O filósofo inglês do século XIX Thomas Hill Green foi uma das figuras-chave na transição do liberalismo clássico para o liberalismo “moderno”, no qual o Estado, já não sendo um mero “guarda-nocturno”, se é que alguma vez o foi, assume um papel muito mais activo. Na opinião de Green, o Estado deve ajudar as pessoas a realizarem o seu “verdadeiro eu”, o que implica muitas vezes o fornecimento de vários bens e serviços. Por esta razão, Green é considerado um dos fundadores intelectuais do Estado “social”. Mas para Green o Estado era muito mais do que um fornecedor de bem-estar. A sua função era formar as pessoas para se considerarem cidadãos livres e iguais. Tal como os pais educam os filhos num comportamento virtuoso, também o Estado deve promover uma cidadania virtuosa.
Para estabelecer que é necessário um Estado para promover uma cidadania virtuosa, Green teve de ultrapassar um obstáculo. De acordo com John Locke, os seres humanos já se consideram livres e iguais no “estado de natureza”: reconhecem a autoridade da lei natural. Porque é que precisam de um Estado? O desafio à descrição que Green faz do Estado é claro e Green tenta responder-lhe no seu livro póstumo, Lectures on the Principle of Political Obligation. Ele tenta refutar a doutrina do direito natural de Locke. Por vezes, numa ou noutra argumentação, há uma ou duas frases em que o autor “dá a cara”: a fraqueza do seu argumento torna-se evidente. Na coluna desta semana, vou tentar mostrar que isto é verdade para a crítica de Green à lei natural lockeana.
A falácia básica do argumento de Green surge na secção 53 da sua palestra sobre Locke. Diz ele:
“A igualdade na liberdade não é possível excepto para os membros de uma sociedade em que cada um reconhece um bem do todo que é também o seu, e para o qual a livre cooperação de todos é necessária. Mas se essa sociedade é suposta no estado de natureza – e de outra forma o “pacto” que estabelece a sociedade política seria impossível – ela já é, em princípio, o mesmo que a sociedade política.”
Green está a dizer que uma sociedade de pessoas que se reconhecem mutuamente como livres e iguais já é, “em princípio”, um Estado. (Ele não esclarece o que “em princípio” significa aqui.) Mas não há uma diferença evidente entre essa sociedade e um Estado, nomeadamente o facto de a sociedade não ter um aparelho central de execução?
Murray Rothbard identificou a falácia no argumento de que as pessoas não podem reconhecer a igualdade de direitos dos outros sem um Estado:
“Num sentido profundo, nenhum sistema social, seja anarquista ou estatista, pode funcionar de todo a menos que a maioria das pessoas seja “boa”, no sentido de que nem todas estão decididas a agredir e roubar os seus vizinhos. Se todos estivessem dispostos a isso, nenhuma protecção, estatal ou privada, conseguiria evitar o caos. Além disso, quanto mais as pessoas estiverem dispostas a ser pacíficas e a não agredir os seus vizinhos, mais bem sucedido será o funcionamento de qualquer sistema social e menos recursos terão de ser dedicados à protecção policial. O ponto de vista anarquista sustenta que, dada a “natureza do homem”, dado o grau de bondade ou maldade em qualquer momento, o anarquismo maximizará as oportunidades para o bem e minimizará os canais para o mal. O resto depende dos valores defendidos pelo indivíduo. O resto depende dos valores defendidos pelos membros individuais da sociedade. O único ponto adicional que precisa ser feito é que, ao eliminar o exemplo vivo e a legitimidade social do crime legalizado em massa do Estado, o anarquismo promoverá, em grande medida, valores pacíficos nas mentes do público.”
Green não pensa que uma sociedade de pessoas livres e iguais possa existir na ausência de um Estado, mas até agora não nos deu qualquer razão para supor que isso seja verdade. Numa passagem, porém, apresenta uma consideração em apoio do seu ponto de vista. O seu argumento aceita hipoteticamente a premissa de Locke de que as pessoas obedecem à lei da natureza antes do Estado existir e, com base nisso, afirma que Locke não consegue justificar o Estado. Green afirma:
“Para explicar a possibilidade do pacto de todos com todos, [o argumento de Locke de que o estado vem do estado de natureza] tem de assumir uma sociedade sujeita a uma lei da natureza que prescreve a liberdade e a igualdade de todos. Mas uma sociedade regida por essa lei da natureza, ou seja, sem qualquer imponente para além da consciência do homem, teria sido um declínio [de uma sociedade regida por um Estado], uma sociedade em que não poderia ter havido qualquer motivo para o estabelecimento de um governo civil. . . . Na medida em que realiza a concepção de uma sociedade governada por uma lei da natureza, como equivalente àquele reconhecimento espontâneo por cada um das reivindicações dos outros, sem o qual o pacto de todos com todos é de facto inexplicável, elimina qualquer aparência de necessidade para a transição do estado de natureza para o da sociedade política e tende a representar este último como um declínio do primeiro.”
(Por “imponente” Green entende uma pessoa ou grupo que tem o poder de fazer cumprir a lei da natureza).
Green está, obviamente, a convidar a pergunta. Ele está a dizer que se as pessoas pudessem seguir a lei da natureza sem a necessidade de um governo, então estabelecer um governo seria um declínio em vez de um progresso. Porque é que as pessoas se sujeitariam à coerção se pudessem viver sem ela? A premissa suprimida de Green é que estabelecer um estado não é um declínio. Sem dúvida que ele acredita nisso, mas esse não é um grande argumento para aqueles que rejeitam o Estado.
Green tem pelo menos o consolo menor de fazer um bom argumento contra Locke, que não é um anarquista? Ele está a dizer a Locke que considera o estabelecimento de um Estado como um progresso, mas se tiver razão, não seria um progresso. Seria um declínio. Mas receio que não possamos dar crédito a Green por um grande argumento, mesmo aqui. Seria necessário outro artigo para o demonstrar, mas penso, seguindo Eric Mack e A. John Simmons, que Locke está muito próximo de ser um anarquista.
Green não ofereceu nenhum bom argumento a favor desse monstro de olhos verdes, o Estado.
Artigo publicado originalmente no Mises Institute.