É comum ouvirmos dizer que se tem que pagar caro por alguma coisa porque essa coisa custou muito a produzir. Este “custar muito” é a maior parte das vezes definido em termos de dinheiro mas pode também ser medido em termos de tempo despendido ou desagradabilidade do trabalho. De uma forma ou doutra as pessoas acham que o custo que se incorreu deve ser pago através de um preço proporcional a esse custo – é o chamado “preço justo”. Por exemplo, o bastonário da ordem dos médicos argumenta que um salário de 2750 euros é muito baixo para um médico pois estes demoram muitos anos a tirar um curso e é preciso compensar esse custo (ver).
Neste artigo pretendo demonstrar que a única definição possível de preço moralmente justo é o preço que resulta da relação entre a oferta e a procura.
Preço Justo.
Voltando ao exemplo dos médicos: o argumento do bastonário, para ser coerente, deve estender-se a todas as profissões; isto é, uma profissão deve ser remunerada de acordo com os anos de estudo e todos os custos associados a esse estudo. Ora, é bom de ver que isto é absolutamente impraticável numa sociedade livre. A ser assim, qualquer um iria cursar o que bem lhe apetecesse, sabendo que no fim iria receber um salário proporcional ao tempo e custo dos estudos. Isto seria equivalente a eliminar a liberdade de escolha de consumidores e empresas e, ainda por cima, obrigá-los a financiar actividades que não querem patrocinar. A mesma lógica aplica-se ao preço de um produto. Imaginemos um doutorado em Humanologia que gastou 22 anos da sua vida a estudar até obter o doutoramento. No fim do doutoramento decide escrever um livro intitulado “ A influência dos Black Sabbath e do Black Metal em geral no aumento do bullying escolar”. A pesquisa para escrever o livro obriga a deslocações a vários países e a conviver com cultos satânicos e tribos africanas de aspecto perigoso onde se podem encontrar as verdadeiras origens daquela música, segundo o humanólogo. No fim disto tudo, o humanólogo pretende receber 30 mil euros em direitos de autor do livro pois, segundo ele, é o preço mínimo que justifica tanto tempo de estudo, pesquisa no terreno e escrita.
Qual é o verdadeiro preço do livro? A resposta é que não existe nenhum preço a priori para o livro. As duas únicas formas de se encontrar uma remuneração para o autor do livro são: a) aquilo que os leitores estão dispostos a pagar por ele; b) o que alguém decide que o autor deve receber. Na solução a) os consumidores pagam apenas o que desejam pagar, de acordo com o valor subjectivo que atribuem ao livro – quanto maior o preço a que este for colocado à venda menos compradores terá e vice-versa. A solução b) implica que o autor recebe um montante fixado por alguém mesmo que ninguém esteja interessado no livro. Esta hipótese, por sua vez configura duas possibilidades – aquele valor pago ao autor é pago voluntariamente ou coercivamente: se for um filantropo a financiar um livro com o seu próprio dinheiro, ninguém tem nada a ver com isso, já que o filantropo gasta o seu dinheiro como bem entender; já se for o Estado a financiar o livro há aí um ato coercivo e ilegal no sentido em que os contribuintes (através dos impostos) são obrigados a pagar indirectamente por algo que não querem. O preço moralmente justo é portanto unicamente o preço que é pago voluntariamente pelos indivíduos – o consumidor comum ou um mecenas. Tudo o resto envolve a violação da liberdade e do direito de propriedade dos indivíduos.
Em que sentido é que o custo tem influência no preço de venda.
Numa sociedade livre, quando alguém decide produzir algum produto (ou vender um serviço) tem em conta as receitas potenciais que vai obter de acordo com a procura que os consumidores terão pelo bem. Assim, muitas coisas não são sequer produzidas porque o preço que os consumidores estão dispostos a pagar é inferior ao custo médio de produção. Mas imaginemos que produzi algo, um relógio com um design original a que dei o nome de “Neon Watch”, e coloquei-o à venda por 100€. O custo médio de produção é de 80€. Agora, se a receita total que eu obtive for superior ao custo total vou continuar a produzir esse relógio, ajustando eventualmente o preço de acordo com aquilo que eu pressinto que vai ser a resposta da procura a esse ajuste. Em geral vou procurar estabelecer um preço que me maximize a diferença entre a receita total e o custo total.
Portanto, aquele custo de 80€ dá-me o preço mínimo a que vendo o relógio. Mas, na medida em que eu conseguir aumentar o meu lucro com um preço maior eu pratico esse preço maior. O preço tem assim um limite inferior ditado pelo custo de produção e um limite superior ditado pela procura (que influencia o lucro).
Mas é este o verdadeiro preço da coisa?
