Suponhamos, então, que o juiz ou árbitro decide que Smith estava errado numa disputa e que este agrediu Jones. Se Smith aceitar o veredicto, então, independentemente das indemnizações ou punições aplicadas, não há qualquer problema para a teoria da protecção libertária. Mas e se ele não aceitar? Ou suponhamos outro exemplo: Jones é assaltado. Ele encarrega a sua empresa de segurança de realizar um trabalho de investigação para tentar localizar o criminoso. A empresa conclui que um certo Brown é o criminoso. E depois? Se Brown reconhecer a sua culpa, então, novamente, não há qualquer problema e a punição jurídica prossegue, centrando-se na obrigação do criminoso de indemnizar a vítima. Mas, mais uma vez, e se Brown negar a sua culpa?
Estes casos levam-nos para além do domínio da protecção policial e para outra área vital da protecção: o serviço jurídico, ou seja, o fornecimento, de acordo com procedimentos geralmente aceites, de um método para tentar determinar, da melhor forma possível, quem é o criminoso ou quem quebrou um contrato, em qualquer tipo de crime ou disputa. Muitas pessoas, mesmo aquelas que reconhecem que poderia haver um serviço policial privado e concorrencial num mercado livre, rejeitam a ideia de tribunais totalmente privados. Como poderiam os tribunais ser privados? Como empregariam a força num mundo sem governo? Não resultaria isso em conflitos eternos e “anarquia”?
Em primeiro lugar, os tribunais monopolistas do governo estão sujeitos aos mesmos problemas graves, ineficiências e desprezo pelo consumidor que qualquer outra operação estatal. Todos sabemos que os juízes, por exemplo, não são escolhidos pela sua sabedoria, integridade ou eficiência no serviço ao consumidor, mas sim por serem figuras seleccionadas pelo processo político. Além disso, os tribunais são monopólios; se, por exemplo, os tribunais numa determinada cidade ou vila se tornarem corruptos, venais, opressivos ou ineficientes, o cidadão não tem qualquer alternativa. O cidadão lesado de Deep Falls, no Wyoming, tem de se submeter ao tribunal local do Wyoming ou então não tem acesso à justiça. Numa sociedade libertária, haveria muitos tribunais e muitos juízes a quem ele poderia recorrer. Novamente, não há razão para assumir a existência de um “monopólio natural” da sabedoria jurídica. O cidadão de Deep Falls poderia, por exemplo, recorrer à filial local da Prudential Judicial Company.
Como seriam financiados os tribunais numa sociedade livre? Existem várias possibilidades. Possivelmente, cada indivíduo subscreveria um serviço jurídico, pagando um prémio mensal e recorrendo ao tribunal sempre que necessitasse. Ou, dado que os tribunais provavelmente seriam necessários com muito menos frequência do que os polícias, poderia pagar uma taxa sempre que recorresse ao tribunal, com o criminoso ou o violador do contrato a indemnizar, eventualmente, a vítima ou o queixoso. Ou, numa terceira hipótese, os tribunais poderiam ser contratados pelas agências de segurança para resolver disputas, ou até poderiam existir empresas “verticalmente integradas” que fornecessem tanto serviços policiais como jurídicos: a Prudential Judicial Company poderia ter uma divisão policial e uma divisão jurídica. Apenas o mercado poderia decidir qual destes métodos seria o mais adequado.
Todos deveríamos estar mais familiarizados com o uso crescente da arbitragem privada, mesmo na nossa sociedade actual. Os tribunais estatais tornaram-se tão sobrecarregados, ineficientes e dispendiosos que cada vez mais partes em litígios recorrem a árbitros privados como uma forma mais barata e muito menos demorada de resolver os seus conflitos. Nos últimos anos, a arbitragem privada tornou-se uma profissão em crescimento e altamente bem-sucedida. Sendo voluntária, permite que as regras da arbitragem sejam decididas rapidamente pelas próprias partes, sem necessidade de um quadro jurídico pesado e complexo aplicável a todos os cidadãos. A arbitragem permite, assim, que as decisões sejam tomadas por pessoas especializadas na área comercial ou profissional em questão. Actualmente, a American Arbitration Association, cujo lema é “O Aperto de Mão é Mais Poderoso do que o Punho”, possui 25 escritórios regionais em todo o país, com 23.000 árbitros. Em 1969, a Associação conduziu mais de 22.000 processos arbitrais. Além disso, as seguradoras resolvem anualmente mais de 50.000 reclamações através de arbitragem voluntária. Há também um uso crescente e bem-sucedido de árbitros privados em casos de reclamações por acidentes rodoviários.
