[Este artigo está incluído no novo livro do Prof. Anxo Bastos, Cresci sem Estado.]
Um dos debates mais substanciais que se podem abrir no domínio da teoria do anarcocapitalismo é o da estratégia a seguir para se poder alcançar um modelo de sociedade no futuro, se é que este conceito tem algum significado no nosso campo de discussão. Gostaria de excluir, desde já, que um tal cenário provenha, de uma forma ou de outra, de uma revolução violenta, de um golpe de estado ou do recurso ao terror. Para além do facto de o anarcocapitalismo ser uma ideia pacífica que aspira a uma sociedade pacífica de trocas livres, entendo que nada de bom poderia resultar de um tal começo e tudo o que conseguiríamos seria lançar as sementes de um novo cunho de estatismo. A transição para uma sociedade autogovernada, como diria Benegas Lynch,[1] não resultará de uma qualquer conquista do estado, nem que seja para o dissolver, mas da sua extinção, como salientou o jovem Karl Marx.
Nas sociedades actuais, existem tendências evolutivas nas esferas económica, política e ideológica que, se bem exploradas e devidamente informadas pelos princípios anarcocapitalistas, podem conduzir, em determinados lugares, a cenários pós-estatais. Estas tendências resultam da dinâmica do mercado e de novas formas de gestão da violência. Apresentá-las-ei neste e nos próximos artigos, mas, repito, sem ideias que as orientem, estas tendências serão exploradas por novos empresários da violência para estabelecer novas formas de dominação. A disseminação de ideias deve ser sempre o primeiro passo, e se estas forem disseminadas pelo menos entre minorias intelectualmente activas, as tendências evolutivas potencialmente libertárias podem ser devidamente aproveitadas nesta direcção.
A primeira destas tendências deve necessariamente envolver uma mudança na forma como as ideias e o conhecimento em geral se difundem, antecedendo a mudança das próprias ideias. O conhecimento em geral, e a ciência em particular, sempre foram anárquicos. A própria dinâmica da evolução científica sempre funcionou em anarquia e de forma auto-organizada. As grandes vacas sagradas da ciência, das humanidades ou das artes sempre assistiram impotentes ao facto de qualquer pessoa poder desafiar a sua influência com a única arma contar com melhores argumentos. Os muros da academia, embora protejam temporariamente contra a investida de novas teorias, não podem, no final, impedir que estas sejam suplantadas por outras que têm origem mesmo fora do quadro académico. A própria ciência, mesmo que disponha de mecanismos de exclusão bastante eficazes (como o chamado método científico ou a revisão pelos pares), não pode impedir a contestação de novas ideias que suplantem até a própria definição de ciência (Kuhn abordou muito bem a questão nos seus estudos sobre as revoluções científicas).[2]
O mundo do conhecimento não é apenas anárquico, mas tem também um enorme poder de dissolução das estruturas de poder existentes, razão pela qual estas sempre procuraram não controlar as ciências, o que em si mesmo é impossível, mas controlar o ensino e a divulgação da ciência, o que historicamente lhes foi mais viável. Os sistemas educativos e universitários estatais sempre procuraram, através de vários mecanismos, da imposição à subvenção, estabelecer um saber oficial, dotado de um certo selo de respeitabilidade, por oposição ao saber oficioso; e também relegando para o esquecimento ideias e autores excluídos do sistema educativo oficial em quase todos os domínios do saber. Por exemplo, na área em que trabalho, que é a ciência política, uma percentagem muito elevada de pessoas adquire posições ideológicas elaboradas sobre o estado, a democracia ou as eleições através do sistema escolar e nunca questiona esse conhecimento adquirido. Isto é normal, a maioria das pessoas está envolvida em jardinagem, construção, enfermagem, química, trabalho fabril ou em supermercados, e o seu conhecimento irá, como sempre, concentrar-se nessas áreas. A menos que alguém se especialize na área da política, nunca discutirá criticamente o que aprendeu e, mesmo que se especialize, o que aprenderá, salvo raras excepções, será o que está estabelecido nos currículos oficiais reflectidos em currículos aprovados pelos respectivos ministérios. Adquirir conhecimento aprofundado de política, economia, história, ciências naturais… estava reservado a pequenos grupos de especialistas e as suas conclusões, se críticas, nunca passariam desse pequeno grupo. Obras altamente críticas, como as teorias sobre a origem do estado de Robert Carneiro ou Charles Tilly, apesar de terem uma excelente reputação dentro da academia, raramente são conhecidas fora dela.
A isto acresce a própria dificuldade de adquirir conhecimentos fora do domínio da educação oficial. O acesso a publicações especializadas, a professores especialistas ou mesmo a outras pessoas interessadas nos mesmos assuntos era caro e difícil, quase reservado aos que tinham acesso a um ensino monopolizado ou quase monopolizado pelo estado.
Assim, manter a disseminação de ideias mais ou menos sob controlo, embora exija um grande esforço prévio para conformar a população a este sistema, traz grandes benefícios em termos de legitimidade para os poderes do estado. Deste modo, qualquer mudança na forma como os valores ou as ideias são transmitidos pode ser potencialmente letal para os governos existentes, se essa mudança ocorrer num ambiente de grande consciência das ideias libertárias. Pode ser potencialmente fatal, pois, como já referimos em trabalhos anteriores e como nos recorda um artigo de há dois anos de Caleb Miles e Edward Stringham (na compilação de Liberty Guinevare Nell, Austrian Theory and Economic Organization)[3], a crença no estado, nos seus poderes e virtudes é essencial para que o estado não só mantenha a sua capacidade actual como persista na sua forma actual. E esta crença é transmitida principalmente através de sistemas educativos (os meios de comunicação social também têm influência, mas quem escreve neles já foi educado nestes valores), que são quase monopolizados pelos estados. Se estes forem enfraquecidos, o estado não desaparece, mas perde grande parte da capacidade de impor a sua vontade.
