A relação entre moeda forte e financiamento público
Em janeiro de 2021, escrevi um artigo curto especulando sobre o seguinte cenário: considerando que Bitcoin é uma moeda superior às fiats e ao próprio ouro e considerando também que vários governos ao redor do mundo apresentam um nível insustentável de endividamento público, era de se esperar que muito em breve eles iriam começar a acumular Bitcoin, seja via mineração, seja comprando diretamente o ativo. Dado este cenário, não fiquei muito surpreso quando, poucos meses de ter escrito este artigo, o governo de El Salvador anunciou que iria iniciar o processo de acumulação de longo prazo de Bitcoin e incentivar a mineração e seu uso em território nacional, decisão que expliquei detalhadamente aqui e aqui logo quando foi anunciada.
Por mais paradoxal que pareça, também argumentei que esta mudança de paradigma monetário poderia gerar uma diminuição de impostos nas respectivas jurisdições que passassem a acumular Bitcoin, como ocorreu com a Coroa portuguesa quando descobriu grandes quantidades de ouro no Brasil no século XVIII.
Digo paradoxal pelo seguinte motivo. Historicamente, a adoção de uma moeda forte por um governo, por mais que represente uma maneira de guardar a riqueza acumulada, implica a diminuição do governo e o controle efetivo de seus gastos públicos, não sua expansão. Minha hipótese é que este processo será ainda mais dramático à medida que avançamos em direção ao padrão Bitcoin pelos motivos que explicarei a seguir.
Períodos de moeda forte significam períodos de baixa preferência temporal, alta poupança, acumulação de capital e produtividade. Períodos de moeda fraca foram períodos de alta preferência temporal, alto endividamento público e privado, alto gasto, e, no pior dos cenários, períodos de guerra. Foi assim com o denário na Roma antiga, que foi se degradando à medida que os gastos públicos foram aumentando – o denário romano tinha 95% de prata em 211 a.c. e em 274 d.c. tinha só 5% de prata. Foi assim com a Inglaterra e a libra esterlina durante as guerras napoleônicas, que precisou temporariamente romper o lastro com ouro para aumentar os gastos bélicos. E foi assim praticamente no século XX inteiro, quando, a partir de 1914, quase o mundo todo saiu do padrão ouro para arcar com os custos da Primeira Guerra Mundial e o endividamento público foi aumentando até que em 1971 rompeu-se totalmente o lastro do dólar com o ouro. Hoje, sem limite natural algum, vemos a dívida pública americana passar de USD 34 trilhões e continuar a aumentar exponencialmente.
Isso ocorre por alguns motivos. Primeiro, quando dinheiro representava um certa quantidade de metal precioso, a cunhagem de novas moedas era uma atividade custosa e a senhoriagem, isto é, o ganho que o governo tinha do monopólio da emissão da moeda, tinha seus limites claros e práticos. Como expliquei no meu artigo sobre a correta interpretação da lei de Gresham, se as leis de curso forçado obrigam a aceitação de uma moeda por um valor de face muito diferente do valor do peso do metal lá contido (essa diferença é exatamente a receita que advinda com a senhoriagem) isto faz com que o dinheiro supervalorizado artificialmente pelo governo gere expulsão do dinheiro subvalorizado artificialmente. Abusar da senhoriagem gerava a literal expulsão da boa moeda do mercado e a diminuição considerável deste tipo de receita na respectiva jurisdição. Como a senhoriagem possui estas duas limitações práticas, custo de produção e de aceitação, sobram duas opções para o financiamento público: impostos e endividamento.
Impostos são diretamente sentidos pela população, são difíceis de fiscalizar, geram uma alta insatisfação política e estão condicionados à famosa curva de Laffer: quem aumenta muito os impostos acaba por também matar a galinha dos ovos de ouro. Se os impostos são altos, os empresários simplesmente vão buscar um lugar melhor para investir seu capital ou são suprimidos pelo setor público em um fenômeno apelidado pelos economistas de crowding out. Se não há riqueza sendo gerada, não há o que se arrecadar. Simples assim.
Endividar-se em moeda forte é algo mais complicado pois o tomador do empréstimo passa uma avaliação de risco e retorno medidos em uma moeda que não perde valor ao longo do tempo e que não pode ser inflacionada com uma canetada. Se estamos falando de endividamento público, é uma decisão muito mais arriscada emprestar dinheiro para um o governo que não pode imprimir a própria moeda. Por exemplo, antes de ser degradada no século XX, a libra esterlina manteve o lastro de 4,25 libras por onça troy de ouro, um padrão que tinha sido estabelecido desde 1717 por Isaac Newton. Durante o padrão ouro, se o Reino Unido buscasse se endividar em libra esterlina, sua própria moeda corrente, a dívida seria só paga se houvesse de fato ouro em algum cofre para lastrear a moeda. Se o governo não é fiscalmente responsável e não tem um bom histórico de pagador, ele simplesmente não conseguirá mais se endividar.
