No seu livro A Ética da Liberdade, Murray Rothbard estabelece as ligações entre a liberdade individual, os direitos de propriedade e o princípio da não agressão. A explicação de Rothbard sobre os direitos de propriedade como a essência da liberdade influenciou muito a compreensão libertária do PNA1, mas por vezes há muita confusão sobre o que equivale a um acto de agressão. Como salientou David Gordon, alguns libertários chegaram ao ponto de dizer que o PNA deveria ser rejeitado por completo por ter “implicações moralmente inaceitáveis”.
Um erro que muitos libertários cometem é o de assumir que os princípios teóricos podem dar uma resolução completa para casos difíceis, no sentido em que deveríamos ser capazes de verificar — apenas estudando o PNA — se este foi violado em casos específicos. Gordon sublinha que isto ignora o papel de outras considerações, como as convenções sociais e as normas jurídicas, na resolução de litígios do mundo real. As “implicações moralmente inaceitáveis” que muitos libertários consideram perturbadoras, são o resultado de teorizar sobre o PNA sem ter em conta a estrutura ética mais ampla dentro da qual Rothbard defende os direitos de propriedade. A teoria da liberdade de Rothbard não é apenas um tratado filosófico ou académico baseado num conjunto de problemas hipotéticos. É também um “sistema de lei libertária” concebido como base para “o funcionamento verdadeiramente bem-sucedido do que podemos esperar que seja a sociedade libertária do futuro”.
A análise de Rothbard tem, portanto, em conta o contexto real de crime e agressão. Define um acto de agressão como uma violação da liberdade de outro e, mais importante, vê a liberdade como uma emanação de autopropriedade e da propriedade privada. Explica como essas ideias estão interligadas:
A chave para a teoria da liberdade é o estabelecimento dos direitos de propriedade privada, pois a esfera justificada de acção livre de cada indivíduo só pode ser estabelecida se os seus direitos de propriedade forem analisados e estabelecidos. “Crime” pode então ser definido e adequadamente analisado como uma invasão violenta ou uma agressão contra a propriedade de outro indivíduo (incluindo a propriedade da sua própria pessoa).
Neste contexto, Rothbard define o crime como uma violação dos direitos de propriedade. Assim, define a “violência agressiva” como uma situação em que:
(…) um homem invade a propriedade de outro sem o consentimento da vítima. A invasão pode ser contra a propriedade de um homem na sua pessoa (como no caso de agressão física) ou contra a sua propriedade em bens tangíveis (como em roubo ou invasão de propriedade). Em ambos os casos, o agressor impõe a sua vontade sobre a propriedade natural de outrem — priva o outro homem da sua liberdade de acção e do pleno exercício da sua autopropriedade natural.
A explicação de Rothbard sobre o PNA inclui claramente as invasões de pessoas e bens. Mas muitos têm dificuldade em aplicar estes princípios a casos reais. A primeira dificuldade prática surge em relação às “meras” ameaças. Rothbard vê as ameaças directas e abertas de invasão como equivalentes à própria invasão porque — como ele observa — o PNA trata da invasão da pessoa ou da propriedade de outrem e de privar outro homem da liberdade de exercer a sua autopropriedade e de exercer a posse da sua propriedade.
Uma violação da liberdade de outro homem pode ser cometida através de intimidação ou de fraude, o que Rothbard vê como “equivalente à própria invasão”. Significa isto que cada vez que alguém se sente (ou afirma sentir-se) “intimidado” isso é o equivalente a uma invasão? Claro que não. Segundo o PNA, a violência contra outrem só é justificada em legítima defesa e, por isso, devemos recorrer aos princípios da legítima defesa para determinar se um acto de violência é agressivo ou defensivo. Rothbard sustenta que “a violência defensiva só pode ser utilizada contra uma invasão real ou uma ameaça directa da propriedade de uma pessoa, e não pode ser utilizada contra qualquer ‘dano’ não violento que possa ocorrer ao rendimento ou ao valor da propriedade de uma pessoa”. Além disso, como explica Rothbard, nos casos de ameaça directa de invasão, a legítima defesa pode ser justificada mesmo antes de ter ocorrido um acto físico de violência:
A violência defensiva deve, portanto, limitar-se a resistir a actos invasivos contra pessoas ou bens. Mas tal invasão pode incluir dois corolários para a agressão física real: intimidação ou ameaça directa de violência física e fraude, que envolve a apropriação da propriedade de outra pessoa sem o seu consentimento e, por isso, é “roubo implícito”. Assim, suponha que alguém se aproxima de si na rua, saca de uma arma e exige a sua carteira. Pode não o ter molestado fisicamente durante este encontro, mas extorquiu-lhe dinheiro com base numa ameaça directa e aberta de que lhe dispararia se desobedecesse às suas ordens. Usou a ameaça de invasão para obter a obediência às suas ordens, e isto é equivalente à invasão em si.
