Este ensaio em 3 partes é um comentário analítico à publicação de Murray Rothbard: “Science, Technology, and Government“. Pode ler a parte I aqui.
O triunfo do inventor individual
No texto anterior vimos as recomendações de Rothbard para paliar a escassez de cientistas. Agora veremos como se explica a alegada escassez de investigação científica. Esta é, na nossa opinião, a parte mais interessante de todo o texto de Rothbard. Alguém disse que um camelo é um cavalo desenhado por um comité. Os exemplos que nos deixa Rothbard da história recente quase nos levam a concluir que um camelo estaria para além das possibilidades de um comité. Se pensarmos nos filmes do James Bond da década de 60 (parece ser que o personagem era um favorito de Rothbard), vemos que os “maus da fita” dispunham sempre de gigantescas instalações científicas onde legiões de técnicos fortemente guardados desenvolviam tecnologia de ponta (normalmente armas) capaz de destruir o mundo. Os filmes dependem em grande parte da suspensão do cepticismo por parte do espectador para ser bem sucedidos. O que o espectador vê tem que fazer sentido. Era pois, uma concepção comum da época associar a ciência em grande com os grandes laboratórios. Pensando bem, esta percepção continua actual, os filmes do James Bond não mudaram tanto.
Quando pensamos nalgumas das maiores empresas de tecnologia de hoje (como as Big Five: Alphabet, Amazon, Apple, Meta e Microsoft) esquecemo-nos que estes negócios começaram em garagens com uma ou duas pessoas a trabalhar numa ideia meio louca. A princípios de 1984, Steve Jobs meteu o dedo na ferida da IBM por esta ter deixado passar a oportunidade de investir numa tecnologia chamada xerografia em 1958, “dois anos depois nasceu a Xerox e a IBM têm-se auto-flagelado desde então”[1]. O inventor da xerografia foi Chester Carlson. O primeiro aparelho que se parecia moderadamente às actuais fotocopiadoras saiu à venda em 1959, o exacto ano em que Rothbard escreveu o trabalho que serve de inspiração a esta análise, e a história por detrás do aparecimento da fotocopiadora é em tudo semelhante aos numerosos exemplos que Rothbard menciona, que melhoraram dramaticamente as condições de vida de milhões de pessoas no século XX. Ao mesmo tempo que o Rothbard fazia a apologia do inventor, novas invenções continuavam a ser feitas por inventores individuais (e recusadas pelas grandes empresas)[2].
A maior parte das invenções referidas por Rothbard como as mais importantes do Século XX (até à data em que escreveu o seu trabalho) “resultaram do trabalho de inventores individuais […] a trabalhar nas suas próprias casas e com pouquíssimos recursos”[3], foi exactamente isso que sucedeu no caso de Carlson que utilizou a sua cozinha como laboratório. Algumas das invenções que Rothbard menciona foram criadas por pessoas que não estavam relacionadas com a indústria ou o campo de aplicação da tecnologia em questão. Carlson tinha um bacharelato em Física, mas acabou por trabalhar num departamento de patentes e estudar Direito. Rothbard também se refere a “muitos casos registados em que o inventor triunfou apesar do escárnio de especialistas reconhecidos no campo, talvez até orgulhecido por não saber o suficiente para se deixar desencorajar”[4]. A xerografia não tinha praticamente precedentes em trabalhos científicos publicados e, como vimos, a IBM (e outras 20 empresas) recusaram a ideia.
Segundo Rothbard, mesmo as empresas com grandes laboratórios, quando procuram desenvolver novas tecnologias, utilizam equipas pequenas, nalguns casos, contratadas em outsourcing bem como research independente. Os grandes laboratórios entram só na fase de teste e experimentação, ou seja, no trabalho científico mais rotinário. Há no entanto sectores como o farmacêutico onde se requerem maiores unidades de investigação porque é necessário executar grandes verificações empíricas e porque os custos de desenvolver um novo produto são cada vez maiores devido à quantidade de exigências legislativas que têm que cumprir. Apesar de muitas vezes as empresas se queixarem do custo que a legislação acarreta, esta protege-as de novos concorrentes que queiram entrar no sector ao aumentar as exigências de capital e, ao ser idêntico para todos, o custo adicional é muitas vezes transmitido ao cliente final.
O empreendedor é uma figura chave para entender a perspectiva dinâmica da Economia Austríaca. Ele é um criador que nenhuma previsão económica pode antecipar. O que ainda não existe não pode ser incluído num modelo de projecção económica. A acção empresarial não pode ser ensinada a ninguém por ninguém. O inventor é, em essência, um empreendedor. Eles estão interligados.
A via soviética e os lysenkistas modernos
A investigação em grandes instalações científicas tinha o seu atractivo nos anos 50. Esta era a via soviética e, através da propaganda, apresentava-se ao mundo como a maneira mais avançada, mais moderna, mais “científica” de fazer ciência. O próprio marxismo sempre se gabou de ser uma maneira científica de organizar a sociedade. Na era dos sputniks as pessoas no mundo inteiro estavam genuinamente maravilhadas com a superioridade do programa espacial soviético. Logo no princípio do artigo, Rothbard, com propriedade, pergunta-se se “não é a liberdade, ao invés da coerção, […] a melhor maneira de estimular a eficiência e o progresso científico”[5]? Deste modo ele alerta os militares norte-americanos contra tentarem entrar na corrida empregando métodos essencialmente soviéticos. Mais adiante Rothbard passa a enumerar os problemas adicionais com que a ideologia dos soviéticos lastrava a ciência tentando assim demonstrar que a via soviética para organizar a investigação científica estava condenada a produzir resultados menos satisfatórios.
