Este artigo foi extraído da palestra principal na Libertarian Scholars Conference, a 20 de Março de 2025, em Auburn, Alabama. Versão em inglês disponível no Mises Institute.
A Origem do Estado
O que é preciso perguntar é: como é que as coisas aconteceram historicamente? Qual é a origem histórica do Estado?
Uma visão realista do Estado deve partir do pressuposto da historicidade do Estado. O Estado nem sempre existiu. Tem o seu próprio lugar de origem e história: o seu berço é a Europa Continental, e a sua origem coincide aproximadamente com o início da era moderna, entre os séculos XV e XVI. Três grandes acontecimentos marcam a entrada na era moderna: a queda de Constantinopla a 29 de maio de 1453, que marcou o fim do Império Romano do Oriente; a descoberta da América em 1492; e a Reforma Protestante, que foi desencadeada por Martinho Lutero a 31 de Outubro de 1517. A época moderna foi uma ruptura com a Idade Média e, em particular, com aquela estrutura de poder político que caracterizou a história europeia durante quase um milénio — uma estrutura na qual o poder não era centralizado, mas disperso entre múltiplos centros de poder.
O Estado é moderno. A Idade Média e a Idade Antiga não conheceram formas de Estado porque a organização política daqueles períodos não era, nem de longe nem de perto, comparável à da Era Moderna. É, pois, necessário ter consciência de que, como escreve Gianfranco Miglio (1918 – 2001) em Le regolarità della politica (1988), “o tipo de ordem política hoje vigente, longe de ser o único e inevitável produto da razão universal, é apenas o resultado, no fundo bastante ocasional, de uma série de conjunturas históricas”.
Certamente não pode haver dúvidas sobre a origem tipicamente europeia das instituições estatais. O modelo de organização política denominado Estado espalhou-se pelo mundo, mas teve início na Europa. A teoria que situava o nascimento do Estado apenas na modernidade é hoje amplamente aceite, mas desenvolveu-se apenas no século XX, graças a um grupo de académicos na Alemanha: Max Weber (1864 – 1920), Carl Schmitt (1888 – 1985), Otto Brunner (1898 – 1982) e Otto Hintze (1861 – 1940). Até ao início do século passado, de facto, o termo “Estado” era uma espécie de superconceito utilizado para indicar qualquer tipo de comunidade política organizada, e é preciso dizer que este uso do termo não desapareceu por completo.
O nascimento do Estado foi marcado em toda a parte pela tentativa de pacificação territorial. Se olharmos para os problemas internos dos territórios, deparamo-nos com o problema da ordem. Aos antigos problemas de concentração do poder judicial nas mãos do rei para evitar feudos e de aquisição ou erradicação de principados e senhorios feudais para alcançar a territorialidade do Estado foi acrescentado um novo problema moderno: as guerras de religião, que na verdade eram guerras civis. Em França, houve a luta entre católicos e huguenotes (1559 – 98); no Império Alemão, o conflito entre católicos e protestantes durante a Guerra dos Trinta Anos (1618 – 1648); e em Inglaterra, a guerra civil (1642 – 1651) entre anglicanos, presbiterianos, congregacionalistas e independentes. Houve também as pressões do ambiente internacional: as guerras pelo domínio da Itália (1494 – 1559); a Guerra dos Trinta Anos (1618 – 48); a Guerra da Sucessão de Espanha (1701 – 14); e a Guerra dos Sete Anos (1756 – 63).
Para estabelecer a paz e proteger o povo, um Estado deve estabelecer-se como o único detentor do poder num território e não deve tolerar concorrentes. Para ter sucesso, o Estado deve proibir o uso privado da força e apresentar-se de forma credível como o único detentor do poder de usar a violência. Max Weber, cuja definição de Estado é uma das mais famosas da história das ciências sociais, foi um dos primeiros a destacar este aspecto do Estado moderno. Weber parece estar bem ciente da natureza genuinamente moderna do Estado quando descreve o seu aparecimento em Economia e Sociedade (1921): “A disseminação da pacificação e a expansão do mercado constituem, portanto, um desenvolvimento que é acompanhado, em linhas paralelas, por: (1) aquela monopolização da violência legítima pela organização política que encontra o seu auge no conceito moderno do Estado como fonte última de todo o tipo de legitimidade do uso da força física; e (2) aquela racionalização das regras da sua aplicação que veio a culminar no conceito de ordem jurídica legítima.”
Mas o Estado deve fazer da sua protecção uma oferta que não possa ser recusada. E para o fazer, primeiro deve desarmar a sociedade. A oferta unilateral torna-se vinculativa se a população for privada de armas (ou seja, se não se puder defender, seja de indivíduos privados ou, claro, de autoridades estatais). Otto Brunner, no seu clássico estudo Land und Herrschaft de 1939, mostrou que a racionalização jurídica e política da modernidade implicava o desarmamento dos cidadãos, seguido da criação de uma casta de servidores armados do Estado. Todas as funções clássicas do Estado, começando pelo monopólio da legislação, surgem de impor o desarmamento a toda a sociedade.