Rothbard não assume que qualquer “mera ameaça” seja “equivalente à invasão em si”. Sublinha que: “É importante insistir, no entanto, que a ameaça de agressão seja palpável, imediata e directa; em suma, que seja incorporada na iniciação de um acto manifesto ” (sublinhado nosso). É aqui que muitos libertários começam a ficar confusos. Querem saber como se distingue entre “meras ameaças” e ameaças “palpáveis, imediatas e directas”. Supõem que a teoria de Rothbard é de alguma forma inadequada, pois não classifica definitivamente as ameaças directas e indirectas. Mas nenhuma teoria jurídica pode determinar se um acto é “palpável, imediato e directo” — para verificar isso é necessário examinar os factos.
É por isso que o resultado dos casos do mundo real depende não só dos princípios jurídicos aplicáveis, mas também dos factos relevantes — e existe frequentemente muita controvérsia sobre quais os factos considerados relevantes ou quanta importância deve ser atribuída a factos específicos. Por exemplo, é bastante fácil afirmar que a invasão da propriedade de outra pessoa é um acto de agressão, e que a invasão ocorre quando alguém invade a propriedade de outra pessoa sem consentimento. Mas em casos práticos o que conta como “intrusão”? O que conta como “consentimento”? Um estranho “intromete-se” quando se aproxima da porta da frente de alguém sem permissão e toca à campainha? Isso dependeria da hora do dia, do propósito do estranho ou até do seu comportamento? Talvez se ele tivesse acabado de sair do que parece ser um veículo de entrega e tivesse o que parece ser uma encomenda na mão, poderíamos “supor” consentimento para entregar encomendas, mas se ele se aproximasse sob o manto da escuridão com uma arma na mão, teríamos uma visão diferente do assunto. Além disso, dizer que o consentimento pode ser “implícito” em circunstâncias apropriadas não nos diz quais são as circunstâncias em que o consentimento deve ser implícito. A teoria da não agressão, por si só, não pode responder conclusivamente a este tipo de questões.
Gordon aborda este problema quando explica que, embora Rothbard considerasse a poluição uma invasão de propriedade, este princípio não determinaria, por si só, que tipos de actividades poluentes contam como uma invasão. Discute o exemplo do fumo: se estiver a fumar um cigarro enquanto caminha pela rua, o seu fumo “invade” as propriedades por onde passa, violando assim os direitos de propriedade de outras pessoas? Alguns libertários usaram este argumento durante o surto de Covid, afirmando que a mera respiração equivalia a um acto de agressão contra as outras pessoas e, por isso, justificava “reter” ou mesmo atacar potenciais “covidiotas” que andavam por aí a exalar os seus germes desenfreadamente. Atacá-los seria um acto de “autodefesa” que salvaria a vida da avó, ou pelo menos era esse o raciocínio. Walter Block descreveu esta posição da seguinte forma:
Pois qualquer pessoa que se aventurasse nas ruas estaria necessariamente a violar o PNA. É como se ele estivesse automaticamente a disparar uma arma aleatoriamente ou a dar murros sem conseguir parar. Como tal, ele constitui uma ameaça. O PNA proíbe não só as invasões físicas, mas também a ameaça das mesmas. No cenário que descrevemos, é de facto esse o caso, só que em vez de balas ou murros, o viajante estaria a lançar um vírus mortal sobre todos os outros.
O facto de alguns libertários raciocinarem desta forma não se deve a qualquer falha do PNA, mas sim à incapacidade de compreender com precisão os factos do caso. Gordon explica que, embora o princípio da não agressão defina actos de agressão, as definições por si só não são suficientes para responder a questões práticas. Como demonstrado pelo exemplo do Covid, a definição do PNA pode estar correcta, mas a sua aplicação aos factos pode estar totalmente errada. Para resolver casos reais, é necessário algo mais do que definições e teorias, uma das quais Gordon descreve como convenção social: “o entendimento que prevalece numa sociedade”. Recorrer a questões de convenção ajudaria a resolver muitos problemas que confundem desnecessariamente os libertários. Para ilustrar isto, considere-se o exemplo de Walter Block, em que distingue analiticamente entre uma “mera” ameaça e “iniciação de violência física”:
A aproxima-se de B e aponta-lhe uma arma. A diz a B: “Dá-me o teu dinheiro ou eu disparo.” Certamente, ocorreu agora uma violação de direitos; o princípio libertário da não agressão inclui “meras” ameaças como estas, e não apenas o início da violência física.