Por muito que os soviéticos quisessem desenvolver tecnologia de ponta não o podiam fazer. Não só porque a alocação de recursos eficiente era praticamente impossível (já que não existia um mercado livre para bens de capital), mas também porque o controlo governamental da ciência implicou a sua politização. A investigação científica não era um fim, mas um meio ao serviço de objectivos políticos. Nestas circunstâncias, a única ciência útil é aquela que reforça a ideologia no poder. O Caso Lysenko foi o paradigma da fraude científica soviética, de tal forma que passou a ser sinónimo de manipulação da ciência para obter uma conclusão predeterminada que reforça um enviesamento político.
A finais da década de 20 do século passado, Trofim Lysenko emergiu como o mais destacado agronomista da União Soviética ao propor soluções práticas para aumentar a produtividade dos solos, a maioria das quais eram inúteis ou mesmo prejudiciais. Mas, como era um fervoroso leninista, foi subindo na hierarquia e acabou sendo o principal obstáculo à aplicação da genética. Isto servia a ideologia do partido já que reforçava a idea de que o motor do desenvolvimento era a luta de classes e os carácteres adquiridos geneticamente pouca influência teriam no desenvolvimento do processo histórico. A Genética foi considerada uma ciência burguesa. Acrescia o facto de Lysenko ser um agrónomo de origens humildes, um “herói do proletariado”. Os problemas começam a surgir quando os métodos propostos por Lysenko não dão os resultados esperados e em vez de serem abandonados, são os dados das colheitas que começam a ser falsificados para reforçarem a ideia que o método funciona. Foi só nos anos 60 que a URSS reconheceu o erro depois de, no início da década de 50, ter mandado para os Gulag a alguns dos principais opositores de Lysenko e exportado o Lysenkismo ao bloco comunista.
Mas seria ingénuo acreditar que o Lysekismo só pode acontecer em estados totalitários. À medida que os estados modernos arrecadam uma fatia cada vez maior da produção nacional, os políticos têm cada vez mais meios para sustentar e premiar a investigação científica que confirma as suas tendências ideológicas. O facto de a maior parte dos estados modernos ser formalmente neutro em relação a qualquer credo religioso ou ideologia não significa que os seus governantes, ou mesmo a maioria da população que os elege, estejam livres dessas mesmas crenças. Algumas, como por exemplo os valores ecológicos, são amplamente partilhadas, e o facto de os seus proponentes não os verem como uma religião ou crença (pelo contrário, crêem tratar-se de evidências científicas) apenas aumenta a possibilidade de controlo político da ciência, neste caso com o beneplácito da maioria, algo contra o qual, pelo menos desde os tempos de Galileu, já deveríamos estar avisados. Actualmente o poder da ciência como fenómeno de massas decorre da percepção pela população de que o método científico é uma ferramenta poderosa para a descoberta da verdade. A utilização de métodos próprios das ciências naturais no campo das ciências sociais é um dos maiores erros científicos da nossa era. A dificuldade de desmontar estudos que parecem formalmente correctos do ponto de vista metodológico aumenta a capacidade de manobra de políticos mal-intencionados ou simplesmente inconscientes. Mesmo no campo específico das ciências naturais essa manipulação é possível, especialmente se tratamos com dados de difícil medição ou teorias que se vão adaptando para evitar passar pelo crivo da falseabilidade. Por exemplo, toda a “ciência” que se produziu durante o Covid: benefício dos confinamentos, vacinação de crianças, uso de máscaras na rua, que agora se vai discretamente descartando como os disparates que foram. Também sucede com a Climatologia (a Meteoreologia não poderia estudar estas coisas?) onde um fenómeno de grande complexidades e causas múltiplas se vê reduzido a uma só causa. Isto é uma tentação permanente para os detentores do poder político - distorcer ou influenciar as suas conclusões para melhor servir os seus propósitos: no caso do Covid dar a impressão que o Estado pode evitar a propagação de um vírus respiratório e no das mudanças climáticas algo parecido com a agravante que a solução passa simplesmente por pagar mais impostos.
- Steve Jobs durante a apresentação do Macintosh no dia 24 de Janeiro de 1984. Na realidade, 1959 foi o ano em que foi lançado o aparelho Xerox 914. A Xerox enquanto empresa existia desde 1906, embora com o nome de Haloid, tendo sido rebaptizada em 1961 devido ao enorme sucesso da xerografia. ↩︎
- A xerografia, previamente chamada electro-fotografia, foi inventada em 1938. O episódio da IBM aconteceu algures entre 1939 e 1944. As fontes do Steve Jobs eram imprecisas. ↩︎
- Rothbard, Murray N. – Science, Technology and Government, 1959, 2004 The Mises Institute, pág 12. “were the work of individual inventors […] working at their own directions and with very limited resources”. ↩︎
- Rothbard, Murray N. – Science, Technology and Government, 1959, 2004 The Mises Institute, pág. 14. “many recorded instances of the inventor winning out despite the scoffing of the recognized experts on the field, perhaps even emboldened because he didn’t know enough to be discouraged”. ↩︎
- Rothbard, Murray N. – Science, Technology and Government, 1959, 2004 The Mises Institute, pág. 5. “isn’t freedom. rather than coercion, […] the best way to spur efficiency and scientific advance”. ↩︎