Tenho dito por vezes que uma sociedade libertária poderia assentar melhor nas bases do pensamento conservador, especialmente do europeu e do paleo-conservadorismo norte-americano, do que nas bases do liberalismo, seja ele europeu ou norte-americano. O conservadorismo clássico, sobretudo na sua expressão tradicionalista novecentista, é um pensamento contra-revolucionário, ou seja, procura mitigar ou inverter as consequências da Revolução Francesa na forma de organização política e social. Trata-se, portanto, de um pensamento radicalmente anti-estatista e, por conseguinte, anti-centralista, defensor de direitos e privilégios locais e regionais. Declarações como as seguintes, do tradicionalista espanhol do final do século XIX, Enrique Gil Robles, são difíceis de encontrar no liberalismo:
“E assim, quanto maior é a sociedade, menos conciliáveis são as conveniências, convertendo-se, de facto, a pátria moderna, num agregado de duas castas, a dos exploradores que governam, isto é, tiranizam, e a dos explorados que contribuem para a empresa da qual a casta dominante vive e prospera, nem mais nem menos do que antes de Jesus Cristo”.
Continua no parágrafo seguinte:
“O Estado já não é a nação juridicamente organizada, nem o organismo da autoridade superior central directiva, mas o aparelho mecânico de coerção, sem título para manter a agregação forçada e o complicado artifício burocrático para a mais fácil, desafogada e expedita exploração”
(Enrique Gil Robles,Tratado de derecho político según los principios de la filosofía y el derecho cristianos, vol. I, Afrodisio Aguado editores, Madrid, 1961 (e.o. 1899), p. 101).
Embora o velho Gil Robles não fosse, obviamente, um anarquista, partilha muitos aspectos da chamada teoria predatória do Estado e, certamente, não tem uma visão exactamente benigna do mesmo. Mas estes elementos são partilhados por muitos pensadores desta tradição, tanto em Espanha como no resto da Europa, embora o brilhante professor os exprima como ninguém. Pelo contrário, o liberalismo político europeu, com o pretexto de pôr fim ao “ancien régime”, dedicou as suas energias à construção do Estado moderno e, no tempo, na justificação de uma intervenção após outra, tendo Stuart Mill e os seus discípulos como porta-estandartes. Com toda a justiça, é justo dizer que são os liberais políticos e não os liberais económicos, cujas más relações entre si ainda não foram suficientemente estudadas, os responsáveis por esta lenta deriva para o socialismo e o intervencionismo.
Os conservadores clássicos (não os neocons, responsáveis pela mesma deriva que afectou os liberais clássicos) defendiam uma sociedade baseada nas comunidades naturais (família, vizinhança), nas leis consuetudinárias e na propriedade privada, que incluía, como dizia Elinor Ostrom, as propriedades comunais, como as da Igreja e dos bairros. Os seus princípios de organização são geralmente sustentados por valores transcendentes, quase sempre de carácter religioso, e é com base neles que resolvem os seus conflitos. Embora não fossem anarquistas, defendiam, como Hoppe ou Eric von Kuehnelt-Leddihn, formas políticas baseadas na aristocracia e na monarquia, menos intrusivas na vida quotidiana do que os Estados actuais. A questão que se pode colocar é a de saber se estes postulados podem conduzir a uma deriva anárquica semelhante à de alguns liberais clássicos que se aproximaram de posições anarquistas ou quase anarquistas, como Molinari. Da mesma forma que estes pretendiam levar a sua crítica à intervenção do Estado para afirmar que os mercados poderiam, eles próprios, prestar os mesmos serviços que os Estados prestam, como a defesa ou a justiça, de uma forma melhor e mais eficiente e, sobretudo, sem recorrer à coerção, não será possível que alguns conservadores cheguem a conclusões análogas para atingir os seus objectivos? Pode ser que os Estados, com as suas novas formas de organização política, sejam os principais inimigos deste ideal conservador de sociedade e que seja necessário pensar em soluções para evitar as derivas tecnocráticas ou totalizantes que acabariam com a velha sociedade. Será que uma futura sociedade anarquista pode ser a única solução para evitar tal deriva? E, em caso afirmativo, como é que ela se organizaria? O que é certo é que as poucas comunidades que preservam modos de vida semelhantes, como os Amish, vivem um pouco separadas do resto da sociedade (embora façam comércio com ela) e resistem o melhor que podem às normas estatais que são uma das principais ameaças ao seu modo de vida.
