Os libertários tendem a focar-se em duas unidades de análise importantes: o indivíduo e o estado. E, no entanto, um dos eventos mais dramáticos e significativos do nosso tempo foi a reemergência – estrondosa – nos últimos cinco anos de um terceiro e muito negligenciado aspecto do mundo real, a “nação”. Quando se pensa na “nação”, normalmente esse pensamento vem vinculado ao estado, como no termo típico, “o estado-nação”, mas este conceito pega num desenvolvimento específico dos séculos recentes e transforma-o numa máxima universal. Nos últimos cinco anos, contudo, assistimos, como um corolário do colapso do comunismo na União Soviética e na Europa de Leste, a uma decomposição vívida e assustadoramente rápida do Estado centralizado ou alegado Estado-nação nas suas demais nacionalidades constituintes. A nação genuína, ou nacionalidade, fez uma reaparição dramática na arena mundial.
I. A REEMERGÊNCIA DA NAÇÃO
A “nação”, claro, não é o mesmo que o estado, uma diferença que os primeiros libertários e liberais clássicos tais como Ludwig von Mises e Albert Jay Nock compreendiam perfeitamente. Os libertários contemporâneos muitas vezes assumem, erradamente, que os indivíduos estão ligados uns aos outros apenas através do mercado. Esquecem-se que todos nascemos enquanto membros de uma certa família, linguagem e cultura. Todos nascemos a pertencer a uma ou várias comunidades sobrepostas, incluindo tipicamente um grupo étnico com valores, culturas, crenças religiosas e tradições específicas. Nascemos geralmente num “país”. Nascemos sempre num contexto histórico específico associado a uma certa época e um certo lugar, ou seja, uma comunidade e um território.
O estado-nação Europeu moderno, o típico “poder maior”, não começou de todo como uma nação, mas sim como uma conquista “imperial” por uma nacionalidade – normalmente no “centro” do país resultante, e com base na cidade capital – de outras nacionalidades periféricas. Uma vez que uma “nação” é um conjunto de sentimentos subjectivos de nacionalidade baseados em aspectos objectivos da realidade, os estados centrais imperiais tiveram diferentes graus de sucesso em forjar um sentimento de união nacional entre as nacionalidades conquistadas à periferia que incorporasse uma submissão ao centro imperial. Na Grã-Bretanha, os Ingleses nunca conseguiram realmente erradicar as aspirações nacionais entre as nacionalidades Celtas, os Escoceses e os Galeses, apesar de o nacionalismo Córnico ter sido maioritariamente erradicado. Em Espanha, os conquistadores Castelhanos, com base em Madrid, nunca conseguiram – como o mundo testemunhou nos Jogos Olímpicos em Barcelona – apagar o nacionalismo entre os Catalães, os Bascos, ou até os Galegos ou Andaluzes. Os Franceses, saindo da sua base em Paris, nunca conseguiram banir totalmente os Bretões, os Bascos, ou o povo de Languedoque.
Hoje já se sabe que o colapso da centralizadora e imperial União Soviética Russa revelou dezenas de nacionalismos previamente suprimidos dentro da antiga U.R.S.S., e está a tornar-se cada vez mais claro que a própria Rússia, ou melhor a “República Federada Russa”, é simplesmente uma formação imperial ligeiramente mais antiga em que os Russos, afastando-se do seu centro em Moscovo, incorporaram à força muitas nacionalidades incluindo os Tártaros, os Iacutos, os Chechenos, e muitas outras. Grande parte da U.R.S.S. proveio da conquista Russa imperial no século XIX, durante a qual os Russos e os Britânicos se apoderaram de grande parte da Ásia central.
A “nação” não consegue ser definida com precisão; é uma constelação complexa e variada de diferentes formas de comunidades, línguas, grupos étnicos, ou religiões. Algumas nações ou nacionalidades, tais como os Eslovenos, constituem tanto um grupo étnico como uma língua à parte; outras, tais como os grupos em conflito na Bósnia, são membros do mesmo grupo étnico cuja língua é a mesma, mas que diferem na forma do alfabeto, e que discordam ferozmente no que toca a religião (os Sérvios Ortodoxos de Leste, os Croatas Católicos, e os Muçulmanos Bósnios, que, para complicar ainda mais a situação, eram originalmente defensores da heresia Bogomila Maniqueísta).