O verdadeiro berço do Estado moderno foi a França do século XVI. É precisamente na monarquia absoluta francesa, surgida das guerras religiosas entre católicos e huguenotes, que é possível observar aquela burocratização e centralização do exercício do poder que é uma característica fundamental do Estado. O início do Estado pode situar-se na segunda metade do século XVI. O Estado tem de visar sobretudo a sua própria sobrevivência num mundo instável onde está perpetuamente exposto ao risco; e sobreviver significa alargar e fortalecer o seu domínio a partir de dentro.
O príncipe é a figura crucial do Estado moderno. Consegue centralizar o poder com a ajuda dos seus funcionários e através de um novo sistema administrativo, a máquina do Estado. Como salientou Federico Chabod (1901 – 1960), esta maquinaria é criada através do estabelecimento de uma série de funções que adquirem um carácter de estabilidade no território. Em primeiro lugar, exércitos permanentes que existem mesmo em tempo de paz e são compostos por soldados mercenários que dependem apenas do rei; depois, uma diplomacia estável e uma burocracia estatal em constante crescimento.
O Estado, porém, não é separável da sua construção ideológica. Toda a política moderna é reformulada com o vocabulário do Estado. Por um lado, o Estado parece ser um conceito historicamente determinado que marca o período desde a era das monarquias absolutas até às democracias actuais. Por outro lado, o Estado posiciona-se como a maior e única forma possível de ordem política: o político não pode ser pensado fora do quadro do Estado e dos seus paradigmas. O Estado apresenta-se como a única e inequívoca resposta ao problema da ordem política. Esta construção que nos acompanha há cinco séculos exerce também sobre nós uma tirania conceptual porque tenta impedir-nos de pensar a política de forma diferente, fora do quadro do Estado.
A Razão de Estado como Ciência Política
O cerne de todas as novidades introduzidas pelo poder organizado sob a forma de Estado reside no princípio da soberania — única, absoluta, indivisível, certa e perpétua, tal como definido por Jean Bodin (1529/30–96) em Les six livres de la république (1576). O instrumento utilizado pelo rei é a lei, à qual só ele não está sujeito. Aqui vemos a modernidade de Bodin: o poder soberano é o poder de decidir por todos, sem restrições. A autoridade soberana não está limitada por lei ou por consentimento. O termo “Estado”, aproximadamente como o entendemos hoje, surge nos escritos de Nicolau Maquiavel (1469-1527), em particular em O Príncipe (1513): “Todos os estados, todos os domínios sob cuja autoridade os homens viveram no passado e vivem agora foram e são repúblicas ou principados”. Nesta altura, o período medieval estava definitivamente encerrado.
Todos os escritores políticos de meados do século XVI tiveram de tomar nota das novas situações institucionais e das condições em que a vida política na Península Itálica e nos estados católicos realmente acontecia. Existiam regimes monárquicos de origem antiga e principados bem estabelecidos, pelo que os escritores consideravam geralmente natural a forma que os estados tinham assumido na segunda metade do século XVI, levantando apenas a questão da melhor forma de governo. O facto de a Reforma, na sua componente calvinista, ter optado por formas de governo republicanas, como na Suíça e nas Províncias Unidas dos Países Baixos, gerou no clima da Contrarreforma um preconceito contra a república e favorável ao governo principesco como regime mais adequado à preservação da unidade religiosa e ao respeito pelas tradições. Estes escritores trabalharam, por isso, para os seus príncipes e para os seus estados, principalmente com uma intenção encomiástica, ajudando a consagrar o modelo do principado absoluto e a assegurar o papel profissional dos agentes e conselheiros do príncipe, os futuros burocratas. Tendo o papado ocupado o centro do panorama político após a queda do Império Romano do Oriente em 1453, a política católica da Contra- Reforma também se deparou com o problema de elaborar uma teoria do Estado e uma ética política consistente com o programa que emergiu do Concílio de Trento (1545-1563), que procurava recuperar a consciência, controlar a produção intelectual, educar os governantes e orientar a moralidade prática das massas. A nova era caracterizou-se pela afirmação de Estados absolutos.
As teorias políticas que começaram a responder à necessidade de realismo político — principalmente o pensamento de Maquiavel — começaram a separar a esfera política da esfera religiosa e eclesiástica. De facto, a afirmação do principado e do Estado moderno fez com que as sociedades católicas da Contra-Reforma tivessem de enfrentar a autonomia objectiva e a inescrupulosidade da política. Houve autores que evidenciaram um realismo político, ou, se quisermos, aquele maquiavelismo prático que estava constantemente presente no outro lado da Contra-Reforma. Os homens de acção deram sugestões com as quais demonstraram acreditar na verdade da afirmação de Francesco Guicciardini (1483 – 1540) de que “o poder político não pode ser exercido de acordo com os ditames da boa consciência”, e de Cosimo de’ Medici, o Velho (1389 – 1464), de que “o poder dos Estados não é mantido pelos Pais Nossos”.
