Je sais moi de sorciers qui invoquent les jets
dans la jungle de Nouvelle-Guinée.
Ils scrutent le zénith convoitent les guinées
que leur rapporterait le pillage du fret.
Serge Gainsbourg – Cargo CulteEu sei de feiticeiros que invocam os jactos
na selva da Nova Guiné.
Eles perscrutam o zénite cobiçando os guinéus
que lhes trará a pilhagem do frete.
Nas selvas, até há bem pouco impenetráveis, da Nova Guiné e nas ilhas isoladas da Micronésia, os nativos desenvolveram uma religião a que os antropólogos deram o nome de Culto da Carga. O culto começou a desenvolver-se no século XIX, quando os missionários chegaram à região. Confrontados com os objectos da civilização ocidental, e sem compreender como estes tinham sido fabricados, os nativos dedicaram-se a rituais mágicos na esperança de poder obter dos deuses os mesmos favores. A prática tornou-se especialmente notória depois da Segunda Guerra Mundial. Durante o conflito, japoneses e norte-americanos utilizaram muitas destas ilhas remotas como bases militares onde os aviões estacionavam e se abasteciam. Grandes aviões de carga mantinham estas bases apetrechadas de materiais e alimentos. Desde então, descobriram-se alguns casos de pistas de aviação desbravadas na selva, onde os nativos construíram, normalmente com madeira, rudimentares torres de controlo e, inclusivamente, rádios, auriculares e toda a parafernália que normalmente vemos nos aeroportos. Para aumentar o realismo da recriação, comportavam-se imitando os gestos que viam fazer aos trabalhadores aeroportuários. O objectivo era atrair os grandes aviões, que viam planar no céu imenso, de modo a aterrarem e entregarem a sua carga, tal como haviam visto acontecer antes [1].
Ainda que estes povos nos pareçam atrasados, eles não actuavam de forma distinta dos demais humanos. Utilizavam a ferramenta mais importante de que o homem dispõe para sobreviver e prosperar – a Razão Humana. O Culto da Carga é resultado de uma faculdade da Razão – a determinação de relações causa-efeito. Carl Menger, fundador da Escola Austríaca, começa os seus Princípios Económicos com a frase: «Todas as coisas estão sujeitas à lei da causa-efeito»[2]. Para todos os efeitos esta é a frase inaugural do pensamento da Escola Austríaca. A faculdade de inferir relações causa-efeito, mais do que uma faculdade que caracteriza os seres humanos, é uma condição sine qua non para que o homem possa actuar sobre o que o rodeia. Ludwig von Mises, no seu tratado sobre a acção humana, diz:
«O Homem está numa posição que lhe permite agir porque tem a capacidade de descobrir relações causais que determinam mudança e devir no universo. […] Num mundo sem causalidade e regularidade de fenómenos, não haveria lugar para o raciocínio humano nem para a acção humana. Tal mundo seria um caos em que o Homem se encontraria perdido, impossibilitado de encontrar orientação ou sentido. O Homem não é sequer capaz de imaginar as condições de tão caótico universo.»[3]
Na Inglaterra de meados do séc. XVII, existiu um movimento que propunha uma maior aplicação das lei contra a usura. Durante toda a idade média os escolásticos discutiram o pecado da usura dando lugar a preceitos morais que ora restringiam, ora ampliavam a amplitude do termo usura. Transformar estas reflexões morais em leis económicas só necessitou a existência de governos dispostos reger a esfera moral dos indivíduos algo que, infelizmente, tem sido mais a constante que a excepção na História. Tradicionalmente as leis da usura não permitiam cobrar um juro superior a 10%[4].
Voltando à Inglaterra de meados do XVII, dois Culpeper, pai e filho, foram os principais instigadores na elaboração de leis que reduzissem a taxa a partir da qual um empréstimo se consideraria usura. Para além da argumentação moral[5], a argumentação económica era que a Holanda se encontrava em melhor situação económica porque tinha uma taxa de juro mais baixa.
