Meses atrás, escrevi um artigo — “O Estado Novo Era Socialista” — delineando as características socialistas do Estado Novo português, que existiu de 1933 a 1974. Era algo quase sem precedentes, e hoje regresso para desenvolver os pontos que anteriormente construí.
Salazar, segundo Jaime Nogueira Pinto, sublinhava:
…a primazia do grupo sobre o indivíduo, do organicismo social baseado na convicção da corrupção e inclinação maliciosa da natureza humana e, consequentemente, na necessidade da autoridade da Igreja e do estado para proteger todos de todos, e todos de si próprios… Marcado por um profundo pessimismo antropológico. (pp. 230–231, Portugal Ascensão e Queda)
Isto está em linha com os princípios nucleares do jansenismo e da antropologia agostiniana, segundo os quais o homem — devido à sua depravação — está para além da salvação pela sua própria vontade, e só através da graça divina alguém pode ser salvo. Por causa da Queda do Éden, estamos condenados a cometer pecado, independentemente do livre-arbítrio que possuímos, infundido em cada um de nós por Deus. Sem disciplina vinda de cima — poder político vertical — a humanidade está condenada à ruína social e a uma competição feroz que conduz ao conflito.
Da perspectiva de Salazar, a nação tinha de ser organizada para impedir que se dissolvesse em facções divergentes. Tivera uma experiência muito negativa com a política partidária da Primeira República. Só através do corporativismo ou corpus — em português, a terminologia é “corpo” — ou dos diferentes corpos da nação, poderia Portugal não apenas redimir o seu passado pecaminoso, mas ressuscitar o seu potencial futuro. Ironicamente, ao rejeitar a luta de classes, subscreveu acidentalmente à noção marxiana de que uma luta de classes supostamente irromperia entre empregadores e empregados, sendo apenas o estado capaz de harmonizar divergências sociais. O Dia do Trabalhador foi celebrado em 1934 e 1935 para reforçar a paz social no local de trabalho.
Para alcançar este fim, centenas de sindicatos e grémios proliferaram ao longo das décadas em Portugal, muitas vezes obrigatórios, agrupados em federações representando várias profissões, indústrias e ofícios, cuja função era supervisionada por corporações, ultimamente arbritada pelo governo para promover a harmonia entre trabalho e capital. Existiam 11 corporações: agricultura; pesca; pecuária e produtos animais; silvicultura e produtos de madeira; indústrias extractivas e mineiras; manufactura; construção e obras públicas; comércio; transportes e comunicações; turismo e hotelaria; e seguros e serviços financeiros. Através da harmonização, a homogeneização da economia ficou completa, já que toda a produção nacional era regulada pelo estado. Imperava o controlo de preços e quotas de exportação eram impostas para “proteger a nação”, ironicamente prejudicando a população através de preços ao consumidor mais elevados, num país com salários severamente baixos.
Em Itália, uma organização corporativa foi construída em moldes semelhantes, o que não surpreende dada a influência da Carta del Lavoro (a Carta do Trabalho) no Estatuto Nacional do Trabalho (1933), que garantia um salário mínimo, limitava as horas de trabalho e concedia férias totalmente pagas — todas ideias tão prezadas pelos igualitários de hoje. Assim, a grande questão é: foi o Estado Novo fascista? A resposta é: sim, e socialista, portanto, de esquerda.
Salazar era anti-capitalista, proclamando num discurso: “A economia liberal que nos deu o supercapitalismo, a concorrência desenfreada, a anarquia económica, o trabalho-mercadoria, o desemprego para milhões de homens, está já morta” (História de Portugal, vol. XII, p. 273). Cultivava a pobreza, proclamando num discurso de 1949: “Devo à Providência a graça de ser pobre.” A sua governanta de toda a vida, D. Maria de Jesus Caetano Freire, relatou numa entrevista perto do fim da sua vida o desgosto de Salazar pela riqueza, dizendo: “O doutor dizia que o dinheiro era uma coisa suja, viesse de onde viesse, que estava sempre manchado de sangue, miséria e lágrimas… Mas não podia fazer nada quanto a isso. Nem sequer gostava de ricos.” (p. 22, Salazar Confidencial).
Outros anti-capitalistas que se converteram ao salazarismo incluem Carlos Ratos, o primeiro secretário-geral do Partido Comunista Português; António José Saraiva; e Jaime Batalha Reis, um famoso socialista da geração de 70 que elogiou Salazar no fim da sua vida (p. 90, As Conferências do Casino e o Socialismo em Portugal). Outros anti-capitalistas incluíam Ezequiel de Campos e Quirino Jesus; este último escreveu para a revista esquerdista Seara Nova e ajudou a redigir a Constituição de 1933, que Caetano confessou ser positivista (p. 31, Constituição de 1933). Como é sabido, a lei da natureza de Auguste Comte (que vê as sociedades como científicas e empíricas, o que significa que padrões e comportamentos poderiam ser apreendidos da observação tal como na física) serviu de via para o materialismo histórico de Marx — segundo o qual o universo é governado por forças económicas que inevitavelmente colidem — que por sua vez absorvia de Hegel o Aufheben, a ideia de que opostos acabam por se cancelar dando origem a uma nova síntese. Ambos deterministas, removeram a tomada de decisão individual da equação humana.
