Depois de muitos anos a escrever artigos sobre a Reserva Federal e a banca central, há uma coisa com que posso sempre contar nas horas que se seguem à publicação de um artigo sobre a Reserva Federal: um leitor enviar-me-á um e-mail indignado, insistindo que a Reserva Federal é uma organização privada e que isso é muito importante.
Além disso, pelo contexto destas mensagens, é evidente que os autores acreditam que a alegada natureza privada da Reserva Federal é uma coisa má. Não é claro, no entanto, porque é que um banco central privado é pior (ou melhor) do que um banco central nacionalizado, propriedade do Estado.
Assim, a questão pertinente a colocar sobre o assunto é a seguinte: é importante um banco central ser público ou privado? A experiência mostra que a resposta é não. Afinal de contas, os dois bancos centrais privados por excelência da Europa – o Banco de Inglaterra e o Banco de França – estavam desde o início concentrados em servir os seus senhores estatais de facto, tal como os bancos centrais “públicos” semelhantes. A Reserva Federal, alegadamente privada, não é diferente.
O que torna um banco central privado?
Numa economia de mercado sem entraves, a propriedade é o factor determinante para saber se uma organização é “pública” (ou seja, propriedade do Estado) ou privada. No entanto, quando se trata de bancos centrais numa economia intervencionista, as coisas são muito mais obscuras. Em geral, os bancos centrais são considerados privados se os seus proprietários pela lei forem indivíduos ou organizações do sector privado.
No entanto, no mundo dos bancos centrais, a propriedade e o controlo são totalmente distintos e a propriedade privada raramente denota controlo privado1. Pelo contrário, a maior parte dos bancos centrais “privados” com proprietários privados são controlados – de facto ou de lei – por decisores políticos que respondem perante organismos estatais, como é o caso da Reserva Federal. Foi também o caso do Banco de Inglaterra e do Banco de França antes de serem nacionalizados, em 1946 e 1945, respectivamente.
Actualmente, vários dos maiores bancos privados do mundo continuam a ser considerados privados, embora isso se baseie normalmente num padrão de “privacidade” muito pouco rigoroso. Por exemplo, o Banco do Japão é privado e as suas acções são negociadas publicamente. Mas o governo do Japão é o accionista maioritário. Os accionistas privados estão explicitamente impedidos de definir as políticas do banco. Assim, existe alguma propriedade privada, mas não existe controlo privado. De facto, o Banco do Japão foi supostamente inspirado no banco central privado da Bélgica no século XIX. Por lei, o banco central belga é detido em pelo menos 50 por cento pelo Estado e a gestão está reservada a pessoas nomeadas pelo Estado. O banco central suíço segue um modelo semelhante, com alguns accionistas do sector privado e uma participação maioritária do Estado.
A Reserva Federal é menos privada do que estes outros bancos centrais. Os accionistas da Reserva Federal são os bancos privados membros dos doze bancos regionais da Reserva. Mas estas acções não são transaccionadas em nenhuma bolsa de valores e os estatutos dos EUA ditam a quantidade de acções que estes bancos membros devem possuir. Não se trata de uma questão de investidores privados que compram acções, como aconteceria no caso de uma propriedade normal. Os accionistas não podem simplesmente desfazer-se das suas acções se discordarem da administração.
[Leia mais: “A Reserva Federal e o Regime São Uma e a Mesma Coisa” por Ryan McMaken]
Além disso, a gestão real da Reserva Federal está fortemente concentrada no topo, e muito pouco controlo é exercido pelos bancos regionais membros da Reserva. Embora seja verdade que os bancos membros estavam muito mais envolvidos na gestão antes dos anos 30, esses dias já lá vão. No mundo moderno, a política da Reserva Federal é determinada pelo Conselho de Governadores e pelo Comité Federal de Mercado Aberto. Ambos são agências governamentais cuja composição e poderes são determinados por estatuto, e não por quaisquer proprietários privados2.
