A Riqueza das Nações (1776) de Adam Smith é considerada o início da economia moderna, uma disciplina de pensamento filosófico e político. De Smith a Marx, a economia foi sobretudo uma explicação do comportamento humano, até que as nações ocidentais — avançando através da tecnologia e da Revolução Industrial — fizeram um esforço para transformar a economia numa ciência quantitativa. O Principles of Economics (1890) de Alfred Marshall é considerado o início desta mudança na metodologia económica e incendiou o debate sobre se a economia seria quantitativa ou qualitativa.
A perspectiva quantitativa utilizava a precisão matemática esperada nas ciências naturais, como a física e a química, para modelar e prever a economia. A perspectiva qualitativa via a economia como não menos rigorosa, mas restringia o pensamento económico ao estudo do comportamento humano e dos mercados. A mudança quantitativa continuou bem adentro do século XX, com o keynesianismo, a economia neoclássica e o monetarismo, e impulsionou o desenvolvimento de uma série de novas estatísticas económicas. Uma dessas estatísticas é o Índice de Preços no Consumidor (IPC), que constitui um exemplo deste erro metodológico que abandonou a metodologia qualitativa em favor de uma abordagem quantitativa.
O Bureau of Labor Statistics1 (BLS) iniciou o IPC tabelando preços de retalho pagos pelos consumidores em 1919. Ao longo das décadas, o BLS modificou a forma como o IPC é calculado em termos de regiões geográficas amostradas, bens e serviços incluídos, ponderação dos preços, etc. O IPC tornou-se um indicador do custo de vida muito seguido. O IPC é usado pelo governo federal como barómetro da economia, para definir taxas de juro, e pelo Federal Reserve [FED] para determinar a política monetária. Embora o IPC tenha impacto significativo na intervenção governamental, e portanto na população dos EUA, existem três problemas fundamentais: primeiro, não existe qualquer “nível geral” de preços que possa ser medido; segundo, os métodos usados para calcular o IPC são duvidosos; finalmente, o uso governamental do IPC tem causado danos financeiros.
Não Existe Tal Coisa como o Nível Geral de Preços
Quando as pessoas pensam em preços, imaginam que existe um nível geral de preços e que a inflação pode ser determinada medindo a variação deste nível entre os momentos A e B. O problema é que não existe um nível geral de preços. O mercado é composto por compradores e vendedores individuais que acordam trocar a um preço específico num momento específico. Como isto ocorre continuamente centenas de milhões de vezes por dia, não há qualquer forma de medir um nível de preços estável. Seria como tentar destilar o comportamento de um enorme enxame de abelhas num único número.
[Leia Mais: “Exposing the Price Level Myth” de Jonathan Newman.]
Além disso, quando novo dinheiro entra no mercado, os preços dos bens e serviços não são afectados de modo igual nem ao mesmo tempo. As pessoas que têm acesso inicial a esses fundos fazem subir primeiro os preços de alguns bens. Contudo, isso pode ocorrer antes de qualquer aumento de salários para os consumidores a jusante. Mises resumiu estes efeitos Cantillon:
Quando as pessoas falam de um “nível de preços”, têm em mente a imagem de um nível de um líquido que sobe ou desce de acordo com o aumento ou diminuição da sua quantidade, mas que, como um líquido num depósito, sobe sempre de forma uniforme. Mas com os preços não existe tal coisa como um “nível”. Os preços não mudam na mesma medida ao mesmo tempo. Há sempre preços a mudar mais rapidamente, a subir ou a cair mais rapidamente do que outros preços.
Um Cabaz de Erros
O IPC baseia-se num “cabaz de bens”. Isto cria uma imagem pitoresca de um cesto de verga e talvez uma manta de piquenique axadrezada que parece tão familiar. Mas não há nada de familiar na forma como o IPC é calculado.
Primeiro, para medir com precisão as variações dos preços, tem de haver consistência nos bens e serviços utilizados. Infelizmente, o BLS usa um processo de amostragem de 211 categorias diferentes de bens e serviços, ao longo de múltiplos anos, em 32 regiões geográficas distintas, para preços de 243 itens diferentes. Isto cria uma matriz de 7.776 preços item-área. Estes preços são depois ponderados de forma diversa no algoritmo “caixa negra” do IPC. Embora possa parecer apropriado usar um grande conjunto de dados, o problema é que a agregação de preços díspares ao longo de vastas regiões cria uma medição que em nada se assemelha ao verdadeiro conjunto de produtos que consumidores individuais compram ou aos preços que efectivamente pagam. O tipo, qualidade e combinação de bens adquiridos são escolhidos por indivíduos que tomam decisões únicas em circunstâncias únicas. Tentar agregar isto num “cabaz de bens” que represente produtos e preços pagos por indivíduos é duvidoso. De novo, Mises disse isto muito bem: “Uma dona de casa sensata sabe muito mais sobre alterações de preços na medida em que afectam o seu próprio lar do que quaisquer médias estatísticas conseguem dizer.”
Usar o IPC para Apoiar Decisões de Política Tem Causado Danos Financeiros
Dadas as limitações da metodologia para calcular o IPC, é inevitável que ele seja um indicador falso do estado da economia. Isto era evidente no início dos anos 2000, quando a inflação do IPC se encontrava na faixa-alvo de 2–3 por cento ao ano e a FED acreditava que a economia estava a funcionar sem problemas. Numa tentativa de “gerir” a recuperação pós-dotcom, a FED manteve uma política de moeda fácil, mantendo a federal funds rate na faixa de 1–3 por cento. Apesar do IPC “domado”, uma bolha de activos estava a desenvolver-se no imobiliário devido às baixas taxas hipotecárias. Em certas regiões, as casas estavam a valorizar a dois dígitos anualmente. Por causa do sinal falso proveniente de um IPC baixo, a Fed manteve a sua política de juros baixos até 2005–2006. A esta altura, os preços das casas tinham atingido níveis insustentáveis e isso levou ao colapso imobiliário de 2008. Sinais falsos semelhantes ocorreram em 2020–2021 durante os programas federais pós-covid. Embora houvesse um estímulo orçamental considerável, o IPC estava inicialmente contido. Quando o IPC registou um aumento significativo em 2022, o boom expansionista já ia bem avançado, empurrando o IPC acima de 9 por cento e causando prejuízos financeiros significativos ao público americano.
Conclusão
A economia começou como uma disciplina voltada para compreender os mercados e a acção humana num sentido universal e qualitativo. Contudo, isto começou a mudar no início do século XX, com a crença de que a economia poderia fornecer precisão quantitativa. Usando matemática, os economistas começaram a modelar e a fornecer prescrições políticas para “gerir” a economia. O uso que o governo federal faz do IPC é um exemplo desta arrogância.
Quer seja o facto de que não existe um nível geral de preços, de que um “cabaz de bens” não pode ser agregado de modo a representar com exactidão a experiência real dos consumidores individuais, ou da ampla evidência de que o uso do IPC tem conduzido a políticas monetárias deficientes por parte do governo federal, é claro que esta mudança metodológica tem sido um erro. A economia é uma disciplina rigorosa, mas deve regressar ao seu papel próprio como ciência qualitativa voltada para compreender mercados e acção humana, não previsões quantitativas e prescrições políticas para o estado.
Artigo publicado originalmente no Mises Institute.
- O Bureau of Labor Statistics (BLS), estabelecido em 1884, é uma unidade do Departamento do Trabalho dos Estados Unidos. É a principal agência de averiguação de factos do governo norte-americano no vasto domínio da economia e estatística do trabalho e funciona como uma das agências principais do Sistema Federal de Estatística dos EUA. ↩︎
