Não fazia muito tempo que a alvorada tinha acontecido e na freguesia havia um busto muito antigo de Camões feito em mármore fino em frente a biblioteca. A pequena praça era bem florida com umas duas oliveiras por perto e eis que surge por ali uma jovem de 19 anos de lisos cabelos e olhos castanhos se aproximando. Estava convenientemente fazendo frio e ela com seus tênis, calças jeans e um casaco de nylon preto com enchimento se aproximava cada vez mais do busto. Até que chegando, ela o observa, abre a sua bolsa e tira um vidro de super cola… Suas pernas tremiam, porém a euforia era tão forte que nada poderia segurar os seus intentos de colar as duas mãos nas orelhas do busto. Antes de começar o procedimento, ela abre o zíper do casaco e aparece a camiseta com os dizeres: Por que se preocupar tanto com a criação humana, quando não se preocupa com a natureza para as próximas gerações?
Com o casaco aberto e o tubo de cola na mão, eis que ela é interrompida por alguns gritos de uma outra mulher se aproximando, se tratava de Joana, a bibliotecária que trabalha no prédio próximo ao do busto, ela se aproximava com rapidez apesar dos calçados de salto, seu sobretudo azul real aberto esvoaçava, assim como sua saia plissada no mesmo tom de azul pouco abaixo dos joelhos e o lenço azul de seda que usava amarrado ao pescoço, tanto azul apenas era quebrado belo branco de sua camisa com botões de madrepérola. Com cabelos castanhos muito bem cacheados assim como a cor de seus olhos, a bibliotecária de 35 anos simplesmente diz:
- Não faça isso! Vais te arrepender!
E a jovem ativista responde:
- Quem deve se arrepender é a humanidade por destruir o meio ambiente, não eu por passar a mensagem!
- Não é assim que se passa uma mensagem! Calma! Tu apenas vais machucar-te, danificar o monumento e causar transtorno!
- É como então?
- Calma! Guarde este tubo de cola e vamos conversar na Biblioteca!
- Tudo bem! Mas depois vou me colar nas orelhas deste busto!
- Tu não farás isso!
- Farei sim!
- Vamos conversar primeiro…
Então as duas entram na Biblioteca e ficam nela conversando enquanto estava vazia. Joana então questiona:
- Qual é o teu nome, minha jovem?
- Benita Mourão…
- O meu é Joana Rosa!
- E o que tu tens a me dizer?
- Que é muito errado tu te machucares, danificar monumentos e causar transtornos levando a chamarem ambulância e bombeiros achando que está passando uma mensagem, pois isto não passa mensagem alguma, apenas gera asco a você e a própria mensagem. Pois se você quer combater uma ideia, deve utilizar outra ideia de modo apropriado. Pois apenas ideias derrotam ideias e somente elas podem iluminar a escuridão…
- De onde tu tirou isso de ideias serem combatidas com ideias? Se alguém tem uma ideia e você a sufoca, ou até a mata, acabou, não há mais ideia! Nós precisamos de ação, por mais escandalosa que seja, não adianta apenas falar.
- Deste livro…
Então Joana pega no balcão da biblioteca um exemplar de Socialismo: Uma Análise Económica e Sociológica de Ludwig von Mises e mostra o terceiro parágrafo do capítulo 3, que ela lê em voz alta:
- Apenas ideias podem superar ideias e apenas as ideias do capitalismo e do liberalismo que podem superar o socialismo. Apenas pela batalha de ideias que uma decisão pode ser alcançada…
E Benita então diz:
- E um tiro em quem tem as ideias ou uma ordem de prisão, não acabam com isso pelo medo?
E Joana responde:
- Na verdade isso serve apenas como um martírio, mas não como algo que para a liberdade, assim como o cristianismo floresceu no meio do paganismo romano regado pelo sangue de todos os seus mártires, qualquer outra ideia também pode… Desde que seja coerente, consistente, lógica e real.