Suponhamos que o preço que me dá mais lucro é o preço de 120 €. É este o preço justo? Sim e não. Na medida em que eu não tiver concorrência é um preço justo porque é pago voluntariamente pelos consumidores. Passa a ser um preço injusto na medida em que seja impedida a concorrência ao produto. Neste caso os consumidores são impedidos de usufruírem dos preços mais baixos da concorrência. Se houver concorrentes que considerem que eu estou a fazer um bom lucro e que eles podem partilhar desse lucro então vai aumentar a oferta do Neon-Watch e o preço vai necessariamente baixar, porque esta é a única forma de os consumidores comprarem mais relógios em relação ao preço de monopólio. Note-se também que neste processo de concorrência é também possível que os custos de produção aumentem, pois com a entrada de concorrência e aumento de produção, também aumenta a procura pelos vários itens que produzem o relógio (a relação oferta-procura actua tanto no mercado de bens de consumo como no mercado de factores de produção). É possível então que o custo médio de produção do relógio passe para 90. O preço de venda do mesmo estabilizará algures num preço abaixo de 120 devido à concorrência. Podemos então reformular a proposição acima do seguinte modo: O preço tem um limite inferior ditado pelo custo de produção e um limite superior ditado pela concorrência e pela procura. O papel da concorrência é fazer aumentar a oferta do bem e a procura dos factores de produção desse bem, estreitando assim as margens de lucro até um ponto em que o mercado esteja mais ou menos estabilizado no sentido de não existirem movimentos relevantes de entrada ou saída de empresas do mesmo. Em certo sentido, podíamos dizer que no longo prazo o preço depende apenas do custo de produção, já que esse preço vai ser apenas uma margem razoável por cima do custo médio. Mas isso não seria exacto pois a margem é tanto menor quanto maior for a concorrência e o próprio custo não é fixo mas responde à procura de factores de produção da concorrência que por sua vez respondem à procura dos consumidores.
A diferença entre os preços dos bens reproduzíveis e os bens one-shot.
A descrição que acabei de fazer sobre a formação de um preço de mercado corresponde, em rigor, aos bens que são reproduzíveis, isto é, que estão constantemente a ser produzidos de novo para reentrarem no mercado. O custo de produção desses bens dita se eles serão ou não reproduzidos; a procura e o grau de concorrência ditam quão acima o preço estará acima do custo de produção. Por outro lado, temos aqueles bens que só são produzidos uma vez (one-shot), como uma moradia ou um quadro de Rembrandt. Neste caso, o custo de produção é totalmente irrelevante para o preço do bem. Vejamos o caso da moradia. Construí uma moradia que me custou 200 mil euros e pretendo vendê-la por um preço acima. Agora, eu só vou conseguir vendê-la pelo preço que alguém me pagar e não pelo preço que eu desejo receber. Se a oferta máxima que eu receber pela casa for de 150 mil euros então esse é o preço da casa. Que ela me custou 200 mil é irrelevante para o comprador. O que é relevante para ele é a própria casa e os seus acabamentos. Os 200 mil são portanto um “custo afundado”. Este custo só será relevante para o preço se implicar um tipo de casa que agrada ao cliente e não pelo montante em si. Se eu gastei imenso dinheiro a forrar as paredes da casa de alumínio, o custo terá até um efeito negativo no cliente. É óbvio que eu posso persistir em colocar a casa à venda apenas por um valor superior a 200 mil. Mas se não houver ninguém interessado àquele preço, então não é um preço de mercado mas apenas uma teimosia. Esta é uma situação que não é contudo difícil de ver na realidade.
O preço do trabalho.
O salário que é pago a alguém obedece essencialmente à lógica “one-shot” quando analisado do ponto de vista do trabalhador. Um trabalhador que se especializou numa determinada área vai ter que oferecer os seus serviços ao salário que o mercado lhe pagar. Quem lhe paga o salário não quer saber se ele tirou um doutoramento caríssimo em Harvard ou Yale mas apenas qual a utilidade, o valor que ele traz à pessoa ou organização que o pretende contratar. O tal doutoramento só implica um salário mais elevado na medida em que o empregador achar que isso é um reflexo de um trabalho de mais qualidade ou de uma mais valia qualquer mesmo que apenas subjectiva (por exemplo, dizer aos amigos que tem um funcionário doutorado em Harvard). O custo do doutoramento e todos os outros custos de formação são irrelevantes. Se dois doutorados, um em química e outro em economia, se apresentarem para uma proposta de trabalho num laboratório de investigação farmacológica, e ambos tiverem tido o mesmo custo de formação nas mesmas universidades, o valor do economista é contudo de zero para o laboratório.