Por muito que os seus adversários políticos respondessem, e bem, que as baixas taxas de juro na Holanda eram consequência e não causa da existência de mais capital, a taxa de juro máxima que se podia aplicar por lei passou paulatinamente de 10% para 8% e depois para 6%. Quando os defensores de reduzir a taxa de juro tentaram leva-la para 4% encontraram-se com a oposição de John Locke que veio a ser conhecido como um dos pais do Liberalismo[6]. No entanto esta redução de taxas de juro não foi obtida através de políticas monetárias de emissão de moeda por parte de bancos centrais. Teríamos que esperar mais de meio século para que isso acontecesse. Tudo o que se fez foi decretar um limite a partir do qual era proibido emprestar. O mercado negro encarregou-se de que o crédito acima desse nível não desaparecesse, mas mais pessoas passaram a estar fora da lei se decidiam emprestar dinheiro (com a insegurança jurídica que isso acarreta). As empresas mais solidamente instaladas, como a East India Company, que eram as que já beneficiavam de taxas de juro mais favoráveis, passaram a ter acesso quase exclusivo a dinheiro a crédito no mercado legal, funcionando estas leis como uma barreira à concorrência.
Foi só no início do séc. XVIII que apareceram os inflacionistas. John Law desenvolveu uma teoria monetária em 1705 que pedia a criação de um banco central que emitisse papel-moeda não-convertível. A justificação era que o aumento da oferta de dinheiro não ia provocar um aumento dos preços porque, simultaneamente, aumentaria o emprego e a produção – um verdadeiro Keynesiano. Curiosamente, os argumentos de Law também se basearam numa interpretação errónea do caso holandês, que foi a inveja das nações durante todo o sec XVII. Os britânicos prudentemente recusaram as recomendações de Law mas, infelizmente, tiveram aceitação em França e Law acabou por ser o principal responsável pela «Borbulha do Mississipi». Law fundou o Banque Générale Privée que emitia notas que foram garantizadas pelo monarca francês o que começou uma borbulha imobiliária do preço dos terrenos na colónia americana que fomentou outra na Bolsa de Paris entre 1717 e 1720. Estas foram abruptamente terminadas com a exigência, por parte dos detentores das notas, de redimi-las em espécie. Foi por essa altura que o termo «milionário» foi criado[7].
Se gente culturalmente remota em épocas actuais e gente culturalmente próxima em épocas transactas confundiram causas e efeitos de maneira desastrosa, porque não gente culturalmente próxima na época actual? O exemplo inglês de induzir a prosperidade através de uma política de redução artificial de taxas de juro não soa tão estranho aos nossos ouvidos. Foi a política monetária que a maioria dos governos ocidentais escolheram seguir, pelo menos nos últimos 30 anos. A FED tem como duplo objectivo controlar a inflação e promover o crescimento económico. Inflação enquanto subida de preços, porque a inflação como fenómeno monetário de aumento da oferta de moeda[8] é provocada pela própria actuação da FED e pelo efeito multiplicador da reserva fraccionária do sistema bancário. O BCE, à boa maneira do Bundesbank apenas se propunha combater a inflação. Na prática, a actuação destas duas instituições foi quase idêntica.
Não obstante, nenhum dos dois quis ou pôde ver que a política de taxas de juro artificialmente baixas, apesar de um impacto negligenciável nos índices de preços escrutinados pelas estatísticas, estava a provocar níveis intoleráveis de inflação monetária que se traduziu num aumento, com poucos precedentes históricos, do preço dos activos – nomeadamente habitação e activos financeiros. Como se de canibais redutores de cabeças da Nova-Guiné se tratassem, a maior parte dos economistas acreditaram que as baixas taxas de juro provocaram crescimento económico, reflectido pela subida dos preços dos activos quando, em realidade, a essa apreciação não se correspondeu um aumento da riqueza geral. Pelo contrário, a descida de taxas de juro permitiu a ilusão de maior riqueza disponível para consumir quando, afinal, esse aumento do consumo estava a ser permitido pela diminuição das poupanças, ao mesmo tempo que os preços dos activos (que se supõe serem o valor de actual da riqueza futura) mantinham a ilusão de que esse nível de consumo era sustentável a longo prazo.