Com a moeda fiat, este mecanismo que impede a excessivo endividamento público se perde. A receita que vem senhoriagem é quase infinita, por isso países caloteiros contumazes como a Argentina sempre conseguem mais empréstimos do FMI. Faltou dinheiro para pagar a dívida e não quer arcar com os custos políticos de aumentar os impostos? Imprime-se mais. Criando dinheiro a custo zero, ele consegue pagar suas contas diluindo o valor da moeda por toda sua população, que não sabe precisamente identificar as origens deste “imposto inflacionário”.
O único impedimento prático para a senhoriagem no padrão fiat está no fato de cidadãos buscarem outras moedas para transacionar ou outros bens para usar como reserva de valor. Por isso que todo país no padrão fiat cria necessariamente seu próprio “curral”, ou seja, utiliza controle de capitais e uma gama de proibições jurídicas e regulações que impedem a livre circulação de diferentes moedas em território nacional. Com a população presa neste curral, a moeda fiat na prática incentiva o endividamento público, já os governos podem oferecer como “garantia” ao empréstimo o poder de compra dos seus cidadão no futuro. Toda poupança privada em forma de moeda fiat vira uma reserva pública a ser usada via inflação segundo conveniência política do momento. Na rolagem contínua da dívida pública, ela sempre é paga primeiro a quem emprestou com dinheiro recém-criado – geralmente para fundos de investimento em dívida pública e bancos – e o custo dessa dívida é arcado por aqueles que usam esta moeda e estão na condição infeliz de estarem no final da fila do efeito Cantillon quando a moeda já vale muito menos.
A adoção do Bitcoin por qualquer governo representa rompimento radical com esta lógica. Ela é a abdicação integral das receitas que advêm com o monopólio da moeda e fazem com que nenhum governo possa mais diluir o poder de compra da população para se financiar. O governo de El Salvador já tinha renunciado a este tipo de receita desde que decidiu dolarizar sua economia em 2001, depois que sua moeda nacional colapsou. Mas mesmo assim, ao usar o dólar, o povo salvadorenho estava ajudando a financiar o governo americano. Bitcoin vai além: é a desestatização completa do dinheiro. Governo nenhum pode oferecer o poder de compra futura para pagar suas dívidas. Não há senhoriagem, já que ninguém tem o monopólio da emissão do Bitcoin. Só há duas formas de acumular Bitcoin: recebendo em troca de alguém ou minerando como qualquer outro mortal.
Desde 2021, o governo de El Salvador vai periodicamente a mercado adquirir mais Bitcoins, como podemos ver no gráfico abaixou elaborado pelo bitcointreasuries.net, que compila periodicamente os Bitcoins guardados em fundos e tesouros públicos e privados:
Para ver os gráficos de El Salvador, clique aqui
Não sabemos ainda os custos exatos das recentes aquisições agora em março de 2024. Mas, se considerarmos só os Bitcoin adquiridos entre 2021 e 2022, eles já representam uma ganho de USD 84 milhões ou +69% do valor pelo qual foram adquiridos (considerando os preços de 12 de março de 2024). Ao acumular Bitcoin em seu tesouro para o longo prazo, mesmo que represente apenas aproximadamente 13% das suas reservas internacionais totais, El Salvador conseguiu melhorar sua saúde financeira, a sustentabilidade de sua dívida e pôde adotar medidas fiscais para atrair mais investimentos.
Na semana passada, o congresso salvadorenho aprovou uma reforma tributária para remover os imposto de renda anteriormente cobrados sobre o dinheiro estrangeiro e também impostos cobrados sobre remessas estrangeiras ao país. Medidas com estas nos mostram que grande parte do aumento de impostos serve justamente para financiar o custo de rolagem de uma dívida em moeda fraca, que exige o constante aumento do endividamento para compensar sua constante depreciação. Com um padrão monetário forte, não é necessário constantemente aumentar mais impostos e o governo pode adotar medidas ficais para atrair mais investimentos.E, existem, claro, outras vantagens para um governo acumular Bitcoin em seu tesouro que vão além da questão fiscal. Como expliquei no meu artigo intitulado O Que Fernando Haddad Não Entendeu Sobre El Salvador, o Bitcoin também é inconfiscável, transparente e representa uma verdadeira soberania monetária para que o adota, seja indivíduo, empresa ou país. Como podemos ver na foto abaixo, Presidente Bukele usou um explorador de bloco para dizer ao mundo que El Salvador possui em custódia própria parte de seu tesouro em Bitcoin:
Clique aqui para ver a mensagem original
São 5.689 Bitcoins que não serão diluídos como também não podem ser desapropriados por nenhuma nação inimiga. Pode não parecer muito, mas não nos esqueçamos que há pouco tempo grande parte das reservas russas foram confiscadas e seus mais de USD 300 bilhões hoje não valem mais nada.
Para qualquer país que almeja ser próspero e livre, não há alternativa melhor ao Bitcoin.