E Benita com um ar sarcástico diz:
- Então o futuro é do islã, pois o que há de terroristas se matando em nome de uma causa não é pouco…
- É diferente, Benita, esses terroristas não são vítimas, eles não são mortos por alguém por terem ideias islâmicas, eles matam e se matam pelas ideias islâmicas, logo, não são enquadráveis no mesmo conceito de martírio que eu disse, pois é algo ativo, violento e distorcido, pois como eu disse, idéias se combatem com idéias e não com armas, pois como você já deve ter ouvido falar, ideias são à prova de balas… Você não pode destruir uma sem ser com outra melhor.
- Então por que não posso passar a minha ideia me colando ao busto, se ninguém é ferido por isso?
- Também não, pois como eu disse, esse tipo de atitude apenas casa asco a sua ideia, pois está causando transtornos…
- Tudo bem, Joana! Mas e as futuras gerações que vão herdar um planeta destruído?
- Concordo, é importante cuidar do meio ambiente, mas é necessário passar essa mensagem de um modo agradável e cativante, não causando transtornos e muito menos com agressões mais violentas. Além de que existem outras ameaças às nossas futuras gerações além da questão ambiental e que podem vir muito mais rápido do que as consequências de qualquer tipo de poluição, que de certo modo já sentimos, mas não como algo instantaneamente destrutivo, visto que até os microplásticos na água são de fato um problema…
- Que ameaças são essas além da destruição do planeta em que vivemos?
- O colapso das finanças públicas devido ao endividamento excessivo em relação ao produto interno bruto…
- Como assim?
- Benita, Portugal tem uma relação dívida pública/PIB de 98,7% de acordo com dados do ano de 2023…
- E o que isso quer dizer?
- Que o estado português deve quase tanto quanto tudo o que a economia de nossa nação produz em um único ano em todos os setores…
- Não seria apenas pegar tudo o que se produz e pagar?
- Não, pois a maior parte disso está com a iniciativa privada, o modo como o governo retira dela é através de impostos e já há uma carga tributária considerável em relação a esse produto de 35,8%, é abaixo do de outros países da União Europeia, mas ainda é bastante de qualquer modo…
- Certo, Joana, me explique por partes, cada questão de cada vez, por favor. Comecemos pela dívida pública…
- Fico contente que tenha se interessado…
- Mas antes me diga, como sabes tanto acerca dessas coisas se não és economista, mas sim bibliotecária?
- Porque eu simplesmente vivo a ler os livros da biblioteca, inclusive os de Economia.
- Então você diz que não precisa ser uma economista formada para compreender tal ciência?
- Não, basta com que eu leia os mais diversos livros acerca, não há um grande segredo, o que um título me daria seria um selo de garantia de que tive contato com tal ciência.
- Certo… Já podes me dizer acerca da dívida pública…
- Pois então, o estado quando gasta possui algumas origens para o dinheiro utilizado, em um estado genérico, seriam impostos, impressão de moeda e dívida. Mas é claro que não é necessariamente assim, há exceções históricas…
- Quais, Joana?
- O Cantão de Berna e a República de Hamburgo nos tempos de Adam Smith. O primeiro vivia de um fundo que rendia juros que eram revertidos para os gastos públicos, já o segundo vivia de renda gerada por uma casa de penhores, uma adega e uma farmácia se não me engano…
- E qual você prefere, o fundo soberano de Berna ou as empresas estatais de Hamburgo?
- O fundo soberano de Berna, sem dúvidas!
- Por que essa preferência?
- Porque essas empresas de Hamburgo eram monopólios estatais, o que é péssimo, porém vou deixar para lhe explicar em outro dia acerca disso?
- Como assim outro dia?
- Porque tu vais ter que voltar aqui para renovar ou devolver os livros que vou te indicar…
- E que livros seriam esses?