A questão da nacionalidade torna-se ainda mais complexa pela interacção entre a realidade objectivamente existente e as percepções subjectivas. Em alguns casos, como as nacionalidades Europeias de Leste sob os Habsburgos ou os Irlandeses sob os Britânicos, os nacionalismos, incluindo línguas submersas e às vezes em risco de desaparecer, tiveram de ser conscientemente preservados, gerados e expandidos. No século XIX isto foi feito por uma determinada elite intelectual, a lutar para reviver as periferias que viviam sob o centro imperial e que estavam parcialmente absorvidas pelo mesmo.
II. A FALÁCIA DA “SEGURANÇA COLEcTIVA”
O problema da nação tem sido agravado no século XX pela influência imponente do Wilsonianismo na política externa norte-americana e internacional. Não me refiro à ideia de “auto-determinação nacional”, que despoletou principalmente depois da 1ª Guerra Mundial, mas sim ao conceito de “segurança colectiva contra agressão”. O erro fatal deste conceito sedutor é que trata os estados-nação em analogia como agressores individuais, e a “comunidade internacional” como um polícia em patrulha. O polícia, por exemplo, vê A a agredir, ou a roubar a propriedade, de B; o polícia naturalmente intervém para defender a propriedade privada de B na sua pessoa ou pertences. Da mesma forma, assume-se que as guerras entre duas nações ou estados funcionam de maneira semelhante: o Estado A invade, ou “agride”, o Estado B; o Estado A é então designado como o “agressor” pelo “polícia internacional” ou o seu equivalente pressuposto, seja a Liga das Nações, as Nações Unidas, o Presidente ou Secretário de Estado dos E.U.A., ou o editorial de Agosto do jornal New York Times. E então é suposto a força policial mundial, qualquer que ela seja, entrar rapidamente em acção para parar o “princípio da agressão”, ou para evitar que o “agressor”, seja ele Saddam Hussein ou as guerrilhas Sérvias na Bósnia, consiga cumprir os seus objectivos presumidos de atravessar a nado o Atlântico e chacinar todos os residentes de Nova Iorque ou Washington, D.C.
Um erro crucial nesta linha de argumentação popular vai para além do que a típica discussão sobre se o poder aéreo ou as tropas americanas conseguem realmente erradicar os iraquianos ou os sérvios sem muita dificuldade. O erro crucial é a suposição implícita de toda esta análise: que cada Estado-nação “possui” toda a sua área geográfica da mesma forma justa e adequada como cada proprietário privado possui a sua pessoa e os bens que herdou, pelos quais trabalhou ou que obteve por meio de troca voluntária. Será que a fronteira do Estado-nação típico é realmente tão justa ou inquestionável quanto a minha casa, património ou fábrica, ou os do leitor?
Parece-me que não só o liberal clássico ou o libertário, como também qualquer pessoa de bom senso que pense sobre este problema, deverá responder com um redondo “Não”. É absurdo considerar todo o Estado-nação, com sua fronteira auto-proclamada tal como existe em qualquer momento, como sendo de alguma forma correcto e sacrossanto, cada um com a sua “integridade territorial” a manter-se tão intocada e inviolada quanto a minha integridade corporal ou propriedade privada ou as do leitor. Invariavelmente, claro, essas fronteiras foram adquiridas através de força e violência, ou por um acordo inter-estatal aquém da vontade dos habitantes locais, e invariavelmente essas fronteiras mudam consideravelmente ao longo do tempo, de maneiras que tornam quaisquer proclamações de “integridade territorial” verdadeiramente ridículas.
Peguemos, por exemplo, na confusão actual na Bósnia1. Há apenas alguns anos atrás, a opinião típica do Sistema, o “ponto assente” proveniente da esquerda, direita ou centro, proclamava ruidosamente a importância de manter a “integridade territorial” da Jugoslávia e denunciava amargamente todos os movimentos separatistas. Agora, pouco tempo depois, o mesmo Sistema, que até recentemente defendia os sérvios como campeões da “nação jugoslava” contra movimentos separatistas maliciosos que tentavam destruir essa “integridade”, agora difama-os e procura esmagar os sérvios por “agressão” contra a “integridade territorial” da “Bósnia” ou da “Bósnia-Herzegovina”, uma “nação” inventada que na verdade era tão inexistente como a “nação de Nebraska” antes de 1991. Mas estes são os riscos em que nos envolvemos se continuarmos presos pela mitologia do “Estado-nação” cuja fronteira aleatória no tempo t deve ser defendida como uma entidade proprietária com seus próprios “direitos” sagrados e invioláveis, numa tentativa profundamente fracassada de analogia com os direitos de propriedade privada.