Pode argumentar-se que, apesar de desempenharem uma proporção cada vez maior das funções jurídicas, as decisões dos árbitros privados ainda são executadas pelos tribunais estatais, tornando-se juridicamente vinculativas a partir do momento em que as partes em litígio concordem com um [pág. 224] árbitro. Isto é verdade, mas não era o caso antes de 1920, e a profissão da arbitragem cresceu a um ritmo tão acelerado entre 1900 e 1920 como desde então. De facto, o movimento moderno da arbitragem começou com força total em Inglaterra durante a época da Guerra Civil Americana, com comerciantes a recorrerem cada vez mais aos “tribunais privados” fornecidos por árbitros voluntários, mesmo quando as decisões não eram juridicamente vinculativas. Por volta de 1900, a arbitragem voluntária começou a ganhar força nos Estados Unidos. Na verdade, na Inglaterra medieval, toda a estrutura do direito comercial, que era tratada de forma desajeitada e ineficiente pelos tribunais estatais, desenvolveu-se nos tribunais privados dos comerciantes. Os tribunais dos comerciantes eram puramente voluntários e as decisões não tinham força legal. Como é que, então, tiveram sucesso?
A resposta é que os comerciantes, na Idade Média e até 1920, confiavam exclusivamente na ostracização e no boicote por parte dos outros comerciantes da região. Em outras palavras, se um comerciante recusasse submissão à arbitragem ou ignorasse uma decisão, os outros comerciantes publicariam essa informação no sector e recusariam negociar com ele, forçando-o rapidamente a ceder. Wooldridge menciona um exemplo medieval:
«Os comerciantes fizeram com que os seus tribunais funcionassem simplesmente ao concordarem em respeitar os resultados. O comerciante que quebrasse este entendimento não seria, certamente, enviado para a prisão, mas também não continuaria a ser comerciante por muito tempo, pois a conformidade exigida pelos seus pares e o poder que estes tinham sobre os seus bens mostraram-se, se possível, ainda mais eficazes do que a coerção física. Vejamos o caso de John de Homing, que ganhava a vida a comercializar grandes quantidades de peixe por grosso. Quando John vendeu um lote de arenques alegando que este correspondia a uma amostra de três barris, mas que, segundo os seus colegas comerciantes, estava na realidade misturado com “espinheiros e arenques podres”, foi forçado a corrigir a deficiência sob pena de ostracismo económico.»1
Nos tempos modernos, o ostracismo tornou-se ainda mais eficaz, incluindo a certeza de que qualquer pessoa que ignorasse a decisão de um árbitro nunca mais poderia recorrer aos serviços de arbitragem. O industrialista Owen D. Young, director da General Electric, concluiu que a censura moral por parte de outros empresários era uma sanção muito mais eficaz do que a execução jurídica. Hoje em dia, a tecnologia moderna, os computadores e as classificações de crédito tornariam esse ostracismo a nível nacional ainda mais eficaz do que alguma vez foi no passado.
No entanto, mesmo que a arbitragem puramente voluntária seja suficiente para disputas comerciais, que dizer das actividades claramente criminosas: o agressor, o violador, o assaltante de bancos? Nestes casos, deve admitir-se que o ostracismo provavelmente não seria suficiente — embora devamos recordar que incluiria também a recusa, por parte dos proprietários privados de ruas, em permitir que tais criminosos frequentassem as suas áreas. Para os casos criminais, então, tornam-se necessários os tribunais e a aplicação jurídica das suas decisões.
Como funcionariam, então, os tribunais numa sociedade libertária? Em particular, como poderiam fazer cumprir as suas decisões? Em todas as suas operações, além disso, teriam de observar a regra libertária fundamental de que nenhuma força física pode ser utilizada contra alguém que não tenha sido condenado como criminoso — caso contrário, aqueles que utilizassem essa força, fossem polícias ou tribunais, poderiam eles próprios ser condenados como agressores, caso se provasse que a pessoa contra quem usaram a força era inocente. Em contraste com os sistemas estatistas, nenhum polícia ou juiz poderia ser investido de uma imunidade especial para utilizar coerção para além do que qualquer outra pessoa na sociedade poderia utilizar.
Vejamos agora o caso anteriormente mencionado. O Sr. Jones é assaltado, a agência de detectives que contratou conclui que Brown cometeu o crime, e Brown recusa-se a admitir a culpa. E então? Em primeiro lugar, devemos reconhecer que, actualmente, não existe um tribunal mundial ou um governo global que faça cumprir as suas decisões; no entanto, embora vivamos num estado de “anarquia internacional”, há poucos ou nenhuns problemas em disputas entre cidadãos privados de dois países. Suponhamos que, neste momento, um cidadão do Uruguai alega ter sido enganado por um cidadão da Argentina. A que tribunal é que ele recorre? Ele recorre ao seu próprio, ou seja, ao tribunal da vítima ou do queixoso. O caso decorre no tribunal uruguaio, e a sua decisão é reconhecida pelo tribunal argentino. O mesmo acontece se um americano sentir que foi enganado por um canadiano, e assim por diante. Na Europa, após o Império Romano, quando tribos germânicas viviam lado a lado e nas mesmas áreas, se um visigodo sentisse que tinha sido prejudicado por um franco, levava o caso ao seu próprio tribunal, e a decisão era geralmente aceite pelos francos. Recorrer ao tribunal do queixoso é também o procedimento libertário racional, uma vez que a vítima ou o queixoso é quem foi lesado e, naturalmente, quem leva o caso ao tribunal. Assim, no nosso caso, Jones recorreria à Prudential Court Company para acusar Brown de roubo.