De facto, a questão que se coloca é se algum grupo de pessoas pode levar uma vida inspirada em valores conservadores numa sociedade estatista? E não apenas em termos de valores religiosos ou éticos, mas também em termos de trabalho, poupança ou família (ver os livros de Allan C. Carlson sobre o assunto). Estes valores estão sujeitos a regulamentação e a ataques sistemáticos (impostos, inflação…) ou são vistos com desconfiança pelo poder político (ou melhor dito, pelo poder político que nos toca directamente), sendo por isso muito difícil transmitir estes valores às novas gerações ou mesmo realizá-los. Numa situação de ausência de Estado, poderiam realizar os seus valores sem terem de se submeter ao controlo do Estado. Este último aspecto não é bem entendido por muitos conservadores, que, pelo contrário, querem um Estado que organize a sociedade de acordo com os seus valores, o que não parece ser uma boa ideia: em primeiro lugar, porque aqueles que não defendem os valores conservadores também têm o direito de experimentar o modo de vida que preferem e, claro, de suportar as consequências disso, sejam elas positivas ou negativas. Neste aspecto, cometem o mesmo erro que os progressistas modernos, ambos pretendendo que o resto da sociedade se organize de acordo com os seus parâmetros e seja subsidiado pelo resto da sociedade. Em segundo lugar, é altamente improvável que um tal esforço seja contraproducente. Nada garantiria que atingissem os seus objectivos e, pelo contrário, é bem possível que o próprio Estado se voltasse contra os seus princípios. Se um Estado tem a capacidade de construir uma sociedade conservadora, também tem a capacidade de construir uma sociedade de outro tipo. Isto é bem conhecido em Espanha, porque depois de várias décadas de uma ditadura inspirada em valores conservadores, que fortaleceram muito o Estado, este virou-se contra os mesmos valores que tinha estabelecido antes e, além disso, porque tinha uma enorme legitimidade para o fazer, desta vez a partir de princípios democráticos e ajudado pela má consciência dos conservadores. O resultado é que os valores conservadores são muito mal defendidos em Espanha, ao contrário do que acontece noutros países, como os Estados Unidos. É pena, porque os conservadores são indivíduos muito válidos para lutar intelectualmente contra o estatismo, sobretudo porque têm valores claros a defender, ao contrário dos liberais. Estes últimos limitam-se a defender um processo, ou seja, a liberdade de realizar os seus princípios sem interferências e sem afectar os direitos dos outros, o que é muito louvável, mas não determinam com precisão quais são os princípios que devem reger a sua própria vida, o que debilita as suas posições. São agnósticos em relação a qualquer valor que transcenda a mera liberdade. É por isso que a capacidade de resistência dos grupos conservadores é muito maior, porque lutam por causas específicas que vêem como afectadas pela intromissão do Estado e que afectam profundamente o seu modo de vida.
Apenas um punhado de autores parecem ter compreendido este facto e procuram separar o Estado das suas convicções, propondo soluções não-estatistas para a sua busca de transcendência vital. Também não são autores que apresentem propostas sistemáticas sobre o funcionamento de uma sociedade sem Estado, mas são críticos muito capazes do Estado moderno e do seu papel na concepção da sociedade moderna, e rejeitam-na com veemência. São também, em muitos casos, catonistas1, ou seja, atacam muitos dos artefactos da sociedade moderna, e não apenas as ideias, o que pode fazer com que pareçam reaccionários, pitorescos e simpáticos, mas pouco adequados à sociedade moderna. Basta recordar como Rothbard se referia a um deles, Erik von Kuehnelt-Leddihn, com quem, aliás, mantinha uma boa relação e que considerava muito interessante, mas totalmente desligado do combate ideológico do seu tempo. Este autor, que é provavelmente o melhor teórico dos anarco-conservadores, deixou-nos um extenso legado de livros, dos quais apenas “Liberdade e Igualdade” foi traduzido,2 e alguns romances e pequenos ensaios na histórica “Ediciones RIALP” (destaco o seu romance “Bandeiras Negras”, no qual, aliás, demonstra uma certa simpatia pelos anarquistas hispânicos). Kuehnelt, em vez de propor uma sociedade anarco-conservadora, defende a bondade da organização política do “ancien regime”, onde o abstracto “Estado Moderno” ainda não se tinha feito sentir a sua presença as consequentes criticáveis derivas totalizantes deste último. Os males da modernidade começaram com a Revolução Francesa e a introdução de conceitos abstractos como o Estado e o seu correlativo, a nação política. É curioso, porque ele atribui todos estes males ao pensamento político do Marquês de Sade (ver o seu “Leftism revisited”) e não ao habitual Rousseau. O seu pensamento é mais anti-estatista do que anarquista, mas é um autor do qual se pode facilmente tirar conclusões anarquistas, pois introduz conceitos de valores aristocráticos, como o dever ou a honra, que seriam essenciais para estabelecer uma sociedade sem dominação política.