Adoptemos uma excelente estratégia de Ludwig von Mises ao abstrairmo-nos das emoções contemporâneas: postulemos dois Estados-nação contíguos, a “Ruritânia” e a “Fredónia”. Suponhamos que a Ruritânia tinha invadido repentinamente o leste da Fredónia, reivindicando-o como seu. Devemos automaticamente condenar a Ruritânia pelo seu acto maligno de “agressão” contra a Fredónia e enviar tropas, seja literalmente ou metaforicamente, contra os brutais ruritanos e em defesa da “brava, pequena” Fredónia? De modo algum. Pois é bem possível que, por exemplo, há dois anos, o leste da Fredónia tivesse sido parte integrante da Ruritânia, que fosse de facto a parte ocidental da Ruritânia, e que os ruritanos, habitantes étnicos e nacionais da terra, estivessem a insurgir-se nos dois últimos anos contra a opressão fredoniana. Em resumo, no que toca às disputas internacionais em particular, nas imortais palavras de W. S. Gilbert:
“Things are seldom what they seem,
Skim milk masquerades as cream.”[“As coisas raramente são o que parecem,
Leite desnatado faz-se passar por natas.”]
O adorado polícia internacional, seja Boutros Boutros-Ghali ou as tropas dos E.U.A. ou o editorial do New York Times, deve pensar muito bem antes de se lançar à briga.
Os norte-americanos são especialmente inadequados para o seu auto-proclamado papel Wilsoniano de moralistas e polícias internacionais. O nacionalismo nos E.U.A. é peculiarmente recente, e é mais uma mera ideia do que algo enraizado em grupos étnicos ou grupos nacionais ou conflitos históricos de longa data. Acrescente-se a isso o facto crucial de que os norte-americanos praticamente não têm memória histórica, o que os torna particularmente inadequados para intervir nos Balcãs, onde quem tomou qual lado e em que lugar na guerra contra os invasores turcos no século XV é muito mais real para a maioria dos contendores desse território do que o jantar de ontem.
Os libertários e liberais clássicos, que estão particularmente bem equipados para repensar toda a área turva do Estado-nação e política externa, têm estado demasiado envolvidos na Guerra Fria contra o comunismo e a União Soviética para participarem numa reflexão fundamental sobre estas questões. Agora que a União Soviética desmoronou e que a Guerra Fria acabou, talvez os liberais clássicos se sintam finalmente livres para pensar novamente sobre estes problemas de importância crítica.
III. REPENSANDO A SECESSÃO
Para começar, podemos concluir que nem todas as fronteiras dos estados são justas. Um objectivo para os libertários deveria ser transformar os Estados-nação existentes em entidades nacionais cujas fronteiras possam ser consideradas justas, no mesmo sentido em que as fronteiras de propriedade privada são justas; ou seja, decompor os Estados-nação coercivos existentes em nações genuínas, ou nações por consentimento.
No caso, por exemplo, dos fredonianos do Leste, os habitantes deveriam poder separar-se voluntariamente da Fredónia e juntar-se aos seus camaradas na Ruritânia. Mais uma vez, os liberais clássicos devem resistir ao impulso de dizer que as fronteiras nacionais “não fazem diferença”. É claro que, como os liberais clássicos proclamam há muito tempo, quanto menor for o grau de intervenção estatal, menor será a diferença que uma fronteira fará. Mas mesmo sob um estado mínimo, as fronteiras nacionais ainda fariam diferença, muitas vezes uma grande diferença para os habitantes da área. Em que língua — ruritana ou fredoniana, ou ambas — seriam escritas as placas de rua, as listas telefónicas, os processos jurídicos ou as aulas escolares da área?
Em resumo, todos os grupos, todas as nacionalidades, deveriam poder separar-se de qualquer Estado-nação e juntar-se a qualquer outro Estado-nação que queira aceitá-los. Esta reforma simples contribuiria muito para estabelecer nações por consentimento. Os escoceses, se assim quiserem, deveriam ter a autorização dos ingleses para deixar o Reino Unido e se tornarem independentes, e até mesmo para se juntarem a uma Confederação Gaélica, se os constituintes o desejassem.