Tal como acontece com outros bancos privados, os “proprietários” da Reserva Federal não exercem praticamente qualquer controlo formal sobre a governação da Reserva Federal. É certo que muitos grandes bancos comerciais exercem uma influência substancial sobre os decisores políticos do banco central através de métodos políticos. No entanto, esta influência não advém da posse obrigatória de acções por parte dos bancos membros. A influência dos bancos comerciais provém dos habituais e antiquados lobbies e subornos.
Existe um banco central verdadeiramente privado?
Se o nosso padrão para definir um banco como privado se baseia apenas na propriedade em base da lei, então podemos encontrar muitos casos de bancos centrais privados desde o advento dos bancos centrais modernos no final do século XVII. No entanto, mesmo desde o início, estes bancos funcionaram como adjuntos do Estado e não como organizações capitalistas ou de mercado.
Por exemplo, o historiador britânico T.S. Ashton observa que, desde o início, o Banco de Inglaterra privado “tendeu a concentrar as suas actividades na prestação de serviços ao Estado e aos mercadores e companhias comerciais da Metrópole”3. Alguns esperavam que o Banco de Inglaterra servisse para facilitar uma maior circulação de moeda no campo, entre outros serviços à população em geral. Mas, rapidamente, o Banco recuou para a sua missão principal, que era financiar as guerras do governo e “acomodar” as corporações mercantilistas próximas do Estado.
Afinal, Karl Bopp, que mais tarde viria a ser presidente do Banco da Reserva Federal de Filadélfia, escreveu em 1946 que “o Banco de Inglaterra foi fundado em 1694 porque o crédito do governo tinha atingido um nível tão baixo… que o Governo de Guilherme e Maria não conseguiu angariar fundos adequados directamente para conduzir a guerra com Luís XIV ”4.
Do mesmo modo, o Banco de França foi fundado por Napoleão para fins de financiamento da guerra. O Banco era “privado”, mas não porque Napoleão gostasse de propriedade privada. Pelo contrário, após o caso John Law, os franceses tinham uma opinião tão negativa sobre as instituições financeiras governamentais que Napoleão teve de criar um banco ostensivamente privado. Este banco, no entanto, desde os seus primeiros dias até ser nacionalizado, “funcionou ao abrigo das disposições das leis que Napoleão tinha concebido com o objectivo de se tornar ele próprio – isto é, o Governo – o verdadeiro senhor”5.
Durante muitos anos, os académicos têm debatido se os bancos centrais privados exercem ou não com uma maior “independência” política do que os bancos estatais. Para dizer que no mínimo, não é evidente que os bancos privados se afastem significativamente das prioridades do Estado. Pelo contrário, estes bancos centrais fizeram o que era suposto fazerem. Financiaram guerras. Bopp continua:
A mera criação de bancos centrais [em Inglaterra e em França] não impediu que os Tesouros de ambos os países aplicassem políticas monetárias demasiado fáceis durante e especialmente após guerras dispendiosas. Os Tesouros foram invariavelmente influenciados mais pelo custo nominal dos empréstimos para o governo do que pelos custos reais da inflação evitável para o público. Durante as guerras napoleónicas, o Banco de França cedeu sob protesto aos desejos de Napoleão, tal como o Banco de Inglaterra cedeu sob protesto às insistentes exigências de Pitt** [o Jovem]6.
Um século mais tarde, a Reserva Federal privada “conforme definida na lei” actuou da mesma forma:
Quando os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra Mundial, em Abril de 1917, a Reserva Federal tornou-se quase instantaneamente o principal veículo de financiamento do esforço de guerra. A principal função da Reserva Federal durante esses anos de guerra era emprestar dinheiro aos bancos para comprarem obrigações “Liberty Loans” ao Tesouro dos EUA7.