Em termos de mercado de trabalho o que acontece é o seguinte: o custo de formação influencia o número de estudantes que se especializam numa certa área. Sendo o restante igual, quanto maior esse custo menor o número de estudantes. Este custo determina, portanto, a quantidade oferecida de profissionais numa área. O salário, por sua vez, é determinado apenas pela relação entre a oferta de trabalhadores e a procura. Assim, é de esperar que quanto maior o custo de formação de um médico, para uma dada procura de mercado, menor seja o número de médicos a formarem-se. Este custo implica não só o custo monetário e de tempo, mas também a exigência intelectual requerida do estudante. É por isso de esperar que os vencimentos de um médico sejam tanto maiores quanto maior for o custo de formação. Mas este custo actua de forma indirecta, através da quantidade da oferta e não de forma directa no salário. Actualmente, em Portugal, temos muitos médicos especialistas que auferem vencimentos muito elevados não porque o curso de medicina foi caro (a maior parte deles teve as propinas pagas pelo Estado) mas porque existem muito poucos médicos dessa especialidade. E isso acontece não por falta de estudantes potenciais nessas áreas mas porque o Estado e a ordem dos médicos restringe e proíbe a proliferação de cursos de medicina.
Em qualquer profissão os factores que influenciam o salário são a procura por parte das organizações por certo tipo de trabalho e o grau de concorrência (a oferta) desse mesmo trabalho. Quanto menor a concorrência e maior a procura das empresas maior o salário e vice-versa. Agora repare-se que a própria procura das empresas depende, além da procura que estas têm pelos seus bens e serviços (que se reflecte na procura de factores de produção como o trabalho), também do grau de concorrência em que estas operam. Quanto maior a concorrência menor vai ser o preço que estas empresas praticam ao consumidor, mas maior vai ser a procura por factores de produção como o trabalho: o primeiro destes motivos tende a descer o salário pago e o segundo a aumentá-lo. Assim, num sector com procura em alta, como a construção até há uns 10 anos atrás, a procura de trabalho nesta área (trolha, canalizadores, electricistas, carpinteiros, pintores, etc) aumenta e os salários também aumentam independentemente de a concorrência já ser grande. Já num sector em que a procura está estabilizada, o aumento da concorrência faz aumentar a procura de trabalho mas não implica necessariamente uma subida dos salários, devido à diminuição dos preços de venda; o que existe neste caso, em princípio, é um aumento da massa salarial em relação aos lucros.
Assim, podemos dizer que um salário é limitado por baixo pelo salário de reserva do trabalhador (o salário abaixo do qual o trabalhador se recusa a trabalhar, por vários motivos, entre os quais o salário que pode obter noutras actividades) e é limitado por cima pela procura das empresas (que depende do grau de concorrência entre elas e da procura dos consumidores) e pela concorrência dos trabalhadores. Consequentemente, é bom de ver que a lei do salário mínimo nacional causa desemprego na medida em que não permite a certas pessoas trabalharem abaixo de um certo salário, mesmo que queiram.
Sujo e bem pago.
Numa sociedade em que grande parte das pessoas opta por profissões que requerem mais estudos, os salários nestas profissões tendem a baixar na medida em que a procura por estes trabalhos não aumente na mesma proporção. Já, pelo contrário, os trabalhos que as pessoas querem menos, como limpa-chaminés, mineiro, lavrador tendem a verem os seus salários aumentados. Este ajustamento dos salários é a resposta objectiva que a sociedade transmite em relação às suas necessidades e a forma como essas necessidades estão a ser preenchidas. Se um tipo de salário está a descer persistentemente (e não apenas conjecturalmente) e um outro está a subir cada vez mais, isso é um sinal que há “muitos” trabalhadores do primeiro tipo e “poucos” do segundo tipo em relação àquilo que pessoas e empresas requerem.
Conclusão
O mercado é assim a democracia do consumidor. Preços e salários não são decididos unilateralmente por ninguém mas resultam da interacção dos desejos e necessidades dos consumidores com o tipo de produção oferecida por trabalhadores e empresas. O nosso sentido pessoal de justiça pode sentir-se ofendido pelo mercado pagar mais a uns do que a outros mas qualquer outro método, como os vencimentos pagos pelo Estado, é arbitrário e decorrente de juízos pessoais de valor que não coincidem com os juízos de valor de outros; além do mais, obriga os consumidores a financiarem trabalhos e actividades que não querem, através de impostos. Basta ver que os “colarinhos azuis” acham que eles é que “fazem o trabalho todo” e por isso deviam ganhar muito mais; ao passo que os “colarinhos brancos” acham que ganham pouco já que andaram “a estudar tanto tempo para isto”. O livre mercado é, assim, a única forma racional e verdadeiramente justa de formação de preços numa economia livre.
Referências:
Dois textos clássicos muito úteis sobre a relação entre custo e preço são: J. S. Mill’s “Principles of Political Economy” (livro 3 , capítulo 3) e Bohm-Bawerk’s ”Capital and Interest” ( livro 3, cap. 7). O volume I do “The Common Sense of Political Economy” de Wicksteed trata dos salários no cap. 8 e da relação custo-preço no capítulo 9. Todos estes livros estão disponíveis online.