- Te digo depois que explicar essas questões, vamos tentar focar nelas…
- Certo, continue, por favor!
- Como eu ia dizendo, aquele estado é genérico e o caso dele não se aplica a Portugal, porque o Euro não está sob o controle nacional, logo, não vão imprimir mais ou menos euros especialmente para nossa nação lá em Frankfurt…
- Então a dependência está principalmente em impostos e dívida?
- Exatamente, mas mesmo se pudesse imprimir moeda não seria bom, pois gera uma força de aumento dos preços aos consumidores e produtores que possui um efeito perverso na economia e que em graus mais elevados podem destruir por completo a própria moeda.
- Mas os preços estão a subir!
- Sim, mas não apenas devido a isso, mas por vários fatores, lhe explicarei isso outro dia quando vieres aqui na biblioteca!
- Assim eu vou ter de morar nesta biblioteca, os desdobramentos dessas questões podem ir longe!
- Mas é claro que podem ir, mas conforme você ler os livros, essas questões vão se resolvendo.
- Imagino que tu entendas de muitas coisas, Joana…
Então a bibliotecária simplesmente ajeita os óculos redondos de armação dourada por sobre o nariz e diz ruborizada…
- Na verdade, quanto mais eu leio e estudo, mais eu sei que não sei, a verdade absoluta é inalcançável, porém é uma só e podemos chegar cada vez mais perto dela, mas nunca nela…
- Como assim a verdade é uma só? Cada um tem a sua verdade!
- Cada um tem a sua opinião e visão, mas isso não significa que elas sejam verdade…
- Como assim?
- Por exemplo, Benita, se eu disser que o céu é verde enquanto todos sabem que o céu é azul, se trata de alguma verdade isso?
- Talvez você tenha algum problema de visão para dizer que é verde…
- Mesmo se eu tivesse um problema de visão, ele continuaria sendo azul, apenas estaria enxergando verde por uma deficiência que não muda a realidade geral. Não podemos brigar com a realidade, mas sim reconhecer os nossos defeitos!
E com um ar triste, Benita diz:
- Entendo…
Então Joana joga os ombros para trás e diz:
- Vamos ao que estávamos falando, impostos e dívida!
- Certo…
- Toda vez que o estado faz qualquer coisa, por estar inserido no mercado, ele precisa pagar um preço com algum dinheiro que ele retira via impostos do povo de uma nação ou então toma emprestado para pagar depois com dinheiro de impostos se ele não rolar a dívida…
- Certo, e quais são as consequências dos impostos?
- Disso conversaremos outro dia, minha querida, o que posso adiantar é que eles são muito danosos, mas a dívida em si é grande questão que gostaria de te alertar hoje justamente por ela afetar as gerações futuras, assim como as questões ambientais.
- Então, que gastos do governo são esses?
- Quaisquer gastos, pode ser desde a caneta do Presidente da República até a segurança, das escolas, até os hospitais…
- Certo, mas se o governo não gastar nestas coisas, como as teremos?
- Benita, tudo no que o governo gasta tem origem de dinheiro tirado da população ou a ser retirado dela no futuro, não existe uma mágica, apenas ilusionismo…
- O que você quer dizer com isso?
- Imagine que estamos em um espetáculo do que chamam de mágica e o mágico me chama para o palco para participar do show. Ele me põe em uma caixa e começa a me serrar ao meio…
- Certo, Joana…
- Eu fico quieta e balançando as pernas na caixa enquanto ele me serra, ele divide a caixa para cada lado, faz toda aquela coreografia e reúne minhas duas partes de novo, abrindo a caixa para que saia e caminhe de volta para meu lugar no teatro.
- E o que isso tem a ver com o dinheiro do governo?
