Acabo de ler um artigo fascinante, “Law and Economics, David Hume and Intellectual Property”, do professor escocês de Direito Hector Lewis MacQueen.1 MacQueen sustenta que Hume provavelmente não teria reconhecido a Propriedade Intelectual como uma forma de propriedade. Isto parece-me correcto. Como Arnold Plant observou num estudo clássico de 1934, “The Economic Theory Concerning Patents for Inventions”:2
Os estatutos que criam patentes nos vários países impõem limitações ao exercício dos direitos de propriedade que elas compreendem, mas estas não são as únicas peculiaridades desta forma de propriedade. Apesar das limitações, os direitos de propriedade em patentes são mais potentes do que é geralmente verdade no caso da propriedade privada. O significado da propriedade privada no sistema económico foi enunciado há muito tempo com grande clareza por David Hume no seu Enquiry Concerning the Principles of Morals. A propriedade, argumentava ele, não tem propósito onde há abundância; ela surge, e deriva o seu significado, da escassez dos objectos que se tornam apropriados, num mundo em que as pessoas desejam beneficiar do seu próprio trabalho e sacrifício. [Ênfase acrescentada]
Por outras palavras, Hume reconhecia a importância da escassez na definição do que é propriedade.3
Uma coisa que me chamou a atenção foi esta passagem de uma das notas de rodapé de Hume:
Alguns filósofos explicam o direito de ocupação dizendo que cada um tem uma propriedade no seu próprio trabalho; e quando junta esse trabalho a qualquer coisa, isso dá-lhe a propriedade do todo: Mas, 1: Há vários tipos de ocupação em que não se pode dizer que juntemos o nosso trabalho ao objecto que adquirimos: Como quando possuímos um prado ao pastarmos nele o nosso gado. 2: Isto explica a questão por meio da acessão; o que é dar uma volta desnecessária. 3: Não se pode dizer que juntemos o nosso trabalho a qualquer coisa senão num sentido figurado. Propriamente falando, apenas fazemos uma alteração nela pelo nosso trabalho. Isto forma uma relação entre nós e o objecto; e daí nasce a propriedade, de acordo com os princípios precedentes. [Treatise of Human Nature, Livro III, Parte II, Secção III nota 16; todo o ênfase acrescentado]
Aqui Hume está a criticar a ideia excessivamente metafórica (“figurada”) de que o “trabalho” é “juntado” ou misturado com objectos, e discorda que este pressuposto seja necessário para justificar a ocupação lockeana. Ele entende que uma versão mais simples do argumento de Locke ainda funciona, uma que abandona o pressuposto de que o trabalho tem de ser “juntado” ao objecto. Acho isto fascinante porque há muito que defendo que todo o foco no trabalho é um erro nuclear da teoria lockeana de apropriação original e dos argumentos pró-PI.4 Na minha perspectiva, essa focalização no trabalho atrasou tanto a teoria política como a economia: na teoria política conduz à ideia do “criacionismo” — a noção confusa de que alguém possui as “coisas” que “cria” por virtude de ser um criador (em vez de reconhecer que produzir significa transformar propriedade pré-existente, criando assim riqueza mas não nova propriedade ou novos títulos de propriedade); e na economia conduziu à teoria laboral do valor, que posteriormente originou uma série de erros marxianos.
