Nota: pode ler as outras partes deste ensaio aqui:
- Deflação e Liberdade (Introdução, Parte I e II)
- Deflação e Liberdade (Introdução, Parte III, IV e V)
- Deflação e Liberdade (Introdução, Parte VI, VII e VIII)
III
Do ponto de vista dos interesses comuns de todos os membros da sociedade, a quantidade de moeda é irrelevante. Qualquer quantidade de moeda presta todos os serviços que a troca indirecta pode prestar, tanto a longo como a curto prazo. Este facto é o ponto de partida inabalável para qualquer reflexão sólida sobre questões monetárias.
E é o critério mais importante quando se trata de enfrentar a deflação. À luz do princípio descoberto pelos economistas clássicos, podemos dizer que a deflação não é, certamente, aquilo que se costuma dizer: uma maldição para todos os membros da sociedade. A deflação é um fenómeno monetário e, como tal, afecta a distribuição da riqueza entre os indivíduos e os vários estratos da sociedade, bem como a importância relativa dos diferentes ramos da indústria. Mas não afecta a riqueza agregada da sociedade. A deflação é uma redução drástica da quantidade de moeda ou de substitutos da moeda, e implica um declínio precipitado dos preços desta. Um tal acontecimento, por muito dramático que seja para um grande número de indivíduos, não constitui certamente uma ameaça mortal para a sociedade no seu conjunto1.
Imaginemos que todos os preços baixavam amanhã 50%. Isso afectaria a nossa capacidade de nos alimentarmos, vestirmos, abrigarmos e transportarmos? Não, porque o desaparecimento do dinheiro não é acompanhado pelo desaparecimento da estrutura física da produção. Numa deflação muito dramática, há muito menos dinheiro do que havia antes e, portanto, não podemos vender os nossos produtos e serviços aos mesmos preços nominais de antes. Mas as nossas ferramentas, as nossas máquinas, as ruas, os carros e os camiões, as nossas colheitas e os nossos alimentos – tudo isto continua a existir. E assim podemos continuar a produzir, e até a produzir com lucro, porque o lucro não depende do nível de preços nominais a que vendemos, mas da diferença entre os preços a que vendemos e os preços a que compramos. Numa deflação, ambos os conjuntos de preços descem e, consequentemente, a produção com fins lucrativos pode continuar.
Há apenas uma mudança fundamental que a deflação provoca. Altera radicalmente a estrutura de propriedade. As empresas financiadas por créditos vão à falência porque, com a baixa dos preços, já não podem pagar os créditos que contraíram sem antecipar a deflação. As famílias com hipotecas e outras dívidas consideráveis para pagar vão à falência, porque com a quedo dos preços monetários o seu rendimento também diminui, enquanto as suas dívidas se mantêm ao nível nominal anterior. A própria tentativa de liquidar os activos para pagar as dívidas implica uma nova redução do valor desses activos, tornando assim ainda mais difícil o pagamento aos seus credores. Nas palavras memoráveis de Irving Fisher, “quanto mais os devedores pagam, mais devem“.
No entanto, a partir desta observação correcta, Fisher saltou para a afirmação falaciosa de que “a liquidação derrota-se a si própria”2. Voltemos a sublinhar que as falências – independentemente do número de indivíduos envolvidos – não afectam a riqueza real da nação e, em particular, não impedem a continuação bem sucedida da produção. A questão é que outras pessoas vão gerir as empresas e ser proprietárias das casas – pessoas que, na altura em que a deflação se instalou, estavam sem dívidas e detinham poupança para comprar empresas e imóveis. Estes novos proprietários podem gerir as empresas de forma rentável a um nível de preços de venda muito mais baixo, porque compraram as acções e comprarão outros factores de produção também a preços mais baixos.
Em suma, o verdadeiro ponto crucial da deflação é o facto de não esconder a redistribuição que acompanha as alterações da quantidade de dinheiro. Implica uma miséria visível para muitas pessoas, em benefício de vencedores igualmente visíveis. Isto contrasta fortemente com a inflação, que cria vencedores anónimos à custa de perdedores anónimos. Tanto a deflação como a inflação são, do ponto de vista que defendemos até agora, jogos de soma zero. Mas a inflação é um roubo secreto e, portanto, o veículo perfeito para a exploração de uma população através das suas (falsas) elites, enquanto a deflação significa uma redistribuição aberta através da falência de acordo com a lei.
IV
Por estas constatações, poderíamos encerrar a nossa análise. Vimos que a deflação não é intrinsecamente má e que, por isso, está longe de ser óbvio que uma política monetária sensata deva procurar evitá-la, ou atenuar os seus efeitos, a qualquer preço. A deflação cria um grande número de perdedores, e muitos desses perdedores são pessoas perfeitamente inocentes que simplesmente não foram suficientemente sensatas para antecipar o acontecimento. Mas a deflação também cria muitos vencedores, e também castiga muitos empreendedores políticos que prosperaram graças às suas ligações íntimas com aqueles que controlam a produção de moeda fiduciária.
