À medida que os níveis de imigração aumentaram em muitos países ocidentais, as preocupações com os efeitos politicamente desestabilizadores da migração em larga escala acenderam um debate contínuo sobre a cidadania. Como notámos aqui no mises.org, muitos estados europeus têm, consequentemente, avançado em direcção a maiores restrições à cidadania. Outros estados, como os Estados Unidos e o Canadá, ainda não adoptaram quaisquer novas limitações às leis de naturalização.
Um pressuposto comum em todos estes casos, no entanto, é que cabe aos estados nacionais definir e regular a cidadania. Mesmo nos Estados Unidos – alegadamente um Estado descentralizado e federalista – é o governo central que controla as alavancas da cidadania. (É provável que, entre os Estados ocidentais, a Suíça seja o único país que ainda adopta uma medida significativa de política de naturalização descentralizada)1.
Isto não é um acidente da história. Pelo contrário, os regimes de cidadania centralizados de hoje são o produto de vários séculos de esforços de construção do Estado que permitiram aos Estados estabelecer o controlo e o poder de monopólio sobre a concessão da cidadania. De facto, a ideia de cidadania nacional, baseada no território, é característica da nossa era de Estados fortes e centralizados. Estas noções modernas de cidadania ajudaram o Estado a consolidar e a expandir o seu poder de formas que não eram possíveis numa época de cidadania mais localizada e diversificada.
Origens na Cidadania Urbana
A ideia de cidadania, num sentido muito lato, remonta ao mundo antigo mediterrânico. Mas, após a queda da metade ocidental do Império Romano, a cidadania no Ocidente passou a estar associada, na sua esmagadora maioria, apenas aos residentes das zonas urbanas. Nas zonas agrícolas, mais orientadas para os acordos feudais, o estatuto político estava ligado a acordos pessoais e recíprocos (essencialmente contratos privados) entre senhores e vassalos. As disposições políticas mais complexas e estratificadas das cidades e vilas medievais sustentavam a ideia menos pessoal, mas ainda assim localizada, de cidadania urbana.
A cidadania dentro de uma cidade trazia as suas próprias vantagens, como a protecção contra prisão por parte dos senhores feudais sem a autorização dos tribunais da cidade, além da “liberdade de circulação, testamento e herança, bem como a liberdade de exercer qualquer profissão”.2 O aforismo medieval “Stadtluft macht frei” (“o ar urbano torna-nos livres”) teria sido cunhado por uma razão.
No entanto, ao contrário das cidades-estado gregas, poucas eram as cidades que constituíam um Estado independente. Faziam geralmente parte de reinos, governados por monarcas. Assim, a cidadania numa cidade ou vila servia duas funções essenciais: permitia a participação política na vida política da cidade e oferecia algum nível de protecção contra os monarcas que procuravam incessantemente aumentar a tributação e o poder do monarca em geral.
Não é de estranhar que as classes dirigentes das cidades guardassem ciosamente as suas próprias prerrogativas da intervenção dos monarcas. O historiador Martin van Creveld explica como a independência e os privilégios das cidades eram “concedidos não a indivíduos mas a todos os cidadãos [das cidades]” que, consequentemente, gozavam de alguma independência em relação ao monarca. Van Creveld prossegue:
Do ponto de vista dos aspirantes a monarcas centralizadores, o problema que as cidades apresentavam era muito semelhante ao colocado pela nobreza… Tal como cada nobre era, até certo ponto, o seu próprio senhor e exercia um poder inferior, mas não essencialmente diferente, do poder do rei, também as cidades tinham os seus próprios órgãos de governo. “3
Tal como a nobreza nas suas fortalezas regionais, as cidades também possuíam os seus próprios guardas para manter a ordem pública e as suas próprias forças armadas sob a forma de milícias e mercenários. Assim, as cidades possuíam os meios práticos para se isolarem do poder coercivo do estado central.
Note-se, além disso, que este modelo separava a ideia de cidadania da de comunidade “nacional” ou linguística. Ou seja, existiam simultaneamente muitos tipos diferentes de cidadãos, por exemplo, no Reino de França. Ser “francês” não significava ser um cidadão francês. Situações semelhantes existiam nos muitos principados do Sacro Império Romano e mesmo em Inglaterra, que já estava relativamente centralizada pela Alta Idade Média. A nacionalidade e a cidadania só viriam a unir-se no século XVIII.