Na minha perspectiva, o trabalho não é senão um tipo de acção. Não é especial. Não “possuímos o trabalho” mais do que possuímos as nossas acções. Possuímos os nossos corpos — somos auto-proprietários — o que nos dá o direito de decidir que acções empreendemos. “Possuir as próprias acções” (ou o trabalho) é apenas uma forma confusa e potencialmente enganadora de descrever o facto da auto-propriedade, ou as consequências desse facto. Mas recorde-se que Rothbard5 argumentou que todos os direitos são direitos de propriedade — que o direito à “liberdade de expressão”, por exemplo, é meramente uma consequência ou derivação de direitos de propriedade mais fundamentais. Do mesmo modo, a “propriedade” do trabalho ou das acções, na medida em que esta formulação bizarra tem algum significado, é apenas uma consequência da auto-propriedade. Não é um direito independente. De facto, é apenas uma forma metafórica ou figurada de dizer (menos precisamente) que o actor é auto-proprietário. Se alguém é auto-proprietário tem o direito de realizar acções — incluindo “trabalho”. (A auto-propriedade também lhe dá o direito de fazer flexões, comer gelado, sonhar, amar, ler livros e recordar, mas seria estranho dizer que alguém possui as flexões, a alimentação, os sonhos, o amor, a literacia ou as memórias.)
O argumento lockeano é que possuímos o nosso trabalho, e “portanto” possuímos os recursos com os quais “misturamos” esse trabalho. O problema com esta formulação é que ela sustenta a teoria do valor-trabalho e também leva alguns a concluir que, se se cria algo que “tem valor” com o próprio trabalho, então se “possui” essa coisa, já que se “misturou o trabalho” com ela. Os proponentes da PI frequentemente tecem tais argumentos esdrúxulos; chegam a dizer que a infracção de PI é um “roubo do trabalho do criador”, como se vissem o trabalho como alguma substância possuída que emana misticamente de Criadores quase divinos,6 “misturada” ou de algum modo “presente” em objectos-de-criação a flutuar num espaço platónico (mas de algum modo ainda ligados ao mundo real). (E isto apesar do facto de Locke não acreditar que o seu próprio argumento de apropriação original se estendesse à PI.)7
Um comentário de MacQueen parece sustentar a minha leitura: ele escreve que “Hume, porém, rejeitou a justificação da propriedade normalmente usada em relação ao copyright e outras formas de propriedade intelectual, uma teoria mais frequentemente associada ao predecessor filosófico de Hume, John Locke; isto é, a teoria laboral segundo a qual possuo o que é produzido pelo meu trabalho.” Por outras palavras, o argumento lockeano de apropriação original, se contiver a parte laboral, pode levar alguns a concluir que a PI é propriedade. É precisamente por isso que foi um erro incluir a ideia de propriedade do trabalho como parte do argumento de apropriação. E, como Hume mostra, não é necessária. (Não me é claro se MacQueen pensa que o próprio Locke concordaria que a sua teoria de apropriação original, mesmo incluindo o pressuposto laboral, se estende à PI; mas como acima indicado, parece bastante claro que Locke não acreditava nisso. Dado que o pressuposto laboral apoia até certo ponto a noção de PI, não é claro por que razão Locke não pensava que ele se estendesse à PI; talvez o próprio Locke soubesse que a parte laboral do seu argumento era mais metafórica e não deveria ser tomada literalmente. Mas isto apenas sustenta a necessidade de simplificar o argumento.)
Na minha perspectiva, o argumento de Locke pode ser simplificado abandonando o argumento estranho de que o trabalho é possuído. A apropriação original ainda resulta em propriedade porque o apropriador, ao ser o primeiro a demarcar ou transformar um recurso não-apropriado, estabelece uma reivindicação superior a esse recurso relativamente a quem chegar depois. (Para elaboração, ver o meu “O que o Libertarianismo É”, nº 24 e texto que o acompanha et passim.)
E isto é o que Hume parecia reconhecer. Na passagem citada acima, ele discorda da formulação lockeana segundo a qual o direito de ocupação (propriedade) exige a ideia “de que cada um tem uma propriedade no seu próprio trabalho; e quando junta esse trabalho a qualquer coisa, isso lhe dá a propriedade do todo”. Primeiro, Hume observa: “Há vários tipos de ocupação em que não se pode dizer que juntemos o nosso trabalho ao objecto que adquirimos: Como quando possuímos um prado ao pastarmos nele o nosso gado.” Penso que ele está a dizer aqui que adquirimos certos direitos sobre o pasto mesmo sem realizarmos qualquer trabalho (as vacas apenas caminham sobre ele e comem a erva, mas o proprietário não está a realizar trabalho). Creio que ele está a tentar mostrar que a mistura de trabalho não é necessária para a apropriação original.