Para agravar a situação, a distorção de preços provocada pelas baixas taxas de juro permitiu que projectos de baixa rentabilidade, e a muito longo prazo, fossem aprovados e iniciados. Num mercado livre, uma situação de taxas de juro elevadas significa que existe pouca poupança disponível ou, o que é vem a ser o mesmo, pouca capacidade disponível para empregar recursos em projectos que só podem ser rentáveis a longo prazo [9]. Isto porque os aforradores em geral estimam que vão necessitar esses recursos para outros fins antes de esse projecto poder dar frutos. Um exemplo básico: numa economia de subsistência em que as pessoas mal têm para comer, é impossível que estas se dediquem a construir pirâmides porque é preciso alimentar todos os trabalhadores que as estão a construir e, como estes não se podem dedicar à caça nem à agricultura durante todo esse período, a comida acabaria muito antes de as pirâmides estarem concluídas. Quando admiramos as pirâmides do Egipto podemos estar seguros de que se construíram porque o Egipto era rico e não que o Egipto era rico porque construiu as pirâmides, apesar de tudo o que os proponentes da obra pública como motor do desenvolvimento de uma nação possam dizer em contrário.
Uma faculdade humana que ao longo dos tempos provou ser uma ferramenta ímpar na paulatina consagração do Homo Sapiens como senhor absoluto do planeta pode ser responsável por situações com consequências desastrosas – o Homem Racional também pode ser o maior inimigo de si mesmo.
Vemos pois que o nosso particular Culto à Carga não difere muito do dos selvagens da Micronésia. Ambos sobre-consumiram e sobre-investiram recursos em meios que, vistas as coisas, não lhes vão permitir obter os fins desejados com a agravante que, os nativos dessas paragens do Oceano Pacífico não dispunham de uma teoria económica que os pusesse de sobre-aviso sobre as consequências dos seus actos. Ou se calhar, até sim mas, tal como nós, decidiram ignorá-la baseando-se exclusivamente nos dados empíricos retirados da experiência [10].
Não querendo ou podendo ser exaustivo sobre a maneira como os seres humanos apreendem a realidade é possível afirmar que existem fenómenos materiais que se repetem no Universo. A Física é a ciência que tenta explicar a matéria e o correcto funcionamento das forças que a movimenta. Apesar de serem fenómenos exteriores ao ser humano (e como tal nunca nos será possível compreender o fim último da sua existência) podemos, através da uma observação rigorosa, extrair conclusões sobre a mecânica de determinado fenómeno, acumulando informação ao ponto de, a partir de determinado momento, podermos formular hipóteses sobre qual vai ser o comportamento das forças e condições que nele influem. Mas, à medida que entramos no campo da Vida, a complexidade de inter-relações que determinam os fenómenos vão aumentando ao ponto de, quando o objecto de estudo é o ser humano, a complexidade ser incomportável para a capacidade da mente humana e nem sequer podermos estar seguros de que exista determinação completa. A Biologia é uma ciência com um grau de complexidade muito superior à Física e, por sua vez, a Economia é incomensuravelmente mais complexa que a Biologia[11].
A ilusão de que isto não é assim resulta tão somente de que enquanto que a Física é totalmente exterior ao ser humano (exceptuando o facto de que também o ser humano é constituído por matéria) a economia é totalmente inerente ao ser humano. Enquanto que para a Física não podemos chegar a compreender nunca as finalidades dos fenómenos estudados, em Economia todo e cada um dos seres humanos tem um conhecimento implícito destes fins. Quando os telejornais saem à rua a perguntar às pessoas sobre a situação económica toda a gente está habilitada a dar uma resposta (mais ou menos elaborada, falaciosa, claramente equivocada, com sentido comum, não importa, o que importa é que quase ninguém se coíbe de opinar). Se, no entanto, saíssem à rua a perguntar o que é que as pessoas pensam da Lei da Gravidade Newtoniana, o mais provável seria que ninguém respondesse mas, se alguém o fizesse, diria tão somente que a força da gravidade é inversamente proporcional ao quadrado da distancia entre dois corpos e não se abriria nenhum debate sobre a questão.
E no entanto, a Ciência Económica moderna quer parecer-se mais à Física. O mal-chamado Prémio Nobel da Economia é tão só um prémio que os economistas inventaram para poder gozar de um estatuto semelhante ao dos físicos no mundo académico. A Física tem um estatuto no que diz respeito à capacidade de previsão a que os economistas de nenhuma maneira se podem aproximar. O que estes últimos parecem não ter em consideração é que estudam fenómenos de muito maior complexidade pelo que o nunca melhor chamado «complexo» de inferioridade de que sofrem é descabido. Mas, tal como os selvagens, confundem causa e efeito e acreditam que aproximando-se aos métodos da física podem aumentar o conhecimento da ciência económica, sem se aperceberem que estão a retirar o ser humano do objecto desse conhecimento. A Ciência Económica como conhecimento exterior e independente do ser humano é totalmente inútil.