A Ascensão do Absolutismo e do Estado Moderno
Como refere Krzysztof Trzciński, “as idades médias [sic] tornaram-se o ponto de partida para os modelos posteriores de cidadania estatal e para a teoria moderna dos direitos pessoais.”4 Infelizmente, porém, com a chegada do início do período moderno, a Europa avançou para um modelo de cidadania orientado para a centralização política. A ascensão dos monarcas absolutistas na Europa significou o “progressivo crepúsculo da cidadania [citadina] e a gradual tomada de controlo pelo Estado das suas soluções legais.” 5 Estes cidadãos urbanos tornaram-se “súbditos” do Estado central. As monarquias absolutistas também aboliram ou restringiram fortemente as assembleias gerais de todo o reino – por exemplo, as Cortes medievais em Espanha e os Estados-Gerais em França – que as cidades tinham utilizado para se protegerem das várias intervenções reais.
A substituição da cidadania pela sujeição nacional foi, no entanto, um passo crucial na criação do novo modelo de cidadania nacional consolidada. Trzciński prossegue:
Paradoxalmente, a condição de súbdito – aparentemente regressiva para as instituições da cidadania municipal – foi uma ponte importante no caminho para a construção da cidadania estatal, uma vez que enfraqueceu a ordem patrimonial e feudal e definiu o estado de subordinação dos indivíduos à autoridade central e, ao mesmo tempo, a pertença a um determinado Estado.6
No entanto, contra Trzciński, podemos notar que isto não é realmente paradoxal. A sujeição, tal como foi imposta pelos absolutistas, cumpriu o objectivo maior dos construtores do Estado: destruiu os poderes das instituições locais para determinar livremente a natureza jurídica da relação jurídica entre os indivíduos e as instituições políticas. Este foi substituído pelo controlo central. O resultado foi um controlo muito maior sobre o indivíduo por parte do estado central. A condição de súbdito – que gradualmente se tornou simplesmente cidadania com outro nome – tornou-se “nacionalizada” durante este período. Por conseguinte, a cidadania acabou por se “nacionalizar” também. William Safran escreve:
No ancien régime, a pertença à nação era definida em termos de partilha da religião, das relações sociais, dos deveres, dos direitos (ainda que limitados) e dos padrões culturais. Uma vez que estes elementos eram promovidos e protegidos pelo Estado, este passou a definir a nação, e a cidadania e a nacionalidade fundiram-se. [sublinhado nosso].7
Este período também solidificou a noção de cidadania territorial. Antes do início do período moderno, a cidadania era mais uma função de relações. A localização física era apenas um factor, entre muitos, para determinar a relação de uma pessoa com um governo municipal ou com o monarca. No entanto, com o aparecimento do Estado moderno, a territorialidade tornou-se um factor de importância central. Segundo os historiadores Andrew Gordon e Trevor Stack:
Investigações recentes sublinharam o impacto da cartografia na facilitação de uma concepção des-socializada do espaço e na permissão do apagamento da diferença local sob a imposição do espaço nacional. À medida que os mapas se tornaram uma ferramenta significativa do governo, também desempenharam um papel na transformação da imagem da nação.8
No novo ideal de Estado territorial, que emergiu “aparentemente do nada” no século XVI, tudo o que se encontrava no território físico do Estado devia ser nivelado e tudo se tornava igualmente sujeito ao monarca (teoricamente) omnipotente.9 A ideia de sujeição centralizada – e, eventualmente, de cidadania centralizada – seguiu este modelo geral.