A Reserva Federal é hábil em criar meios indirectos de canalizar dinheiro para o Tesouro através de terceiros, como os bancos comerciais. Mas o resultado é sempre mais dinheiro barato para o Estado. O mecanismo foi ainda mais directo durante a Segunda Guerra Mundial, e a Reserva Federal foi explicitamente instruída pelo governo dos EUA para financiar a guerra com compras directas de obrigações do Estado:
O rácio da dívida em relação ao PIB aumentou de 40% para 110% devido ao esforço de guerra. A maior parte foi financiada pelas compras de dívida do Fed, através de um controlo de facto da curva de rendimentos que manteve baixas as taxas de juro de curto e longo prazo8.
Os bancos centrais privados de Inglaterra e França tiveram um comportamento semelhante9.
Mesmo fora do contexto de guerra, continua a ser difícil ver como os bancos centrais privados exercem uma maior independência do que os bancos centrais estatais. Por exemplo, o Banco do Japão, privado, controla habitualmente a curva de rendimentos e tem mantido uma taxa de juro directora negativa (ou próxima de zero) durante quinze anos. Ou seja, o BOJ (Bank of Japan) é tão apaixonado por dinheiro fácil como o “público” Banco Central Europeu.
Além disso, temos de nos perguntar: se a Reserva Federal fosse um banco totalmente estatal, como é que o seu comportamento seria diferente do actual? Há poucas razões para acreditar que haveria qualquer diferença. Pelo contrário, as políticas da Reserva Federal reflectem o facto de a Reserva Federal ser uma instituição política e governamental, limitada apenas pelo receio de uma reacção negativa do público face ao aumento da inflação. Para além disso, o Fed tem mostrado uma vontade perene de fornecer ao Estado americano tudo o que este lhe pede, tanto em tempo de guerra como fora dele. No entanto, muitos continuam a acreditar que os bancos centrais – especialmente os alegadamente privados – são independentes. Outros acreditam que a natureza pública ou privada de um banco central é uma distinção significativa. Não é o caso. Como resume Bopp:
A literatura pode dar a impressão de que os bancos centrais operavam numa área totalmente separada e distinta da esfera da actividade governamental. Esta impressão não se mantém muito tempo depois de se descer do reino dos conceitos abstractos e absolutos, como soberania e independência, para o mundo do trabalho10…
- Peter Howells, “The U.S. Fed and the Bank of England: Ownership, Structure, and ‘Independence,’” International Journal of Political Economy 42, No. 3 (Fall 2013): 44-62. ↩︎
- Ibid., p. 48. ↩︎
- T.S. Ashton, The Industrial Revolution: 1760-1830 (New York: Oxford University Press, 1964), p. 70. ↩︎
- Karl R. Bopp, “Nationalization of the Bank of England and the Bank of France,” The Journal of Politics 8, No. 3 (Aug, 1946): p. 310. ↩︎
- Ibid., p. 312. ↩︎
- Ibid., p. 311. ↩︎
- Stephen Slivinski, “The Evolution of Fed Independence,” Region Focus, (Fall 2009), https://www.richmondfed.org/-/media/richmondfedorg/publications/research/econ_focus/2009/fall/pdf/federal_reserve.pdf. ↩︎
- Federico S. Mandelman, “Money Aggregates, Debt, Pent-Up Demand, and Inflation: Evidence from WWII,” Federal Reserve Bank of Atlanta’s Policy Hub, No. 2021-4 (May 2021): 1., https://www.atlantafed.org/-/media/documents/research/publications/policy-hub/2021/05/17/04-wwii-and-today–monetary-parallels.pdf. ↩︎
- Durante a ocupação alemã da Segunda Guerra Mundial, o Estado francês deixou de existir como Estado soberano e o Banco de França tornou-se um instrumento de transferência de activos franceses para o Estado alemão. Ver Kim Oosterlink, Filippo Occhino, Eugene N. White, “How Occupied France Financed Its Own Exploitation in World War II,” Working Paper: WP-CEB 06-102 (January 2006), https://www.researchgate.net/publication/254450954_How_occupied_France_financed_its_own_exploitation_during_WW2. ↩︎
- Bopp, p. 310. ↩︎