Entre os intelectuais católicos que souberam satisfazer a necessidade de realismo na gestão dos Estados, encontramos Giovanni Botero (1544–1617). Obrigado a abandonar a Companhia de Jesus em 1580 devido a desentendimentos com os seus superiores, entrou ao serviço do cardeal de Milão, Carlo Borromeo (1538 – 1584). A sua principal obra, Della ragion di stato, foi publicada em Veneza em 1589. A obra não se referia a um modelo principesco estritamente italiano, mas à forma de Estado dominante na Europa no final do século XVI: o Estado monárquico absoluto. Botero mencionou no seu tratado a literatura política do século XVI que tinha descrito e discutido realisticamente a política real dos estados ao nível da arte política pura, dos interesses e da manutenção dos estados — isto é, da “razão de estado”. Botero define a razão de Estado como “o conhecimento dos meios adequados para fundar, conservar e expandir o domínio”. Botero pretendia resgatar a razão de Estado da sua condição de práxis política imoral e sem escrúpulos e elevá-la à esfera objectiva, conferindo-lhe o carácter neutro da ciência política.
A razão de Estado está ligada ao nascimento do Estado moderno. Nesta fase, o objecto da razão de Estado será a formação do Estado; uma vez formado o Estado, o seu objectivo será a sua preservação. A estabilidade dos estados depende da obediência dos súbditos, e a obediência é conseguida através das virtudes do príncipe — isto é, através da prudência e do valor político. A prudência deve ser aplicada na condução da guerra; ao controlo da ordem interna e da segurança externa; e à regulação das economias monetária, agrícola e comercial.
Botero expandiu a razão de Estado para o terreno económico, abrindo-se assim a uma realidade mais avançada do que Maquiavel.
O propósito de Botero de ter em conta a realidade política, de não cair na idealização vazia do príncipe justo e, por isso, amado, pode ser constatado em toda a obra Della ragion di stato, em que domina uma mentalidade prática e se tem em conta o interesse do Estado. A doutrina da razão de Estado afirma que a segurança deste é uma exigência de tal importância que, para a garantir, os governantes são obrigados a violar as normas jurídicas, morais, políticas e económicas que consideram imperativas quando a segurança do Estado não está ameaçada. A razão de Estado é a necessidade de segurança estatal que impõe uma determinada conduta aos governantes. Os pensadores do século XVI acabaram por se convencer de que a política poderia ser reduzida ao conjunto de métodos, meios e decisões postos em prática pelos governos, independentemente das leis e dos valores morais.
Nos estados do século XVI, a regra que permitia excepções à lei e à moralidade durante um estado de emergência parece ter-se tornado a prática comum dos governos. Em França, precisamente no contexto da afirmação do poder central do Estado, com Henrique IV e depois com o Cardeal Richelieu, a literatura política orientou-se para o realismo político. Posteriormente, Cardin Le Bret (1558–1655) defendeu em De la souveraineté du roi (1632) que a utilidade pública, entendida como o interesse do Estado, deveria prevalecer sobre todas as outras considerações.
A Europa absolutista do século XVII estava prestes a pôr de lado o problema ético sem o resolver. A razão de Estado italiana e maquiavélica que os escritores da Contra-Reforma tentaram domesticar e exorcizar foi evocada no século XVII por Gabriel Naudé (1600–1653) numa publicação clandestina intitulada Considérations politiques sur les coups d’état (1632). Trata-se de uma obra escrita na Roma Barberina, palco das manobras dos embaixadores de todos os estados católicos: um texto de provocatória franqueza ao enumerar os crimes cometidos pelos governos em nome do interesse do Estado. Naudé nem sequer tentou julgar estes crimes de um ponto de vista moral ou religioso: a eficácia da acção política era o único critério para julgar a política.
Assim, ao longo dos tempos, estabeleceu-se uma dupla moralidade no julgamento das mesmas acções quando praticadas pelo Estado e quando cometidas por cidadãos particulares. Este duplo critério, condenado sem recurso por Murray Rothbard, leva as pessoas a considerarem como legítimos os actos praticados pelo Estado e pelos seus funcionários que seriam considerados crimes se cometidos por cidadãos comuns.
O Estado, nascido no dealbar da era moderna para as necessidades de pacificação, para proteger as pessoas, tornou-se na realidade, como escreve Rothbard em Por uma Nova Liberdade, “o supremo, o eterno, o mais bem organizado agressor das pessoas e da propriedade de grande parte do público”.