O Papel da Revolução Francesa
Tal como acontece com muitas outras coisas – i.e, as nossas noções modernas de nacionalismo e democracia – a ideia moderna de cidadania foi fortemente influenciada pela Revolução Francesa. Os revolucionários franceses aboliram a sujeição absolutista, mas a relação entre o indivíduo e o Estado não foi fundamentalmente alterada. Pelo contrário, o poder do Estado tornou-se mais forte com o novo ideal de cidadania. Charles Tilly observa que, embora os monarcas absolutistas franceses tivessem centralizado bastante o Estado, os revolucionários franceses foram muito mais longe. Este novo modelo revolucionário aboliu todas as instituições mediadoras e, em vez disso, colocou cada indivíduo numa relação directa com o Estado. Tilly escreve: “Uma cidadania forte depende do governo directo: imposição em todo um território unificado de um sistema relativamente normalizado, em que uma hierarquia eficaz de funcionários do Estado se estende do centro nacional às localidades individuais ou mesmo aos agregados familiares, regressando depois ao centro. ”10
Isto pode ser melhor compreendido se nos lembrarmos que os revolucionários franceses eram fundamentalmente nacionalistas extremistas. Neste modelo, todas as instituições – numa ruptura radical com o passado medieval de políticas descentralizadas – estavam agora directamente sujeitas ao Estado central. Tilly prossegue: “O nacionalismo forte insiste que os direitos e obrigações dos cidadãos têm prioridade sobre os direitos e obrigações associados a outros laços em que os cidadãos estão envolvidos”.11
Estas noções espalharam-se a partir de França através das guerras revolucionárias e da difusão da ideologia política de inspiração francesa. Como recorda Tilly, graças ao domínio francês do continente durante os anos revolucionários, “quase todos os Estados europeus convergiram para o governo directo e para a elaboração da cidadania à escala nacional ”.12
As Vantagens Ideológicas (Para o Estado) da Cidadania Nacional
Esta relação entre o governo directo e a cidadania flui nos dois sentidos. A imposição da cidadania nacional a partir do centro exige um Estado central forte, mas a própria ideia de cidadania desempenha uma importante função de propaganda que, em contrapartida, fortalece o Estado. Como observa Murray Rothbard em Anatomia do Estado, o controlo do Estado não pode ser mantido apenas pela força coerciva. Tem de ser reforçado por propaganda destinada a convencer o público de que deve submeter-se voluntariamente ao Estado. À medida que os Estados foram afirmando um maior controlo sobre todos os seus territórios e abolindo a cidadania local, foi necessário solidificar estes esforços através da promoção da ideia de cidadania nacional ou de sujeição. Além disso, não seria tolerada qualquer concorrência a esta identidade nacional.
Os Estados e os seus propagandistas, do século XVI até ao século XIX, conseguiram ligar a ideia de cidadania às novas noções emergentes de nacionalismo. Estava criado o cenário para transformar a cidadania num instrumento de centralização do poder estatal. A frase “sou alemão” tornou-se sinónimo de “sou cidadão alemão” e decididamente não de “sou alemão mas cidadão de Hamburgo”.
Os benefícios para o Estado foram inegáveis. Os centralizadores utilizaram astutamente a difusão da cidadania nacional como meio de expandir o controlo do Estado sobre a riqueza e o pessoal num vasto território. Afinal de contas, a nova cidadania trazia consigo muitas obrigações para com o próprio Estado. É verdade que a cidadania citadina também trazia obrigações – como a tributação e o serviço da milícia – mas estas eram mais facilmente identificáveis com a comunidade específica de cada um e com as suas necessidades pessoais. Os benefícios conferidos ao indivíduo pela cidadania nacional eram muito mais abstractos e, muitas vezes, puramente teóricos.
As obrigações da cidadania nacional, por outro lado, sempre foram bem concretas. No contexto francês, a cidadania nacional significava mais impostos e, sobretudo, a sujeição ao recrutamento nacional. A capacidade bélica dos Estados nacionais aumentou muitas vezes com a expansão da cidadania nacional.
A Experiência Americana
Uma evolução semelhante ocorreu nos Estados Unidos, embora numa escala temporal mais condensada. Nas suas origens legais, os chamados fundadores não criaram de todo a cidadania nacional. O historiador Wang Xi escreve:
A utilização da palavra “cidadão”/“cidadãos” na Constituição indicava que a cidadania era essencialmente definida pelas constituições ou governos estaduais. Nem os Artigos da Confederação nem a Constituição definiam a cidadania nacional. Os Artigos da Confederação estabeleciam que os cidadãos de um Estado tinham direito a usufruir dos privilégios e imunidades dos cidadãos de outros Estados. A Constituição limitou-se a tomar emprestada a frase e não fez qualquer esforço para definir a cidadania nacional. A Constituição criou um governo federal mais forte e mais poderoso, mas deixou aos Estados o poder de conceder a cidadania e de regular os direitos inerentes aos cidadãos.13
Na prática, esta visão inicial da cidadania começou a desvanecer-se quase imediatamente. Ao longo do século XIX, o Estado americano, graças em parte ao crescimento do domínio federal directo nos territórios fronteiriços, criou a ideia de uma cidadania nacional independente da cidadania estadual. Com o crescimento do poder federal, tornou-se cada vez mais fácil contemplar uma cidadania independente dos próprios Estados. Além disso, a cidadania nos Estados Unidos – que, nos seus primeiros anos, era funcionalmente pouco mais do que a sujeição britânica com um novo nome – não tinha fortes ligações a instituições históricas ou a locais há muito habitados. A cidadania nos Estados Unidos era, em grande medida, uma construção ideológica, o que lhe dava muito em comum com o tipo de cidadania abstracta e funcional defendida pelos jacobinos franceses.14
Não é de surpreender que isto tenha levado à abolição do controlo da cidadania a nível dos estados-membros com a Décima Quarta Emenda à Constituição nacional. Actualmente, o único debate é sobre os poderes que o legislador nacional tem para regular a cidadania.