Depois: “2: Isto explica a questão por meio da acessão; o que é dar uma volta desnecessária.” Ora, a acessão, como MacQueen nota, é esta ideia: “a adição de matéria ao objecto original, como os frutos do nosso jardim ou a descendência do nosso gado, que se tornam nossa propriedade mesmo sem posse”. Se possuímos uma macieira, possuímos as maçãs que dela caem “por acessão” — sem sequer tomarmos posse delas (ou trabalharmos sobre elas). Penso que Hume está a dizer que insistir na parte laboral do argumento para justificar qualquer reivindicação de apropriação leva a um argumento desnecessariamente complicado (volta desnecessária) para explicar por que razão o dono da vaca apropria direitos no pasto.
Depois critica o rigor de todo o conceito de misturar-trabalho-possuído: “3: Não se pode dizer que juntemos o nosso trabalho a qualquer coisa senão num sentido figurado.” Em vez disso, reconhece o papel do trabalho, ou acção: ele é usado para alterar propriedade existente, o que gera mais riqueza mas não mais propriedade (isto é semelhante ao que Rand, Rothbard, Mises e outros disseram sobre como a acção humana produtiva envolve apenas reorganizar ou alterar recursos existentes, e não criar coisas novas):8 ele escreve: “Propriamente falando, apenas fazemos uma alteração nela pelo nosso trabalho.”
Depois, nota que esta acção — de ser o primeiro a possuir, usar, transformar um recurso escasso não-apropriado — é suficiente para dar ao apropriador original uma reivindicação superior ao recurso relativamente a qualquer recém-chegado, sem nunca dizer que o trabalho é possuído: “Isto forma uma relação entre nós e o objecto; e daí nasce a propriedade, de acordo com os princípios precedentes.” Proto-Hoppeano!
Que grande conjunto de conclusões a partir de uma pequena nota de rodapé.
Artigo publicado originalmente no Mises Institute.
Notas
- University of Edinburgh School of Law, Working Paper Series, No 2011/09; também publicado em Nick Kuenssberg (ed), Argument amongst Friends: Twenty-five years of Sceptical Enquiry (David Hume Institute, Edinburgh, 2010), pp 9–14. Ver também MacQueen’s Intellectual Property and the Common Law in Scotland C.1700-C.1850. ↩︎
- Economica, New Series, 1, nº. 1 (Feb., 1934). ↩︎
- Ver também o meu Against Intellectual Property, texto no nº 57, fazendo um ponto semelhante a Hume. ↩︎
- Ver o meu “The Death Throes of Pro-IP Libertarianism” e os meus posts Thoughts on the Latecomer and Homesteading Ideas; or, why the very idea of “ownership” implies that only libertarian principles are justifiable; Locke, Smith, Marx and the Labor Theory of Value; Rand on IP, Owning “Values”, and “Rearrangement Rights”; Locke on IP; Mises, Rothbard, and Rand on Creation, Production, and “Rearranging” e Thoughts on Intellectual Property, Scarcity, Labor-ownership, Metaphors, and Lockean Homesteading. ↩︎
- Human Rights” As Property Rights. ↩︎
- Ver o meu post Inventors are Like Unto …. GODS….. ↩︎
- Ver o meu post Locke on IP; Mises, Rothbard, and Rand on Creation, Production, and “Rearranging”, onde notei que Tom Bell e Ronan Deazley mostraram que nem os Founders nem Locke pensaram que PI era um direito natural, isto é, viam a PI como uma ferramenta para regulação. ↩︎
- Ver Locke on IP; Mises, Rothbard, and Rand on Creation, Production, and “Rearranging”. ↩︎