Para a compreensão dos fenómenos sociais, qualquer cientista têm que ter presente que a Teoria é anterior à História e, como tal, os acontecimentos passados não podem ser utilizados como base para formular uma Teoria que explique o futuro. Isto não significa desdenhar o papel da experiência na aquisição de conhecimentos que nos permitam elaborar melhores teorias. Quer dizer tão só que é impossível retirar da História dados quantitativos avulso sem ter uma qualquer teoria a priori sobre que informação qualitativa e quantitativa é relevante. Por muito empirismo que se reclame no momento de apresentar um estudo, o processo mental que todo e qualquer «empiricista» seguiu foi o de formar a teoria antes e depois procurar nos acontecimentos históricos dados que lhe permitam confirmar essa teoria. No entanto, o economista pode escolher ignorar toda a informação que o seu conhecimento da existência humana lhe proporciona e cingir-se apenas a dados mensuráveis mas, ao fazê-lo, corre o risco de confundir causa e efeito porque os dados empíricos não podem determinar a direcção da relação. A utilização de informação exclusivamente empírica pode, e normalmente resulta, na elaboração de teorias impregnadas de falácias do tipo Post Hoc, Ergo Propter Hoc (depois disso, logo causado por isso) que, por muita sofisticação que aparentem, cometem o mesmo erro infantil de tribos que vivem em ilhas perdidas no meio de um imenso oceano.
Referências
- Para uma ideia introdutória sobre o tema: Burridge, K. (1960). Mambu: A study of Melanesian cargo movements and their social and ideological background. London: Methuen ↩︎
- «All things are subject to the law of cause and effect» Carl Menger, Economic Principles (1871), Mises Institute, 2007, Chapter I. ↩︎
- «Man is in a position to act because he has the ability to discover causal relations which determine change and becoming in the universe. […] In a world without causality and regularity of phenomena there would be no field for human reasoning and human action. Such a world would be a chaos in which man would be at a loss to find any orientation and guidance. Man is not even capable of imagining the conditions of such a chaotic universe». Ludwig von Mises, Human Action (1949), Mises Institute, 2008, p. 22. ↩︎
- Martin de Azpilcueta escreveu em Coimbra um manual de confessores chamado Manual de Onzenas que trata dos que cobram um juro de 11% (usureiros) e que é seguramente um dos mais antigos livros que trata de temas económicos em português. ↩︎
- Temos que ter presente que, nos primeiros tempos do Cristianismo, qualquer juro era considerado usura. ↩︎
- John Locke é considerado um dos pais do Liberalismo Clássico e uma das grandes influências do Liberalismo Moderno (Libertarians). No entanto, normalmente também é do agrado da Social-Democracia moderna (Liberals) principalmente pelas suas teses contra a acumulação de riqueza. ↩︎
- Para todos estes temas económicos anteriores a Adam Smith (e muitos outros desde os autores gregos da antiguidade clássica) o livro de referência é Rothbard, Murray N., Economic Thought Before Adam Smith, Edward Elgar Publishing, 1995. Para os temas aqui descritos consultar o cap. XI – Mercantilism and freedom in England from the Civil War to 1750. ↩︎
- Sem correspondente aumento da procura de acordo com os free bankers e por si só segundo Rothbard. ↩︎
- Ignoramos a este efeito que existem vários mercados de taxa de juro, um para cada prazo. ↩︎
- Ao tratar a questão da relação Causa-Efeito estamos a atribuir a causa da inversão a erro sem considerar que alguns dos que propõem estas medidas económicas podem estar fazê-lo porque lhes são mais benéficas em deterimento do resto da população. De qualquer maneira, consideramos que, se uma parte considerável da população adere a estas políticas, só o poderá estar a fazer por erro, por acreditar que são do seu interesse. ↩︎
- Para desenvolvimentos neste tema consultar Hayek, Frederick, The Sensory Order: An Inquiry into the Foundations of Theoretical Psychology (1952), University of Chicago Press, 1999. ↩︎