No sistema jurídico moderno, a vítima do crime é punida duas vezes. No caso de um roubo, por exemplo, a vítima é roubada pelo ladrão e depois, se o criminoso for efectivamente detido e preso, a vítima é novamente roubada pelo governo para financiar o encarceramento. Isto faz com que a defesa de uma indústria prisional seja suspeita num sistema jurídico de mercado livre. Mas muitos libertários defendem que, numa sociedade libertária, surgiriam prisões no mercado livre. Tal como acontece com muitas outras coisas, a História pode sugerir algumas perspectivas sobre esta questão.
Durante a maior parte da história anglo-saxónica, as prisões estiveram praticamente ausentes do sistema de justiça criminal. O estabelecimento e a expansão das prisões como forma de punir os criminosos só surgiram à medida que o governo se foi imiscuindo cada vez mais no sistema judicial.
Após a conquista normanda de 1066, o common law anglo-saxónico foi absorvido pelo direito real ao longo de muitos séculos. À medida que o sistema jurídico se tornou mais controlado pelo governo, no entanto, durante a maior parte da história inglesa as penas continuaram a basear-se na restituição, ao invés da punição. Tal como na teoria jurídica libertária, se uma pessoa violasse a common law – o que normalmente significava apenas uma violação de uma pessoa ou de uma propriedade – a vítima instaurava um processo contra o agressor, era rapidamente conduzido um julgamento e o culpado pagava uma indemnização à vítima para compensar os danos causados. Do mesmo modo, os contratos regiam os litígios sobre testamentos ou entre comerciantes. A utilização das prisões limitava-se à detenção de pessoas que aguardavam julgamento e, uma vez que as penas se baseavam na restituição, o incentivo para um julgamento rápido estava incorporado no sistema.
Um século após a conquista normanda, como a coroa já tinha começado a absorver alguns dos tribunais e a empregar juízes, as pessoas eram detidas durante mais tempo à espera dos juízes Reais. Henrique II, que chegou ao poder em 1154, criou inovações jurídicas que incluíam tribunais permanentes de juízes profissionais e juízes itinerantes, o que centralizou partes do sistema jurídico. Como o novo sistema determinava que algumas infracções tinham de ser julgadas por juízes itinerantes, os prisioneiros tinham de ser detidos até que um desses juízes passasse pelo seu município. Isto significava tempos de espera mais longos para julgamentos que eram monopolizados pela coroa e, por conseguinte, a expansão do uso de celas de prisão. No entanto, o encarceramento ainda não era visto como um castigo.
Como certas infracções eram agora entre a coroa e o culpado – muito à semelhança do nosso sistema jurídico moderno de lei fiduciária em que uma disputa criminal é entre, por exemplo, um consumidor de marijuana e o governo – a punição era a restituição à coroa, em vez de uma vítima real de agressão. Esta forma de restituição era designada por “amercement”1, ou seja, uma coima.
Henrique III, que assumiu o trono inglês em 1216, supervisionou o movimento de utilização das prisões como forma de punição. Nessa altura, porém, a prisão era ainda apenas para os prisioneiros que se recusavam a pagar a multa à coroa. Para coagir os prisioneiros a pagarem a multa à coroa – geralmente porque se recusavam a declarar-se culpados do crime pelo qual foram condenados – eram empilhados com correntes e pedras até cederem ou morrerem. Mas as prisões continuavam a não ser um castigo per se, mas apenas um instrumento de extracção coerciva de receitas para a coroa.
Mas as prisões custam dinheiro e, agora que estavam a ser utilizadas para manter os presos durante mais tempo do que a espera por um julgamento rápido, os custos estavam a aumentar. O objectivo era obter receitas através deste sistema, pelo que gastar dinheiro dos impostos para manter as prisões era contraproducente. Para financiar os custos de funcionamento de uma prisão, os xerifes – que eram originalmente os executores governamentais dos tribunais reais – recebiam a licença para gerir uma prisão, que obtinham através do pagamento de uma taxa à coroa. Os xerifes ganhavam então dinheiro cobrando taxas de detenção aos prisioneiros e vendendo-lhes comodidades.
Só após 1500 é que as prisões começaram a assemelhar-se aos sistemas penitenciários modernos, com as Casas de Correcção, financiadas pelo Estado e utilizadas em grande parte como forma de “reformar” os vagabundos pobres (na realidade, as Casas de Correcção eram uma forma de obter mão-de-obra barata para o governo ou para os seus comparsas). No entanto, esta não seria a única forma de lidar com os criminosos, uma vez que uma lei de 1597 permitia a concessão de perdões a prisioneiros dispostos a assinar um contrato como servo admitido, fornecendo muitos dos primeiros trabalhadores da Virgínia, entre outras colónias.
Originalmente, o transporte dos servos contratados era pago pelo proprietário da terra que comprava o servo (o que era subsidiado pelo sistema “headright“2 que concedia ao proprietário 50 acres3 de terra por servo contratado). O resultado deste sistema era que os proprietários de terras não pagavam o transporte dos servos – em especial dos servos delinquentes – tão rapidamente com que a Inglaterra gostaria de os ter enviado. Assim, em 1718, a coroa aprovou a Lei do Transporte, que finalmente afectou as receitas públicas à gestão dos prisioneiros, pagando o seu transporte para as várias colónias britânicas.
No século XVIII, a coroa estava finalmente a financiar o sistema prisional através das Casas de Correcção e da Lei dos Transportes, e as prisões começavam a ter um aspecto muito mais próximo da sua forma moderna. Os reclusos usavam uniformes e efectuavam trabalhos forçados, sendo a restituição uma coisa do passado. Com bom comportamento, os reclusos podiam ganhar uma libertação antecipada, e com mau comportamento, podiam ganhar uma chicotada. No final do século, especialmente com a secessão das colónias americanas da Grã-Bretanha, a prisão tornou-se a principal forma de punição dos criminosos.
Na teoria libertária, a questão de como as prisões funcionariam num sistema totalmente privado e de mercado livre parece nunca estar resolvida. Algumas pessoas argumentam que, embora as actuais prisões “privadas” não sejam verdadeiramente privadas no sentido do mercado livre, existiria um sistema de prisão superior e rentável para lidar com criminosos violentos sem a existência de um governo financiado pelos impostos. Embora seja impossível provar ou refutar este argumento apenas com teoria, a história do sistema jurídico anglo-saxónico oferece-nos uma perspectiva valiosa. E, como a História demonstra, as prisões nunca foram produto do mercado livre.
Para mais, veja: “The Enterprise of Law: Justice Without the State” de Bruce Benson.
Notas do Tradutor
- Etimologicamente do francês, de “estar à mercê de”. ↩︎
- O sistema headright foi um plano de colonização desenvolvido durante o período colonial na América do Norte. ↩︎
- 1 acre corresponde aproximadamente a 0.4 hectares. ↩︎
Artigo publicado originalmente no Mises Institute.