Outro indivíduo de tendência esquerdista — o jurista Luís Cabral de Moncada — defendia uma terceira via: “Numa palavra: tiremos do socialismo algo da sua substância; do nacionalismo, a sua forma; e do cristianismo, o seu sentido — para a construção da nova ideologia” (p. 277, Estudos Filosóficos e Históricos, vol. 2, 1959). Uma síntese hegeliana (Erebung) que substitui o cristianismo por uma religião gnóstica que se alimenta do ethos católico e abandona todas as normas culturais e direitos consuetudinários que Portugal gerou espontaneamente ao longo dos séculos; o abandono da autonomia para servir o grupo, o colectivo.
E o lema dos Nacional-Sindicalistas — rivais do regime — era: “Os ricos têm de ficar menos ricos para que os pobres fiquem menos pobres.” Curiosamente, o líder desses “camisas-azuis” — modelados segundo os nazis —, Rolão Preto, passou a apoiar os trabalhistas britânicos durante a década de 1940 e culminou a sua actividade política apoiando um Rei Soviético após a Revolução dos Cravos. Foi postumamente agraciado com a Ordem do Infante D. Henrique pelo “inimigo” de Salazar, o Presidente Mário Soares.
Embora o regime oficialmente perseguisse o comunismo, a Doutrina Social da Igreja Católica — especialmente a Rerum Novarum, que criticava os excessos do capitalismo liberal — convergia com o pensamento de Marx sobre o trabalho como mercadoria, forçando o estado a intervir e a comprometer-se a defender os direitos dos trabalhadores. Como escreveu Marcello Caetano:
Ficou provado que o estado não pode permanecer mero espectador da vida económica, assistindo impassível ao conflito de interesses, à luta imoral pelo lucro e ao triunfo alcançado pela injustiça e pela força. Ficou provado que o trabalhador, liberto dos vínculos associativos, se tornou presa mais fácil para o capitalista ganancioso, para a miséria e para a fome. Ficou provado, finalmente, que os empresários sem leis correram para o seu próprio aniquilamento, destruindo os valores sociais pelos quais são responsáveis perante todos nós, na riqueza desorientada da concorrência livre, geradora de crises. (p. 109, Princípios e Definições, 1969)
Como Primeiro-Ministro, num discurso de Junho de 1971 intitulado “Nem Comunismo opressor nem Liberalismo suicida”, Marcello Caetano admitiu que o Estado Novo era de facto socialista, declarando:
…O Socialismo não tem outro caminho senão o Comunismo, porque num país como o nosso, onde durante muitos anos, e sobretudo graças à doutrina corporativa, os interesses sociais têm sido dados por efectivamente cumpridos, postos em destaque e a intervenção do estado na economia tem sido generalizada — que desenvolvimento resta aos Socialistas senão a apropriação dos meios de produção, isto é, a Socialização da terra, das fábricas e do comércio?
Foi exactamente isto que Vasco Gonçalves e o Conselho da Revolução fizeram após o golpe de 11 de Março e o nascimento do PREC — o então Processo Revolucionário em Curso — dado que muitas das indústrias e sectores nacionalizados já eram subsidiados, com o antigo regime a intervir fortemente em todos os sectores. O estado social inchou, tornando-se gigantesco, e Caetano recebia correspondência relativa a habitação, emprego, pensões e subsídios, bolsas de estudo, decisões judiciais e queixas sobre empregadores.
O que é verdadeiramente fascinante é a escassez de atenção académica dedicada às políticas esquerdistas do Estado Novo. Embora muito tenha sido escrito sobre Salazar, tudo foi numa perspectiva socialista, portanto enviesada, distanciando as suas políticas e proclamando ilusoriamente o fascismo como um fenómeno de direita. Isso embaraça o establishment e os feitos de assistência social do regime que indoutrinam às novas gerações que devem desprezar.
Com recursos escassos, descobri mais sobre a natureza revolucionária do Estado Novo em dois anos do que a academia estabelecida em décadas. Todo o Portugal está de um dos dois lados: a esquerda, que condena a pobreza e a censura; e a outra, que é nostálgica do regresso da ordem e da estabilidade. Portugal está de facto em apuros; contudo, ninguém reconhece o estatismo inerente ao regime deposto, nem ele constitui solução para as calamidades de hoje.
Com as suas demolidoras análises habituais, Ludwig von Mises desmonta as falácias por detrás do corporativismo, argumentando em Human Action que uma corporação — monopolista por definição — perturbaria todos os factores de produção relativos a bens de ordem superior e de ordem inferior, enfraquecendo todas as actividades económicas porque tudo é interdependente, escrevendo: “Se dentro de qualquer ramo de actividade existe ineficiência, desperdício de factores escassos de produção ou relutância em adoptar os métodos de produção mais apropriados, os interesses materiais de todos são prejudicados.” A liberdade e a objectividade devem sempre triunfar.
Artigo publicado originalmente no Mises Institute.