A deflação não é certamente uma espécie de inversão de uma inflação anterior que repara os danos causados por redistribuições prévias. Traz uma nova ronda de redistribuição que acrescenta à ronda anterior de redistribuição induzida por inflação3. Mas seria um erro inferir deste facto que uma deflação após uma inflação anterior seria de alguma forma prejudicial do ponto de vista económico, porque envolveria redistribuições adicionais. A questão é que qualquer política monetária tem efeitos redistributivos. Em particular, quando se instala uma deflação da oferta de substitutos de moeda, a única forma de a combater é através da inflação da oferta de moeda base, e esta política também envolve redistribuição e, portanto, cria vencedores e vencidos.
Por conseguinte, não existe qualquer justificação económica para que a política monetária se empenhe numa luta ardente contra a deflação, em vez de a deixar seguir o seu curso. Nenhuma destas políticas beneficia a nação como um todo, mas apenas uma parte da nação à custa de outros grupos. Nenhum funcionário público pode servir lealmente todos os seus concidadãos através de uma posição dura contra a deflação. E também não pode invocar a autoridade da ciência económica para apoiar essa política.
Mas há ainda um outro ponto de vista que merece ser considerado e que é, de facto, decisivo para o nosso problema. Resulta do facto de, na prática, existirem em qualquer momento duas, e apenas duas, opções fundamentais para a política monetária: a primeira opção é aumentar a quantidade de papel-moeda; a segunda opção é não aumentar a oferta de papel-moeda. A questão agora é saber até que ponto cada uma destas opções se harmoniza com os princípios básicos em que assenta uma sociedade livre.
V
Como se produziria moeda numa sociedade livre? Observemos, em primeiro lugar, que o facto de a quantidade de moeda ser irrelevante para a riqueza de uma nação não deve ser confundido com o ideal de estabilização da quantidade de moeda. Este último ideal é, de facto, um ideal espúrio e não decorre do facto acima mencionado. Não há nada de errado com aumentos ou diminuições da quantidade de moeda. A questão é que esses aumentos ou diminuições não devem ser confundidos como benéficos para a sociedade como um todo. O certo e o errado na política monetária não dizem respeito à questão: Com que fim se deve alterar a quantidade de moeda? Trata-se antes da questão de saber quem tem o direito de alterar a quantidade de moeda. E numa sociedade livre, a resposta óbvia é: todos os produtores de dinheiro têm o direito de produzir mais dinheiro e todos os proprietários de dinheiro têm o direito de usar a sua propriedade como bem entenderem.
Numa sociedade verdadeiramente livre, a produção de moeda é uma questão deixada à iniciativa privada. A moeda é produzida e vendida como qualquer outro bem ou serviço. E isto significa, especificamente, que numa sociedade livre a produção de moeda é competitiva e concorrencial. Trata-se de uma questão de extracção de metais preciosos e de cunhagem de moedas, e tanto a extracção como a cunhagem estão sujeitas à concorrência de todos os outros participantes no mercado. Ao vender o seu produto, o produtor de moeda compete com todos os outros indivíduos que possuem dinheiro e procuram comprar os mesmos bens que ele deseja. E, ao adquirir factores de produção, o produtor de moeda compete com os produtores de cadeiras, espectáculos de teatro, telefones, tapetes, automóveis, etc. Numa sociedade livre, a produção de dinheiro está restringida a limites bastante estreitos, limites esses que são determinados pela vontade dos outros membros da sociedade de cooperarem com o nosso produtor de dinheiro e não com outro.
Que tipo de dinheiro prevaleceria numa sociedade livre? As considerações teóricas e a experiência histórica apontam todas para a mesma resposta: uma sociedade livre utilizaria metais preciosos como dinheiro. Os pagamentos seriam efectuados em moedas feitas de ouro, prata, platina, cobre ou qualquer outra substância que combinasse a escassez com as vantagens físicas destes metais.
Em contrapartida, o papel-moeda sempre foi moeda fiduciária, ou seja, sempre foi imposto pelo poder coercivo do Estado. Não é o dinheiro do mercado livre, mas o dinheiro de uma sociedade parcialmente escravizada.
Notas das Partes III, IV e V
- Isto é também reconhecido, pelo menos implicitamente, nas poucas obras de literatura de gestão que tratam do empreendedorismo num ambiente deflacionista. Ver, por exemplo, Daniel Stelter, Deflationäre Depression: Konsequenzen für das Management (Wiesbaden: Deutscher Universitäts-Verlag, 1991); A.G. Shilling, Deflation: Why It’s Coming, Whether It’s Good or Bad, and How It Will Affect Your Investments, Business, and Personal Affairs (Short Hill, N.J.: Lakeview, 1998); idem, Deflation: How to Survive and Thrive in the Coming Wave of Deflation (New York: McGraw-Hill, 1999); Robert R. Prechter, Conquer the Crash: You Can Survive and Prosper in a Deflationary Depression (New York: Wiley, 2002). ↩︎
- Irving Fisher, “The Debt-Deflation Theory of Great Depressions,” Econometrica 1, no. 4 (October 1933): 344. Ver também Lionel D. Edie, The Future of the Gold Standard, Gold and Monetary Stabilization, Quincy Wright, ed. (Chicago: Chicago University Press, 1932), pp. 111–30. On pp. 122–26, que apela à estabilização daquilo a que Keynes viria a chamar procura agregada. ↩︎
- Mises, Theory of Money and Credit, pp 262f; idem, Human Action, p. 414 ↩︎
Este ensaio foi publicado originalmente no Mises Institute.