No entanto, estas tendências já estão cada vez mais presentes nas nossas vidas. O estado dificilmente conseguirá manter a sua posição de quase monopólio no domínio da educação, com o aparecimento na Internet de aplicações educativas cada vez mais sofisticadas, a custo zero. Universidades virtuais, como a Coursera ou a Khan Academy, estão a revolucionar o mercado universitário e, por um preço modesto, começam a certificar os seus estudos para aqueles que querem ou precisam deles. No âmbito do ensino básico e secundário, proliferam todo o tipo de aulas virtuais e tutoriais para as mais diversas disciplinas, com correcção virtual de exercícios online. As bibliotecas virtuais de livros e materiais audiovisuais permitem o acesso a milhões de livros sobre qualquer assunto, dispondo apenas de um telemóvel ou um pequeno computador. Assim, qualquer pessoa, mesmo com recursos limitados, pode aceder facilmente à grande maioria do conhecimento e às últimas descobertas científicas. As tecnologias da informação facilitam também o contacto e a coordenação de milhares de pessoas que antes operavam isoladamente e sem qualquer capacidade de acção cultural consciente. E estamos apenas no início.
A tecnologia pode muito bem quebrar o domínio do estado na ciência e na cultura de uma forma que poucos teriam previsto há alguns anos. Os institutos libertários de todo o mundo parecem ter compreendido bem este facto e as ideias que defendemos estão a disfrutar de um boom sem precedentes. O objectivo agora é aproveitar esta tendência para difundir ideias diferentes e conseguir corroer a base de legitimação dos estados contemporâneos. Estes podem, evidentemente, tentar limitar a sua difusão, mas não podem fazê-lo sem, ao mesmo tempo, minar a tecnologia que lhes serve de base, o que levaria inevitavelmente os que tentarem fazê-lo a ficar para trás e a minar a própria base económica em que assentam. A Internet não pode ser atacada parcialmente (há milhares de formas de contornar a censura) e atacá-la totalmente seria um fracasso económico a médio prazo.
Mas não são só os libertários que estão atentos a esta tendência. À esquerda, começaram a surgir tendências “aceleracionistas” que procuram tirar partido das novas tecnologias, neste caso com o objectivo de ultrapassar o sistema capitalista. Autores como Jeremy Rifkin e a sua A Sociedade de Custo Marginal Zero, Paul Mason e o seu Pós-Capitalismo ou Toni Negri e Paolo Virno com as suas teorias sobre o Êxodo, propuseram um futuro tecnológico em que as “multidões”, graças ao baixo custo do conhecimento, podem escapar ao sistema capitalista. À direita, o britânico Nick Land, um dos filósofos de referência da moderna Alt-Right, com seu Dark Enlightenment, ou Peter Diamandis, com a sua Abundância, desenvolvem também doutrinas da aceleração segundo as quais seria necessário aumentar a velocidade do desenvolvimento tecnológico, eliminando os obstáculos que o impedem, para poder alcançar rapidamente, neste caso, a singularidade. A combinação de seres humanos com tecnologias apropriadas permitiria também escapar às formas actuais de dominação política num futuro pós-estatista.
Inversamente, a revolução tecnológica pode também contribuir para um maior controlo do estado, como James Bovard salientou há alguns anos no seu brilhante Terrorism and Tyranny. As novas tecnologias permitem um maior controlo sobre as pessoas e os dispositivos que utilizamos, porque, embora facilitem uma melhor coordenação, deixam vestígios e os governantes podem saber exactamente quais são as nossas leituras, conhecer todas as nossas relações e até o conteúdo das nossas conversas. Através da big data, poderiam tentar prever os nossos movimentos e até conhecer em pormenor as nossas viagens ou mesmo o conteúdo das nossas compras. Estas tecnologias poderiam até dificultar as nossas deslocações sem necessidade de grandes investimentos (bastaria colocar-nos numa lista negra para que fosse muito difícil sair do país ou impedir-nos de abrir contas bancárias). O estado poderia também utilizar esta tendência em seu proveito.
Por último, é possível que estas tendências tecnológicas tivessem um impacto quase irrelevante nas consciências, tanto mais que a maioria das pessoas não utiliza os seus dispositivos tecnológicos e o seu imenso potencial de conhecimento precisamente para descarregar textos sobre economia austríaca ou teoria política libertária. Se, por um lado, estes permitem que as ideias se difundam entre aqueles que já se interessam por elas, por outro, a sua mensagem pode não chegar à população sem uma estratégia deliberada e consciente para o fazer. As ideias libertárias e anarcocapitalistas não se imporão pela simples força da tecnologia, mas por uma acção determinada e consciente para as estudar e propagar, aproveitando as oportunidades oferecidas pelas novas tecnologias. A imprensa em algum momento também poderia ter contribuído para esta tarefa, mas perdeu-se a oportunidade. A ocasião de quebrar o domínio do estado sobre o conhecimento formal e a cultura está de novo nas nossas mãos e, quiçá concentrando-nos na luta pela desestatização do conhecimento e da ciência, possamos dar um passo crucial na evolução para uma sociedade livre.
[1] Alberto Benegas Lynch (1909-1999), economista e intelectual argentino, conhecido por introduzir o pensamento da Escola Austríaca na Argentina.
[2] A Estrutura das Revoluções Científicas, livro de Thomas S. Kuhn.
[3] O paper referido é “Eliminating the Perceived Legitimacy of the State” (2014).
Artigo publicado originalmente no Instituto Juan de Mariana.