Embora haja claramente uma distinção analítica entre uma “mera” ameaça e “violência física”, no exemplo de Block nenhuma pessoa razoável duvidaria de que A é um agressor violento. A distinção entre ameaça e violência — embora analiticamente interessante — é irrelevante no cenário de facto apresentado por Block. Este é de facto o exemplo preciso que Rothbard utiliza para ilustrar que, em alguns casos, uma ameaça é o equivalente a uma invasão . Nestes casos, a ameaça não é uma “mera” ameaça — equivale ao “início da violência física”. Como explica Rothbard, a “violação de direitos”, ou seja, a invasão de direitos de propriedade, consiste no próprio acto de agressão, que neste caso é a ameaça de disparar. Para aplicar as palavras de Rothbard, neste caso o “crime”, é “uma invasão ou agressão violenta contra a propriedade justa de outro indivíduo [e] a propriedade da sua própria pessoa” cometida por A quando A apontou uma arma a B e ameaçou disparar. Qualquer pessoa razoável consideraria isto como “o início da violência física”, mesmo que o gatilho ainda não tenha sido puxado, e pode ou não acabar por ser puxado, por exemplo, se A for interrompido antes de ter a oportunidade de disparar.
Block tem, portanto, razão ao observar que “A violou os direitos de B mesmo que este interrompa o encontro e fuja, deixando B com a sua carteira intacta”. Mas ao distinguir analiticamente entre a “ameaça” e a “iniciação de violência física”, Block ignora o facto de senso comum de que, com base nos factos que apresentou, a própria ameaça constitui iniciação de violência física. Embora defenda que ambos violam o PNA, a questão é que separar a ameaça da iniciação da violência — com base nestes factos — é uma distinção analítica que serve apenas para confundir e não para esclarecer. A maioria das pessoas que se deparam com um agressor armado não teriam qualquer dificuldade em “classificar” isso como uma ameaça ou como um ataque. Não se trata apenas de que “ambos” sejam actos de agressão, mas de que, com base nestes factos, não há distinção no mundo real entre a “ameaça” e a “violência”. A ameaça e a violência são “equivalentes”, para usar as palavras de Rothbard.
O bom senso e a especial atenção aos factos do caso contribuem muito para resolver tais problemas. Não faria sentido perguntar se alguém com uma arma apontada à sua cabeça e a ameaçar disparar sobre si cometeu um acto de violência. De facto, o libertário confuso pode perguntar: e se — sem o conhecimento do agressor — a arma não estivesse carregada? Devemos então dizer que não há acto de violência até ao momento em que a bala sai da arma? Mas — o libertário pode persistir — e se a bala sair da arma, mas falhar o alvo? Devemos então dizer que não há acto de violência até que a bala atinja o alvo? De acordo com os princípios comuns de legítima defesa, com base nestes factos, não há necessidade de B esperar que A puxe o gatilho antes de tomar uma acção defensiva. É por convenção — reflectida nas normas jurídicas do direito consuetudinário inglês tradicional — que entendemos que um assaltante armado é um agressor violento.
Se os factos fossem diferentes, a situação seria, naturalmente, reavaliada adequadamente. É precisamente por isso que a resolução de processos criminais envolve a aplicação dos princípios aos factos. Não é meramente uma questão de disputa teórica. Este ponto é salientado por Rothbard no seu artigo War Guilt, que trata especificamente da atribuição de culpas pelas guerras no Médio Oriente, mas também contém lições que podem ser extrapoladas para outros casos. Rothbard lembra-nos que, em qualquer guerra, não se pode simplesmente confiar em teorias de não-agressão para determinar quem é o agressor e quem está a lutar na defensiva. Critica a “tendência para evitar preocupar-se com os prós e os contras detalhados de qualquer conflito” e adverte que “os libertários devem perceber que repetir os princípios fundamentais não é suficiente para lidar com o mundo real”. A mesma observação também se aplica a outros contextos em que o princípio da não agressão é aplicado. Para determinar se — e, em caso afirmativo, por quem — foi cometido um acto de agressão, os debates teóricos não são suficientes. É necessário um exame atento e detalhado dos factos relevantes.
Artigo publicado originalmente no Mises Institute.
- Em inglês NAP – Non Agression Principle [N. Do. T] ↩︎