A linguagem é uma variedade de acção. Os linguistas reconhecem este facto, na sua acepção contemporânea, pelo menos desde a década de 1960, quando J. L. Austin cunhou os termos “actos de fala” e “enunciados performativos” para se referir às funções não declarativas da linguagem.1 Já desde os gregos, Vários outros estudiosos também escreveram sobre a natureza performativa da linguagem, e o poder da fala como um acto aparece mesmo de forma proeminente nos primeiros textos cristãos (por exemplo, o poder criativo da fala de Deus ao moldar o mundo com uma mera declaração, “Faça-se luz”, ou o conceito de Verbo bíblico). Mas nos anos anteriores a Austin, os filósofos da linguagem, influenciados pela filosofia analítica e pelo positivismo lógico, estavam sobretudo interessados no significado das frases, i.e., no seu conteúdo semântico, declarativo ou proposicional e, especialmente, no seus valores de verdade. Austin, no entanto, salientou que as pessoas fazem mais do que apenas comunicar com a linguagem – utilizam-na também para fazer coisas. Falar é muitas vezes um acto em si mesmo, como quando dizemos “eu prometo” ou “declaro”. Actualmente, muitos linguistas reconhecem que toda a linguagem é performativa. Mesmo a inócua frase declarativa “Eu fui à loja” constitui um acto, ou seja, o acto de informar. Tal como qualquer outra acção, falamos e escrevemos para produzir efeitos no mundo ou nos estados mentais dos outros. A linguagem é, portanto, uma espécie de acção e, por isso, está sujeita às leis da praxeologia.
A língua é apenas uma das muitas áreas pouco exploradas no domínio mais vasto do que se pode designar por “praxeologia da cultura”. Mike Reid, por exemplo, escreveu uma série de excelentes artigos sobre a tradição austríaca numa perspectiva antropológica, e Paul Cantor aplicou com sucesso os conhecimentos austríacos à análise literária e cultural. Se a praxeologia deve realmente ser entendida como a ciência da acção humana, então estes campos merecem o seu lugar como um novo ramo na taxonomia rothbardiana dos campos da praxeologia.2 Além disso, a sociologia, a antropologia e os estudos culturais são os campos que mais necessitam dos conhecimentos da praxeologia e do individualismo metodológico, pois tornaram-se notoriamente colectivistas nas suas ideologias. Como me escreveu uma vez Mike Reid,
De acordo a minha experiência, os colectivistas mais radicais fugiram do campo da economia, o que significa que não os podemos alcançar aí. Encurralaram-se na antropologia, na sociologia, na literatura, na linguística e nos omnipresentes “estudos de queixas”3. O nosso trabalho pode chegar às fortalezas montanhosas do erro e erguer uma vela da verdade à entrada das suas cavernas. Saiam! Saiam! Há verdade e esperança aqui fora!
No entanto, como área da praxeologia, a linguagem quase não teve reconhecimento entre os austríacos. Uma excepção notável vem de Ludwig von Mises, o próprio pai da praxeologia. Ele ilustra de forma concisa a natureza performativa da linguagem em “Acção Humana“:
Acção significa o emprego de meios para atingir fins. Em regra, um dos meios empregues é o trabalho do homem que age. Mas nem sempre é esse o caso. Em condições especiais, basta uma palavra. Aquele que dá ordens ou interdições pode actuar sem qualquer dispêndio de trabalho. Falar ou não falar, sorrir ou ficar sério, pode ser uma acção.4
E embora Mises também escreva extensivamente sobre a relação entre língua e nação, e a política da língua, em seu livro “Nation, State, and Economy“, esses comentários são talvez mais comentários políticos do que discernimentos praxeológicos per se.
Muitos economistas austríacos proeminentes (Menger, Hayek, Mises, Rothbard) também apontam a linguagem como um exemplo de ordem espontânea na sociedade. As observações de Hayek são as mais conhecidas a este respeito:
Os instrumentos básicos da civilização – a língua, a moral, a lei e o dinheiro – são todos o resultado de um crescimento espontâneo e não de projecto.5
Sendo um tipo de ordem espontânea, não é de surpreender que a linguagem esteja sujeita aos mesmos tipos de perturbações planeadas centralmente que os sistemas económicos, como observou Rothbard:
O sistema de ensino público obrigatório tem sido utilizado como uma arma terrível nas mãos dos governos para impor determinadas línguas e destruir as línguas de vários grupos nacionais e linguísticos dentro das suas fronteiras. Este foi um problema particular na Europa Central e Oriental. O Estado no poder impõe a sua língua e cultura oficiais a povos súbditos com línguas e culturas próprias, e o resultado tem sido uma amargura incalculável. Se a educação fosse voluntária, tal problema não teria surgido.6
Estes temas constituem as únicas contribuições reais para a praxeologia da língua na tradição austríaca, para além da afirmação frequente, mas mal informada, de que a língua está a decair e que isso é um sintoma de uma sociedade em decadência (uma falácia bem conhecida em linguística). No entanto, é possível obter conhecimentos significativos mesmo com uma aplicação superficial das lições da praxeologia.