É possível, claro, que Brown também seja cliente da Prudential Court, caso em que não há qualquer problema. A decisão da Prudential abrange ambas as partes e torna-se vinculativa. Mas uma estipulação importante é que nenhum poder coercivo de intimação pode ser utilizado contra Brown, porque ele deve ser considerado inocente até ser condenado. No entanto, Brown receberia uma intimação2 voluntária, uma notificação de que está a ser julgado por determinada acusação e um convite para que ele ou o seu representante legal compareça. Se ele não comparecer, será julgado in absentia3, e [pág. 226] isto será obviamente menos favorável para Brown, pois o seu lado da questão não será defendido em tribunal. Se Brown for declarado culpado, o tribunal e os seus oficiais usarão a força para deter Brown e aplicar a punição decidida — uma punição que, evidentemente, se centrará, em primeiro lugar, na restituição à vítima.
Mas, e se Brown não reconhecer a Prudential Court? E se ele for cliente da Metropolitan Court Company? Aqui o caso torna-se mais difícil. O que acontecerá então? Primeiro, a vítima, Jones, apresenta o seu caso na Prudential Court. Se Brown for considerado inocente, a controvérsia termina. Suponhamos, no entanto, que o arguido Brown é considerado culpado. Se ele não fizer nada, o julgamento do tribunal seguirá contra ele. Suponhamos, porém, que Brown então leva o caso à Metropolitan Court Company, alegando ineficiência ou corrupção da Prudential. O caso será então julgado pela Metropolitan. Se a Metropolitan também considerar Brown culpado, isto também põe fim à controvérsia, e a Prudential avançará contra Brown rapidamente. Mas suponhamos que a Metropolitan declara Brown inocente da acusação. E então? Irão os dois tribunais e os seus oficiais armados entrar em conflito nas ruas?
Mais uma vez, tal comportamento seria claramente irracional e auto-destrutivo por parte dos tribunais. Uma parte essencial do seu serviço jurídico aos seus clientes é a prestação de decisões justas, objectivas e pacíficas — a melhor e mais objectiva forma de determinar a verdade sobre quem cometeu o crime. Chegar a uma decisão e depois permitir um caos armado dificilmente seria considerado um serviço jurídico valioso pelos seus clientes. Assim, uma parte essencial do serviço de qualquer tribunal aos seus clientes incluiria um procedimento de recurso. Em suma, cada tribunal concordaria em submeter-se a um tribunal de recurso, conforme decidido por um árbitro voluntário a quem a Metropolitan e a Prudential recorreriam. O juiz de recurso tomaria a sua decisão, e o resultado deste terceiro julgamento seria tratado como vinculativo para o culpado. O tribunal Prudential então prosseguiria com a execução da sentença.
Um tribunal de recurso! Mas isto não é o mesmo que estabelecer novamente um monopólio governamental obrigatório? Não, porque não há nada no sistema que exija que uma única pessoa ou tribunal seja o tribunal de recurso. Actualmente, nos Estados Unidos, o Supremo Tribunal é estabelecido como o tribunal de recurso final, pelo que os juízes do Supremo tornam-se os árbitros definitivos, independentemente da vontade do queixoso ou do arguido. Em contraste, numa sociedade libertária, os vários tribunais privados concorrentes poderiam recorrer a qualquer juiz de recurso que considerassem justo, competente e objectivo. Nenhum juiz ou conjunto de juízes de recurso seria imposto à sociedade por coerção. [pág. 227]
Como seriam financiados os juízes de recurso? Existem várias possibilidades, mas a mais provável seria que fossem pagos pelos diversos tribunais originais, que cobrariam aos seus clientes pelos serviços de recurso nos seus prémios ou taxas.
Mas suponhamos que Brown insiste em recorrer a outro juiz de recurso, e ainda outro? Não poderia ele escapar ao julgamento recorrendo ad infinitum? Obviamente, em qualquer sociedade, os processos jurídicos não podem continuar indefinidamente; tem de haver um ponto de corte. Na sociedade estatista actual, onde o governo monopoliza a função jurídica, o Supremo Tribunal é arbitrariamente designado como o ponto de corte. Na sociedade libertária, também teria de haver um ponto de corte acordado, e como há apenas duas partes em qualquer crime ou disputa — o queixoso e o arguido — parece mais sensato que o código jurídico declare que uma decisão tomada por dois tribunais deve ser vinculativa. Isto abrangeria tanto a situação em que os tribunais do queixoso e do arguido chegam à mesma decisão, como a situação em que um tribunal de recurso decide sobre um desacordo entre os dois tribunais originais.
Este excerto está incluído no Capítulo XII de “Por Uma Nova Liberdade: O Manifesto Libertário“, disponível gratuitamente na nossa biblioteca.
- Wooldridge, op. cit., p. 96. Ver também pp. 94-110. ↩︎
- Em inglês: “subpoena” (N. do T.). ↩︎
- Em português: “à revelia” (N. do T.) ↩︎