- Que se trata de uma ilusão, assim como o mágico cria a ilusão de que me dividiu em duas partes, o governo cria a ilusão de que o dinheiro dele vem do nada, ou então, principalmente dos ricos, quando na verdade a maior parte do dinheiro vem do povo mais pobre mesmo. Até porque se ele tivesse me dividido em duas mesmo, eu teria gritado, sangrado e morrido, nesse caso, se o povo não tivesse a ilusão de que o dinheiro vem do nada ou de que ele viria apenas dos ricos, ele ia gritar, sangrar e morrer até isso parar.
- Ou seja, tu dizes que o governo tira dos pobres para devolver menos aos pobres…
- Sim!
- Então, se a sociedade produz certa quantidade de bens e serviços, o governo tira parte dessa produção para ele utilizar na forma monetária em seus gastos?
- Sim!
- E a dívida pública seria uma forma de gastar mais sem tirar tanto da população, fazendo com que ela sinta-se confortável, ao mesmo tempo que adia o pagamento disso acrescido de juros para a população que aqui viver no futuro…
- Exatamente! Você conseguiu pegar o jeito!
- Então se a dívida pública continuar crescendo em relação ao produto, uma hora ela pode tornar-se impagável e gerar uma crise, visto que o estado não tem como tirar tudo o que a população produz em impostos, exceto se a economia crescer muito e o endividamento se controlar.
E com um lindo sorriso Joana diz:
- Sim!
- Agora compreendo o que desejas dizer, de que assim como luto por um meio ambiente mais preservado para as gerações futuras, de que devo lutar também contra o aumento da dívida pública e consequentemente dos gastos públicos!
- Exatamente!
- E que devo fazer isso através de uma luta de ideias e não através de atos violentos ou de perturbação…
- Sim!
- E que devo usar de estratégia para propagar essas ideias!
- Sim! Aliás, lembre-se, existe uma questão entre o dinheiro, as armas e as ideias.
- Conte-me melhor sobre, por favor!
- Geralmente o que tem atrás do dinheiro são ideias e o que tem atrás de armas são ideias também, se elas chegam a quem tem essas duas coisas, elas dominam, mas especialmente, se elas chegam a maioria da população gerando virtude, nós temos algo magnífico…
- Imagino… Enfim, esta biblioteca é pública?
- Não, ela é mantida com um fundo que vive de dividendos e juros que pagam as atividades dela e eu acredito que todo serviço de utilidade pública deveria funcionar desta maneira para poder ser acessível a toda a população sem sobrecarregar o estado e consequentemente não exigir impostos e dívida pública, que são coisas muito nocivas.
- Ou seja, você crê que o sistema educacional, de saúde, de segurança e outros deveriam ter cada um fundo gerido para mantê-los com juros e dividendos?
- Exatamente, se todos esses serviços fossem assim, qual seria a necessidade do estado de gastar e arrecadar dinheiro, ainda mais considerando que funcionaria tudo de modo autônomo e não governamental?
- Então não precisaríamos mais do estado nessa forma?
- Nessa forma nunca mais.
- Magnífico!
- Enfim, vou lhe indicar um livro para você ler, quando terminar, volte aqui na biblioteca que conversaremos mais.
- Qual é o livro?
Então Joana põe a mão embaixo do balcão e retira um exemplar de As Seis Lições de Ludwig von Mises e entrega a Benita, a jovem logo é cadastrada na biblioteca e antes de se retirar, Joana diz para ela:
- Apenas por garantia, por favor, deixe seu tubo de cola comigo…
- Tudo bem, aqui está!
- Obrigada! Não faça nada que cause transtornos, por favor!
- Tudo bem! Vou ler o livro e quando eu terminar, volto aqui e conversamos mais…
- Sobre o que você vai querer conversar?
- Sobre os impostos.
- Certo! Até mais ver!
- Até!
Então, Benita vai embora calmamente da biblioteca, folheando o livro que pegou de vez em quando. Enquanto isso, Joana continua o seu trabalho até não ter mais nada para fazer, quando então senta-se em um divã para ler alguns livros até aparecer alguém.
Fim…