Uma reacção comum perante a ideia de um mundo de nações em proliferação é a preocupação com a quantidade de barreiras comerciais que poderiam ser erguidas. Mas, ceteris paribus, quanto maior o número de novas nações, e menor o tamanho de cada uma, melhor. Pois seria muito mais difícil semear a ilusão de auto-suficiência se o slogan fosse “Compre da Dakota do Norte” ou até “Compre da Rua 56” do que é hoje em dia convencer o público a “Comprar da América”. De modo semelhante, “Abaixo a Dakota do Sul” ou “Abaixo a Rua 56” seriam slogans mais difíceis de vender do que, por exemplo, espalhar o medo ou ódio aos japoneses. Da mesma forma, os absurdos e as consequências infelizes do papel-moeda fiduciário seriam muito mais evidentes se cada província ou cada bairro ou quarteirão imprimisse a sua própria moeda. Um mundo mais descentralizado seria muito mais propenso a recorrer a uma mercadoria sólida, como o ouro ou a prata, enquanto moeda.
IV. O MODELO ANARCO-CAPITALISTA PURO
Trago o modelo anarco-capitalista puro para este artigo, não tanto para defendê-lo per se, mas sim para propô-lo como um guia para resolver as disputas actuais sobre nacionalidade. O modelo puro, para simplificar, é que nenhuma área de terra, nenhum metro quadrado do mundo, permanecerá “público”; cada metro quadrado de terra, sejam ruas, praças ou bairros, será privatizado. A privatização total ajudaria a resolver os problemas de nacionalidade, muitas vezes de maneiras surpreendentes, e sugiro que os Estados existentes, ou os Estados liberais clássicos, tentem aproximar-se desse sistema, mesmo que algumas áreas de terra continuem na esfera governamental.
Fronteiras Abertas, ou o Problema do Livro “The Camp of The Saints”
A questão das fronteiras abertas, ou imigração livre, tornou-se um problema crescente para os liberais clássicos. Isto deve-se, primeiro, ao facto de o estado social subsidiar cada vez mais os imigrantes para entrarem e receberem assistência permanente, e segundo, porque as barreiras culturais tornaram-se cada vez mais evidenciadas. Comecei a repensar a minha visão sobre a imigração quando, com o colapso da União Soviética, se tornou claro que os russos étnicos tinham sido encorajados a inundar a Estónia e a Letónia com o intuito de destruir as culturas e línguas destes povos. Anteriormente, era fácil descartar como irrealista o romance anti-imigração de Jean Raspail, “The Camp of The Saints”, no qual praticamente toda a população da Índia decide mudar-se, em pequenos barcos, para França, e os franceses, infectados pela ideologia liberal, não conseguem reunir a força de vontade suficiente para evitar a destruição económica e cultural da sua nação. À medida que os problemas culturais e do estado social se intensificaram, tornou-se impossível continuar a ignorar as preocupações de Raspail.
No entanto, ao repensar a imigração com base no modelo anarco-capitalista, tornou-se claro para mim que um país totalmente privatizado não teria “fronteiras abertas” de maneira alguma. Se cada pedaço de terra num país fosse propriedade de alguma pessoa, grupo ou empresa, isso significaria que nenhum imigrante poderia entrar lá a menos que fosse convidado a entrar e autorizado a alugar ou comprar propriedade. Um país totalmente privatizado seria tão “fechado” quanto os habitantes e proprietários das terras desejassem. Parece, portanto, claro que o regime de fronteiras abertas que existe de facto nos EUA realmente equivale a uma abertura compulsória por parte do estado central, o estado responsável por todas as ruas e terrenos públicos, e não reflecte genuinamente os desejos dos proprietários.
Com a privatização total, muitos conflitos locais e problemas de “externalidades” — não apenas o problema da imigração — seriam resolvidos de forma organizada. Sendo cada localidade e bairro propriedade de empresas privadas, corporações ou comunidades contratuais, a verdadeira diversidade reinaria, de acordo com as preferências de cada comunidade. Alguns bairros seriam etnicamente ou economicamente diversos, enquanto outros seriam etnicamente ou economicamente homogéneos. Algumas localidades permitiriam pornografia, prostituição, drogas ou abortos, enquanto outras proibiriam qualquer ou todas estas práticas. As proibições não seriam imposições do estado, mas sim requisitos para a residência ou uso de determinada área de terra pertencente a uma pessoa ou comunidade. Embora os estatistas que tenham o desejo de impor os seus valores a todos os outros ficassem desapontados, cada grupo ou interesse teria pelo menos a satisfação de viver em bairros de pessoas que partilham os seus valores e preferências. Embora a propriedade dos bairros não forneça uma Utopia ou uma panaceia para todo o conflito, pelo menos ofereceria uma solução que seria uma “segunda melhor alternativa” com a qual a maioria das pessoas poderia estar disposta a viver.