Ideias semelhantes tem o arqui-reacionário colombiano Nicolás Gómez Dávila, que nos seus livros de aforismos (Escólios Sucessivos a um Texto Implícito) faz uma crítica muito dura aos valores do mundo moderno, incluindo, naturalmente, os associados ao Estado. Os antigos valores conservadores deviam ser abandonados em favor dos valores igualitários que legitimam o poder dos governantes modernos, que têm a mesma ânsia de poder que os antigos, mas carecem de muitas das virtudes e princípios que os antigos tinham. Tal como Kuehnelt-Leddihn, o velho banqueiro colombiano critica mais do que propõe e, em todo o caso, procura inspiração nas virtudes do “ancien régime”. Neste aspecto, assemelham-se mais às ideias expressas por Hans Hermann Hoppe nos seus últimos escritos, nos quais vê com simpatia as formas monárquicas de governo, ou nas críticas de Felix Somary à democracia.
Um potencial mais anarquista encontra-se nas propostas de outro velho conservador, Robert Nisbet, que nos seus escritos de sociologia (era um académico profissional) expõe as vantagens das formas naturais de organização, como a família ou a comunidade, e expõe a agressão a que estão submetidas pelos Estados modernos. Tem mais potencial porque expõe o funcionamento destas unidades e, sobretudo, como o fazem apesar da intromissão do Estado. Livros como “Twilight of authority” ou “The Quest for Community” são bons exemplos deste pensamento. Embora não se afirme anarquista, o seu pensamento pode ser facilmente lido como anarquista (tal como o de Elinor Ostrom) e pode servir de base para compreender como poderia ser o funcionamento de uma comunidade “aestatal”.3 Aliás, é sempre muito interessante notar deste autor a crítica a um conceito tão moderno como o de progresso (ver o seu “Social Change and History”).
Mas é na ficção onde podemos encontrar mais desenvolvido que um modelo deste tipo. Jorge Luis Borges referiu-se por vezes à sua ideologia anarquista conservadora, mas infelizmente não a desenvolveu nas suas obras. É, por outro lado, na obra de Tolkien que se pode encontrar mais claramente a descrição de uma sociedade deste tipo, razão pela qual ele é tão apreciado nos círculos libertários. Nas suas descrições do país dos “hobbits”, ele descreve um mundo idílico, regido por valores conservadores, no qual estão ausentes figuras de poder (embora a autoridade exista) e que, no entanto, é capaz de se organizar e de levar uma vida pacífica e próspera à sua maneira. De facto, “O Senhor dos Anéis” pode ser lido como um aviso contra o uso ilimitado do poder e a hybris4 que ele sempre implica.
O problema do anarquismo conservador é que ele é muito mais capaz na critica do que de descrever possíveis cenários futuros, mas lendo-os com calma podemos constatar que uma hipotética sociedade sem Estado só poderia funcionar com a existência de valores fortes, como os que existiam antes, que substituíam a necessidade de instituir poderes estatais, que poderiam facilmente tornarem-se abusivos.
Artigo publicado originalmente no Instituto Juan de Mariana.
Notas:
- Catonista é uma palavra derivada de catonismo, significando “Austeridade exagerada”. ↩︎
- O Autor refere-se à tradução da obra para espanhol. De momento este livro não está traduzido para português, pelo que fica acima o link para a versão inglesa. ↩︎
- “Aestatal” pode ser interpretado como “sem Estado” ou “ausência de Estado”. A construção é gramaticalmente válida e intuitiva para falantes de português que entendam o prefixo. ↩︎
- Hybris é um termo grego que significa o crime do excesso e do ultraje. A hybris revela um sentimento de arrogância, de soberba e de orgulho, que leva à insubmissão e à violação das leis dos deuses, da pólis (cidade), da família ou da natureza. ↩︎