como os Estados existentes, procurando preservar a sua existência livre, estão alerta perante a possibilidade de uma ameaça externa que os possa privar da sua autonomia. Quando observam outro estado a aliar-se a outros ou a adoptar um comportamento potencialmente ameaçador, procuram alianças entre si para contrariar esse perigo. No sistema de Vestefália acima referido, os Estados faziam alianças sucessivas contra a Espanha, a França, o Reino Unido, a Prússia, etc., de maneira que foram capazes de neutralizar a cada momento a potência ameaçadora. Uma sociedade anarco-capitalista estaria também consciente das potenciais ameaças, internas ou externas, à sua liberdade e procuraria também formas de as contrariar. Alguns críticos do anarco-capitalismo pensam que uma sociedade assim ficaria inerte face à potencial emergência de um estado, ou de uma agência nozickiana dominante, mas, ao contrário dos nossos antepassados anarquistas pré-históricos, temos as ferramentas da história e a consciência, e saberíamos perceber quando tal ameaça existisse. Como dizem os historiadores dos Estados primitivos, esses pobres povos não sabiam no que se estavam a meter quando apareceram os primeiros chefes, pois não tinham história nem conhecimento de outras realidades geográficas (recomendo as obras do Professor Claessen sobre o assunto), mas, ao contrário deles, nós temos consciência e poderíamos agir preventivamente, exactamente como fazem os Estados perante um potencial agressor.
Podemos também aprender outro aspecto muito importante do funcionamento do sistema internacional: a utilização da exclusão e do boicote como instrumentos para alcançar a ordem. É verdade que os Estados recorreram muitas vezes à violência nas suas relações, mas não é menos verdade que, numa perspectiva histórica, o recurso à violência não foi o padrão dominante. Há dois séculos que o estado espanhol está em paz com os seus vizinhos continentais, e os anos de paz com eles superam em muito os anos de guerra. Actualmente, como já referimos, os conflitos entre Estados são quase inexistentes (as guerras são travadas no interior dos Estados, quer para se apoderarem de outros Estados, ou para a secessão interna). Além disso, observamos como o comércio, o turismo ou as transacções financeiras existem entre todos eles, sem necessidade de um poder centralizado. As cartas iam de um país para outro graças à anárquica União Postal Internacional (e hoje o correio electrónico ou os sítios Web graças a instituições semelhantes nestes domínios). Podemos divertir-nos com festivais interestatais anárquicos como a Eurovisão ou desfrutar das anárquicas ligas de futebol europeias, americanas ou mundiais (o estudo das Organizações Internacionais não governamentais que funcionam por exclusão com as suas próprias regras de auto-regulação, como as instituições desportivas internacionais – UEFA, FIFA, COI,… – , mereceria outro estudo, bem como as distorções causadas pelos Estados quando querem intervir nessas organizações). O comércio internacional funciona essencialmente em anarquia, sendo a expulsão ou o boicote as principais fontes de ordem. A Lex Mercatoria medieval funcionava através da perda de reputação do comerciante incumpridor e, consequentemente, da sua expulsão dos mercados, da mesma forma que as grandes plataformas de comércio internacional, como a Amazon ou a Alibaba, funcionam através da Internet. Estas plataformas não dispõem de um tribunal estatal comum ao comprador e ao vendedor, que seja capaz de estabelecer a justiça em caso de incumprimento.
A ordem internacional também nos pode ensinar que, mesmo na ausência de uma lei comum para todos os povos, somos capazes de conviver em paz, tal como numa sociedade anarco-capitalista onde cada grupo da sua comunidade pode estabelecer regras diferentes. Os diferentes Estados têm leis e regras diferentes sobre uma variedade de assuntos, desde o direito penal ao direito civil passando pelo fiscal, e, no entanto, coexistem. Nalguns casos, a lei pode até ser escolhida (casamentos, sociedades comerciais, etc.), mesmo dentro do território de um estado. A pluralidade de leis no território de um estado encontra-se, por exemplo, no direito diplomático (um embaixador que vive em Espanha não está sujeito à lei espanhola, tal como para um militar americano) e não vemos isso como impossível, de facto, no passado, era a norma. Um criminoso, pelo simples facto de atravessar uma fronteira, pode perfeitamente ficar impune por crimes que seriam extremamente graves do outro lado da fronteira. Isto para salientar que aquilo que é considerado inimaginável dentro do território de um estado, estamos a assistir a todo o momento no domínio do direito internacional sem que o mundo por isso acabe (pelo contrário, vivemos numa paz generalizada). É difícil imaginar quadros jurídicos mais diferentes do que a lei espanhola e a Sharia saudita, mas vemos que os governantes de ambos os Estados partilham negócios e tratados em paz e cooperação. Algo semelhante poderia muito bem acontecer numa sociedade sem estado, na qual sociedades muito diferentes viveriam, comercializando e cooperando sem necessariamente partilharem os mesmos valores.
Por último, o sistema internacional aponta para a importância da legitimidade e do reconhecimento como características fundamentais do poder político. Um estado só é considerado legítimo se os outros Estados o reconhecerem como tal, caso contrário seria considerado um vulgar bandido, um terrorista ou um guerrilheiro. Mas se esse reconhecimento for conseguido, o bandido é considerado respeitável, com embaixadas e um lugar confortável na ONU. Exactamente igual ocorre dentro dos Estados. O antigo bandido que ganha uma guerra e conquista um território passa a gozar de reverência e honras de toda a espécie e até é estudado com louvor nos manuais e escolas estatais e pode assinar papéis com o seu nome que podem ser usados como meio de pagamento. A que se deve uma transmutação tão radical? A nada mais do que o génio invisível da legitimidade, que ninguém sabe exactamente em que consiste (como nos recordava o velho Guglielmo Ferrero no seu magistral livro Power: The Invisible Geniuses of the City), mas todos sabemos a quem é atribuído em cada momento. A principal vantagem do sistema internacional é precisamente o facto de ser anárquico e, precisamente por isso, poder existir uma certa ordem nas relações entre as diferentes entidades estatais. Desta anarquia derivam vantagens para os indivíduos, como a impossibilidade de estabelecer meios de pagamento a nível global, uma certa concorrência fiscal ou a dificuldade de limitar as liberdades a nível global, uma vez que em qualquer um destes casos existe sempre um espaço de refúgio. Um estado global eliminaria tudo isto e não nos deixaria qualquer refúgio contra os seus abusos. Por isso, de momento, é melhor que a anarquia global continue a existir do que o potencial horror de um estado mundial único.
Publicado originalmente no Instituto Juan de Mariana
Notas do Tradutor
- Este artigo foi escrito em 2020, por conseguinte os exemplos apresentados ao nível da relações entre Estados podem estar desactualizados, ou, ao invés, reforçados, dependendo da perspectiva. ↩︎
- A Moldávia, desde o início do século XXI, tem delineado sua política externa num contexto de equilíbrio entre influências ocidentais e russas. Apesar do esforço dos últimos 5 anos para integrar a UE e a NATO, a posição moldava ainda hoje é a de estado não-beligerante. Na sua história recente, a procura de acordos com os países de proximidade sempre foi a estratégia para encontrar um proteccionismo táctico, como foram os tratados GUAM (Geórgia, Ucrânia e Azerbaijão) de cooperação e defesa mútua; o Trio Associado (Geórgia e Ucrânia) de segurança energética no Mar Negro e acordos com a Roménia, na promoção para a integração europeia ↩︎