Enclaves e Exclaves
Um problema óbvio com a secessão de nacionalidades de estados centralizados concerne às áreas mistas, ou enclaves e exclaves. Decompor o inchado estado-nação central da Jugoslávia em partes constituintes resolveu muitos conflitos ao proporcionar nações independentes para os eslovenos, sérvios e croatas. Mas e a Bósnia, onde muitas cidades e vilas são mistas? Uma solução é encorajar mais do mesmo, através de ainda mais descentralização. Se, por exemplo, a Sarajevo oriental for sérvia e a Sarajevo ocidental for muçulmana, então tornam-se partes das suas respectivas nações separadas.
Mas isto, claro, resultará num grande número de enclaves, isto é, partes de nações cercadas por outras nações. Como pode isso ser resolvido? Em primeiro lugar, o problema dos enclaves/exclaves existe hoje mesmo. Um dos conflitos mais intensos que existem, no qual os E.U.A. ainda não intervieram porque ainda não foi mostrado na CNN, é o problema de Nagorno-Karabakh, um exclave arménio totalmente cercado e, portanto, formalmente dentro do Azerbaijão. Nagorno-Karabakh deveria claramente fazer parte da Arménia. Mas, como é que os arménios de Karabakh evitarão o seu destino actual de bloqueio pelos Azeris e como é que evitarão conflitos militares ao tentarem manter um corredor terrestre aberto para a Arménia?
Com a privatização total, claro, estes problemas desapareceriam. Actualmente, ninguém nos E.U.A. compra um terreno sem primeiro obter um título claro sobre esse terreno; da mesma forma, num mundo totalmente privatizado, os direitos de acesso seriam obviamente uma parte crucial da propriedade dos terrenos. Num mundo assim, então, os proprietários de Karabakh certificar-se-iam que tinham adquirido direitos de acesso através de um corredor terrestre Azeri.
A descentralização também proporciona uma solução viável para o aparentemente irresolúvel conflito permanente na Irlanda do Norte. Quando os britânicos dividiram a Irlanda no início dos anos 1920, concordaram em realizar uma segunda partição, mais “micro-gerida”. Nunca cumpriram esta promessa. No entanto, se os britânicos permitissem um referendo com uma votação rigorosa, paróquia a paróquia, para a partição na Irlanda do Norte, a maior parte da área terrestre, que é maioritariamente católica, provavelmente separar-se-ia e juntar-se-ia à República: concelhos tais como Tyrone e Fermanagh, sul de Down e sul de Armagh, por exemplo. Os protestantes provavelmente ficariam com Belfast, concelho de Antrim e outras áreas a norte de Belfast. O principal problema remanescente seria o enclave católico dentro da cidade de Belfast, mas novamente, uma abordagem segundo o modelo anarco-capitalista poderia ser alcançada permitindo a compra de direitos de acesso ao enclave.
Na impossibilidade da privatização total, é claro que o nosso modelo poderia ser aproximado e os conflitos minimizados, permitindo secessões e controlo local, até ao nível de micro-bairros, e desenvolvendo direitos de acesso contratuais para enclaves e exclaves. Nos EUA, torna-se importante, ao avançar para tal descentralização radical, que os libertários e liberais clássicos — de facto, muitos outros grupos minoritários ou dissidentes — comecem a colocar a maior ênfase na esquecida Décima Emenda e tentem decompor o papel e o poder do Supremo Tribunal centralizador. Em vez de tentarem colocar pessoas da sua própria persuasão ideológica no Supremo Tribunal, o poder deste deveria ser reduzido e minimizado tanto quanto possível e decomposto em corpos jurídicos federais ou mesmo locais.