O declínio da cidadania local foi paralelo ao crescimento do poder do Estado noutras áreas políticas. No século XIX, o governo central estava muito limitado nos seus poderes para impor impostos directos ou recrutamento directo. No início do século XX, o Estado central americano conseguiu conquistar novos poderes e introduzir a tributação directa – através de um imposto nacional sobre o rendimento. Seguiu-se o primeiro programa de recrutamento em massa administrado pelo governo federal durante a Primeira Guerra Mundial.
Nessa altura, a transformação e a centralização da auto-identidade americana estavam concluídas: a frase “sou americano” tornou-se sinónimo de “sou cidadão dos Estados Unidos”. Em meados do século XX, era evidente que praticamente já ninguém se preocupava com a cidadania a nível estatal.
Nos Estados Unidos, tal como na Europa, o advento do estatuto de cidadania nacional reflectiu e alimentou o crescimento e a centralização do poder do Estado em geral.
Poderá este processo inverter-se? É possível, claro, e é bastante fácil imaginar a existência de Estados nacionais sem cidadania nacional. Já aconteceu antes. Os Estados nacionais poderiam simplesmente tributar as cidades e os Estados membros que os constituem. A forma exacta como estas localidades obtêm as receitas fiscais que lhes são exigidas poderia ser decidida localmente pelos cidadãos locais. Isto não exige uma relação directa entre o Estado central e os indivíduos. Não é necessária uma cidadania nacional ou uniforme. No entanto, a experiência tem demonstrado que, na prática, o governo directo da população tende a produzir maiores benefícios para o próprio Estado. Além disso, o controlo centralizado da cidadania nacional ajuda a extinguir lealdades e ligações a outras instituições fora do Estado. Consequentemente, o poder social, político e ideológico da ideia de cidadania nacional é demasiado importante para ser facilmente abandonado pelos Estados centrais.
- O governo federal suíço exerce algum poder regulador sobre os poderes cantonais de naturalização. No entanto, os cantões suíços são os principais agentes de naturalização, e alguns cantões têm requisitos de naturalização mais rigorosos do que outros. ↩︎
- Krzysztof Trzciński, “Citizenship in Europe: The Main Stages of Development of the Idea and Institution,” Studia Europejskie—Studies in European Affairs 25, no. 1, (2021): 13. ↩︎
- Martin van Creveld, The Rise and Decline of the State (New York: Cambridge, 1999), p. 104. ↩︎
- Trzciński, “Citizenship in Europe,” p. 14. ↩︎
- Ibid. ↩︎
- Ibid., p. 15. ↩︎
- William Safran, “Citizenship and Nationality in Democratic Systems: Approaches to Defining and Acquiring Membership in the Political Community,” International Political Science Review 18, no. 3 (Jul. 1997): 315 ↩︎
- Andrew Gordon and Trevor Stack, “Citizenship Beyond the State: Thinking with Early Modern Citizenship in the Contemporary World,” Citizenship Studies 11, no.2 (Maio 2007):121 ↩︎
- Ibid. ↩︎
- Charles Tilly, “The Emergence of Citizenship in France and Elsewhere,” International Review of Social History 40, Supplement 3 (1995): 228 ↩︎
- Ibid., p. 232. ↩︎
- Ibid., p. 131. ↩︎
- Wang Xi, “Citizenship and Nation-Building in American History and Beyond,” Procedia Social and Behavioral Sciences 2 (2010): 7020. ↩︎
- Safran, “Citizenship and Nationality in Democratic Systems,” p. 317. Safran escreve: “Na sua orientação funcional-voluntária, a abordagem político-ideológica americana da cidadania era também “jacobina”, e talvez ainda mais do que a francesa.” ↩︎
Artigo publicado originalmente no Mises Institute.