Tomemos, por exemplo, o princípio mais importante da economia – o custo de oportunidade. Ou, nas palavras de Bastiat, “aquilo que não se vê”. Como diz Mises,
Mas o homem actuante escolhe, determina e tenta atingir um fim. De duas coisas que não pode ter ao mesmo tempo, escolhe uma e renuncia à outra. A acção, portanto, envolve sempre tanto a tomada como a renúncia. … Onde quer que estejam presentes as condições para a interferência humana, o homem actua, independentemente de interferir ou de se abster de interferir. … Acção não é apenas fazer, mas também omitir fazer o que possivelmente poderia ser feito.7
Isto não é menos verdade no que respeita à linguagem. O que fica por dizer não é tão importante como o que é dito? Por cada frase que se diz, há um número infinito de outras frases que ficam por dizer. Muitas vezes, os não ditos são tão importantes que contribuem de facto para a nossa interpretação do enunciado. Se alguém disser tenho cinco dólares, é porque optou por não dizer tenho seis dólares. Assumindo que o objectivo do enunciado é transmitir a quantidade de dinheiro que o falante possui, o ouvinte pode inferir que o falante tem cinco e não mais do que cinco dólares, mesmo que seja logicamente possível que o falante tenha seis ou seis mil. O mesmo se aplica a expressões como Bom, eu não desgosto dele. Nenhum falante nativo de português negaria que o que não é dito aqui é muito mais importante do que o que é dito.
No entanto, noutras situações, tais inferências são injustificadas. Se lhe perguntarem Alguém tem cinco dólares para a gorjeta? e responder Eu tenho cinco dólares e lhe entregar o dinheiro, ninguém tem justificação para assumir que a sua carteira está vazia (pelo menos, não com base apenas na sua expressão). O que é que torna a inferência justificada num caso e não noutro? Como é que os ouvintes lidam com estas inconsistências? Noutras alturas, as questões podem ser completamente evitadas, e isso não intranquiliza ninguém. Considere:
A: Queres ir ao cinema comigo às 18:00?
B: Há uma sessão às 19:30?
A: Há, pois.
B: Óptimo! Vamos a essa.
B nem sequer está a responder à pergunta original de A e, no entanto, B não parece ser pouco cooperante ou difícil de compreender. Grande parte do nosso discurso quotidiano é assim – repleto de implicações e de coisas que ficam por dizer. O que torna possível aos ouvintes atravessar este nevoeiro linguístico é o simples facto de interpretarmos as afirmações de outras pessoas como acções orientadas por parte de actores conscientes que visam determinados objectivos comunicativos ou sociais. Cada enunciado é interpretado através desta lente. É o reconhecimento implícito, por parte de cada ouvinte, de que somos todos actores visando fins que torna a comunicação possível.
De certa forma, isto faz da linguagem um maravilhoso testemunho do valor do indivíduo. Sempre que ouço o que tem para dizer e tento compreendê-lo, reconheço o seu estatuto de indivíduo autónomo com objectivos próprios. Graças à linguagem, somos todos praxeólogos em florescimento.
- Ver especialmente J. L. Austin, “How to Do Things with Words” (William James Lectures), 2ª ed. (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1975). ↩︎
- Murray N. Rothbard, “Praxeology: Reply to Mr. Schuller,” American Economic Review, dezembro de 1951, pp. 943-946. ↩︎
- No original em inglês “grievance studies”: gíria para “áreas académicas onde se desenvolveu uma cultura em que apenas certas conclusões são permitidas, e em que as queixas sociais são colocadas à frente da verdade objectiva” (N. do T.) ↩︎
- Ludwig von Mises, Human Action: A Treatise on Economics. Scholar’s Edition / Kindle Edition (Auburn, Ala.: Ludwig von Mises Institute, 2008 [1949, 1998]), pp. 931-934. ↩︎
- Friedrich A. Hayek, The Constitution of Liberty: The Definitive Edition, vol. 17, The Collected Works of F. A. Hayek (Chicago: University of Chicago Press, 2011 [1960]), p. 495. ↩︎
- Murray N. Rothbard, Education: Free and Cumpolsory. Kindle Edition. (Auburn, Ala.: Ludwig von Mises Institute, 1999 [1971, 1979]), pp. 577-581. ↩︎
- Ludwig von Mises, Human Action: A Treatise on Economics. Scholar’s Edition/ Kindle Edition (Auburn, Ala.: Ludwig von Mises Institute, 2008 [1949, 1998]), pp 926-940. ↩︎
Artigo publicado originalmente no Mises Institute.