Este ensaio em 3 partes é um comentário analítico à publicação de Murray Rothbard: “Science, Technology, and Government“
No mês de Março de 1959, Murray N. Rothbard entregou um texto de 30 páginas sobre o que os militares podiam fazer (ou deixar de fazer) para maximizar a eficiência dos Estados Unidos da América na produção de ciência e desenvolvimento tecnológico. Apesar de estar dirigido aos militares percebe-se, desde as primeiras páginas, a ideia de que os desafios com que os militares se deparam são os mesmos que a humanidade enfrenta em qualquer outra actividade. A especificidade da questão militar reside no facto de esta exercer um monopólio (que Rothbard não põe em questão neste trabalho). Poderíamos afirmar que a estratégia que Rothbard propõe consiste em que o Governo actue como se não existisse tal monopólio. Os monopólios impostos por lei tendem a ser fontes de ineficiência para a economia como um todo. O melhor curso a seguir, pois, é o de limitar todas as consequências negativas potenciais que derivam do monopólio legalmente imposto sobre o uso da força que as Forças Armadas dos EUA detêm dentro das fronteiras do país.
O objectivo desta sequência de três textos é fazer um sumário das principais ideias do trabalho de Rothbard, acrescentar alguns comentários que ajudem à sua compreensão, criticar onde se julgou apropriado e tentar decifrar se estas ideias ainda são apropriadas no mundo pós-Guerra Fria.
Não Há Como Contornar a Escassez
Rothbard começa por lembrar-nos que vivemos num mundo de recursos escassos. Essa é a razão de ser da economia: encontrar o enquadramento óptimo que permita a melhor alocação de recursos escassos. É compreensível que pessoas com a responsabilidade de dirigir uma guerra às vezes se esqueçam deste facto quando exaurem recursos aos que ficam na retaguarda. Mas, no campo de batalha, esta ideia está constantemente presente. Os militares combatem permanentemente com recursos escassos. Nunca ninguém teve ao seu dispor um número infinito de armas, tanques ou soldados. E no entanto, pelo facto de as forças armadas se manterem em funcionamento através de impostos e, por vezes, trabalhos forçados (como no caso do serviço militar obrigatório), devemos reafirmar que todo e cada um dos recursos dedicados aos militares deixa de estar disponível para o resto da população.
As forças armadas computam para o aumento do bem estar geral dedicando-se à protecção de vidas e propriedade contra o roubo e a destruição por indivíduos vindos do exterior do país mas, como o preço deste serviço não é determinado num mercado livre, existe sempre o risco de que retire muita da riqueza à população e se converta num parasita (ou uma doença auto-imune) que enfraqueça ou destrua o tecido da sociedade. “Um dos grandes […] méritos da economia de livre-empresa é que, por si só, pode assegurar uma distribuição e alocação suave e racional dos recursos produtivos […], ao destruir o sistema de preços, rouba a sí mesma a possibilidade de cálculo económico racional”[1]. Devido à inevitável imposição de um monopólio do uso da força por parte dos militares e sem a possibilidade de instituir um pagamento voluntário sobre os serviços prestados, o melhor rumo de acção, para assegurar o seu correcto funcionamento e que não se converta num fardo para o resto da população, é fazer que as forças armadas adoptem uma conduta o mais aproximada possível à que teriam num cenário de livre-iniciativa e de livre-mercado.
O Mercado Livre Não é Só Produção Privada
Com o pensamento acima em mente, parecia-nos lógico que Rothbard afirmasse que as forças armadas seriam tão mais eficientes quanto mais se apoiassem no mercado livre para satisfazer as suas necessidades, em vez de tentarem produzir internamente todas as coisas necessárias ao seu bom funcionamento, desde comida às armas a, claro está, investigação científica. Por mercado livre queremos dizer um mercado que também existe para servir necessidades de pessoas fora do campo militar. Aliás, dos exemplos dados por Rothbard quando se refere mais especificamente à utilização de cientistas e de investigação científica, parece claro que tem em mente um mercado de produção científica com utilidade também para fins não-militares. Infelizmente, isto não é exactamente o que o Rothbard aconselha no seu estudo. O nosso ênfase é no mercado-livre enquanto que a sua análise está focada na escolha entre produção privada ou pública dos bens necessários à actividade militar.
Não questionando as capacidades superiores na alocação de recursos, julgamos que a utilização de produtores privados sem qualquer actividade fora do sector da defesa, tende a criar um sector industrial que existe com o propósito único de servir o governo. Como não dispõem de outros clientes, a sua prosperidade depende da manutenção ou aumento das necessidades dos militares e isso só pode ser obtido através de um esforço de guerra contínuo. Desafortunadamente a análise de Rothbard ficou aquém ao referir-se apenas à produção privada pois sabemos como o Murray Rothbard foi, ao longo da sua vida, um dos maiores críticos do complexo militar-industrial dos EUA.
Escassez de Cientistas e de Investigação Científica
Após estas considerações mais genéricas Rothbard focou a sua análise de forma mais específica em duas alegadas “escassezes”: cientistas e investigação científica. Vimos atrás que estes são, por definição, recursos escassos. Mas, por “escassez”, os defensores desta ideia, queriam dar a impressão de que este é um problema de produção, problema que, como a maioria dos problemas de produção, pode ser solucionado com engenharia. Neste caso engenharia social.
Em relação ao problema da escassez de cientistas, Rothbard, afirmou que se o preço de um bem ou serviço normal aumenta, o mesmo sucede com a quantidade oferecida. Deste modo, quando os militares sintam que, pela razão que seja, precisam de mais cientistas, tudo o que têm que fazer é pagar salários mais elevados, que os cientistas voluntariamente se transfeririam do sector privado para a investigação bélica. No longo-prazo, isto também daria um sinal aos estudantes de que mais cientistas são necessários e, deste modo, funcionaria como um incentivo para atrair mais pessoas à profissão. Os preços emitem sinais e qualquer tentativa de os manipular subsidiando estudantes ou requisitando os cientistas distorceria a mensagem e acabaria tendo o efeito oposto. Uma maneira não-monetária de subir os salários seria reduzindo os custos em que os cientistas incorrem quando trabalham para os militares. Rothbard pede então que os níveis de segurança e segredo sejam reduzidos já que ele vê estas condicionantes como um custo adicional que os cientistas têm que suportar quando trabalham para o governo.
Rothbard também se refere a um problema que, desde essa época, se tem deteriorado – a interferência estatal na educação. Rothbard atacou a filosofia que se encontra por detrás da educação pública como um impedimento à formação de cientistas já que impede os jovens de adquirirem as ferramentas mentais necessárias para dominar matérias científicas ou de qualquer outro tema intelectual. A regulação estatal funciona como uma barreira para impedir que pessoas com uma boa preparação científica entrem na profissão docente, ao requerer muitas certificações em cursos de método de ensino, desprezando o objecto da disciplina que é suposto que os professores ensinem e dominem. Os alunos são orientados para actuar dentro do conformismo do grupo. Mais de meio século depois, quer-nos parecer que a situação não melhorou.
- Rothbard, Murray N. – Science, Tecnology and Government, 1959, 2004, The Mises Institute, page 2, tradução própria. ↩︎