Cidadania e Direitos Eleitorais
Um problema frustrante actual centra-se em quem se torna cidadão de um determinado país, já que a cidadania confere direitos eleitorais. O modelo anglo-americano, no qual cada bebé nascido no território do país se torna automaticamente cidadão, claramente encoraja a imigração de pais expectantes à procura de subsídios. Nos E.U.A., por exemplo, um problema actual são os imigrantes ilegais cujos bebés, se nascidos em solo americano, tornam-se automaticamente cidadãos e, portanto, têm direito a subsídios permanentes e cuidados médicos gratuitos. Claramente, o sistema francês, no qual é necessário ser-se filho de um cidadão para se tornar automaticamente cidadão, está muito mais próximo da ideia de uma nação por consentimento.
É também importante repensar todo o conceito e função do voto. Será que alguém deveria ter sequer um “direito” de votar? Rose Wilder Lane, a teórica libertária dos E.U.A. de meados do século XX, foi uma vez questionada se acreditava no sufrágio feminino. “Não”, respondeu ela, “e também sou contra o sufrágio masculino.” Os letões e estonianos abordaram de forma convincente o problema dos imigrantes russos permitindo-lhes permanecer como residentes, mas sem lhes conceder cidadania e, portanto, o direito de votar. Os suíços acolhem trabalhadores temporários, mas desencorajam severamente a imigração permanente e, a fortiori, a cidadania e o voto.
Voltemos, para esclarecimento, ao modelo anarcocapitalista. Como seria o voto numa sociedade totalmente privatizada? Não só o voto seria diversificado, mas, mais importante, quem realmente se importaria? Provavelmente, a forma de voto mais profundamente satisfatória para um economista é a corporação, ou sociedade anónima, na qual o voto é proporcional à porção de propriedade dos activos da empresa. Mas também existe, e existiria, uma panóplia de clubes privados de todos os tipos. Geralmente assume-se que as decisões dos clubes são tomadas com base em um voto por membro, mas isso geralmente não é verdade. Os clubes mais bem administrados e mais agradáveis são, sem dúvida, aqueles geridos por uma pequena oligarquia auto-perpetuante dos mais capazes e interessados, um sistema mais agradável, não só para o membro comum sem direito a voto, como também para a elite. Se eu sou um membro comum de, digamos, um clube de xadrez, por que razão é que eu deveria preocupar-me com votar se estou satisfeito com a forma como o clube é gerido? E se eu estiver interessado em gerir as coisas, provavelmente seria convidado para juntar-me à elite governante pela oligarquia grata, sempre à procura de membros energéticos. E, finalmente, se eu estiver insatisfeito com a forma como o clube é gerido, posso facilmente sair e juntar-me a outro clube, ou mesmo formar o meu próprio clube. Essa, claro, é uma das grandes virtudes de uma sociedade livre e privatizada, quer estejamos a considerar um clube de xadrez ou uma comunidade contratual de bairro.
Claramente, à medida que começamos a avançar em direcção ao modelo puro, à medida que mais e mais áreas e partes da vida se tornam privatizadas ou “micro-descentralizadas”, menos importante se tornará o voto. Claro que estamos longe deste objectivo. Mas é importante começarmos, e em particular mudarmos a nossa cultura política, que trata a “democracia” ou o “direito” de votar como o bem político supremo. De facto, o processo de voto deveria ser considerado trivial e pouco importante na melhor das hipóteses, e nunca um “direito”, excepto enquanto um possível mecanismo derivado de um contrato consensual. No mundo moderno, a democracia ou o voto são importantes apenas para um indivíduo se juntar ao governo ou ratificar o uso do mesmo para controlar outros, ou então para usá-lo como uma forma de evitar que o próprio ou o seu grupo sejam controlados por outros. Contudo, o voto é, na melhor das hipóteses, um instrumento ineficaz de autodefesa, e é muito melhor substituí-lo pela decomposição completa do poder do governo central.
Em suma, se procedermos com a decomposição e descentralização do estado-nação moderno centralizador e coercivo, desconstruindo esse estado nas respectivas nacionalidades e bairros constituintes, iremos, ao mesmo tempo, reduzir a extensão do poder governamental, a extensão e a importância do voto, e a extensão do conflito social. A extensão do contrato privado e do consentimento voluntário será ampliada, e o estado artificial, brutal e repressivo será gradualmente dissolvido numa ordem social orgânica, harmoniosa e cada vez mais próspera.
- Este artigo foi publicado no Outono de 1994 (n. do t.) ↩︎
Publicado originalmente em “The Journal of Libertarian Studies”.