A lei natural é muitas vezes vista com desconfiança pelos cientistas sociais porque estes conceptualizam a natureza humana, e cada vez mais até a natureza dos animais, como uma construção social. Na sua opinião, não existe uma natureza humana essencial com base na qual possamos decidir o que é do melhor interesse da sociedade. Defendem que, em vez disso, devemos adoptar uma abordagem ambiciosa, construindo um mundo melhor e mais justo para o planeta e descobrindo o que é melhor para a sociedade através de um processo de experimentação científica. Nesta perspectiva, as noções de “certo” e de “errado” não são mais do que opiniões maioritárias determinadas através do debate e do acordo democrático, e seria irremediavelmente arbitrário e subjectivo decidir o certo e o errado com base em alguma lei “superior” chamada lei da natureza.
Em A Ética da Liberdade, Murray Rothbard rejeita estas perspectivas, argumentando que o cepticismo com que a lei natural é geralmente considerada é totalmente errado. Rothbard observa que,
Entre os intelectuais que se consideram “científicos”, a frase “a natureza do homem” tende a ter o efeito de uma bandeira vermelha num touro. “O homem não tem natureza!” é o grito de guerra moderno e típico do sentimento dos filósofos políticos de hoje foi a afirmação de um distinto teórico político, há alguns anos, antes de uma reunião da Associação Americana de Ciência Política, de que a “natureza do homem” é um conceito puramente teológico que deve ser descartado de qualquer discussão científica.
Os positivistas jurídicos estão particularmente interessados em extinguir a ideia de que a lei se baseia em princípios morais. Da mesma forma, muitos utilitaristas avaliam a lei com base nas suas consequências para a sociedade, e não com base na moralidade. O debate no Reino Unido sobre a despenalização do “suicídio assistido” é um exemplo do desejo de evitar influências teológicas ou morais no debate sobre a reforma da lei. Já não é crime no Reino Unido cometer ou tentar cometer suicídio, pelo que não existe nenhuma lei que impeça alguém de cometer suicídio se assim o desejar, mas qualquer pessoa que ajude outra a cometer suicídio corre o risco de ser processada pelo crime de “incentivar ou auxiliar o suicídio” ao abrigo da Lei do Suicídio de 1961 ou mesmo, em casos graves, pelo crime de homicídio. Assim, a despenalização do suicídio assistido estabeleceria que não é ilegal auxiliar o suicídio, e os defensores do suicídio assistido argumentam que as considerações “morais” não devem entrar no debate sobre a despenalização.
O mandamento bíblico “Não assassinarás” foi suficiente para muitas pessoas durante séculos como explicação do porquê de o homicídio ser proibido. Portanto, há muito que se presume que qualquer argumento de que o assassinato é “errado” no sentido moral deve ser necessariamente um princípio religioso. Isto explica porque é que qualquer tentativa de introduzir argumentos “morais” no debate sobre o suicídio assistido é tratada como uma tentativa inadequada de introduzir teologia na lei. Os princípios religiosos são, naturalmente, vinculativos apenas para os seus próprios seguidores; portanto, numa era secular, é preferível dizer que o assassinato é ilegal e que a razão pela qual não se deve cometer assassinato é que a lei o proíbe.
Neste exemplo, os reformadores a favor da despenalização descartam os argumentos dos seus opositores como argumentos “morais”, insistindo que apenas argumentos que possam ser justificados sem afirmar que o suicídio assistido seria “errado” no sentido moral constituiriam uma objecção válida às suas propostas. Mas os argumentos mais fortes contra a legalização do suicídio assistido apresentados por grupos de pessoas com deficiência e por organismos profissionais, incluindo a Associação Médica Mundial, são argumentos morais, embora claramente não sejam religiosos. Além disso, os próprios defensores da legalização utilizam argumentos morais para sustentar os seus argumentos, principalmente que devemos respeitar a escolha autónoma de se matar e obter assistência para tal, e que a sociedade tem o dever moral de acabar com o sofrimento. Por isso, o antigo Lord Chief Justice, Lord Judge, observou que descriminalizar ou não o suicídio assistido é “o grande problema moral e legal dos nossos tempos”.
Confundir moralidade com religião, numa tentativa de excluir os argumentos morais do debate público, é, portanto, um erro. A visão de que algo é “moralmente errado” não é, por si só, uma visão religiosa. O facto de muitas pessoas serem religiosas e poderem basear os seus princípios morais pessoais na sua religião não significa que todos os princípios morais se baseiam na religião. Nem significa que os princípios morais seculares devam ser entendidos como uma “religião cultural” ao estilo dawkinsiano, na qual as visões religiosas são adoptadas por razões culturais, sendo a divindade convenientemente extirpada. Afinal, não é preciso ser religioso para abraçar os mandamentos cristãos, “Não roubarás” ou “Não assassinarás”, e é neste sentido que Richard Dawkins pôde, sem se contradizer, manifestar a sua admiração pelos princípios cristãos, apesar de ser ateu:
«Talvez para surpresa de muitos, Richard Dawkins, o famoso «Novo Ateu” de outrora, numa recente entrevista de rádio auto-intitulou-se um “cristão cultural”. Apressou-se a esclarecer que “não é um crente” nos ensinamentos reais do cristianismo, mas mesmo assim disse ao entrevistador: “Adoro hinos e canções de Natal, e sinto-me em casa no ethos cristão. Sinto que somos um país cristão nesse sentido.»
Isto leva muitos a presumir erradamente que a referência aos princípios morais é algum tipo de “teologia cultural” na qual os princípios divinos são adoptados sem referência explícita ao divino. Não conseguem apreciar a clara distinção analítica entre princípios morais e decretos religiosos.
Razão e Racionalidade
Neste contexto, a análise de Rothbard sobre a lei natural pode ser entendida como parte de uma tradição de lei natural que tenta identificar princípios de lei natural baseados puramente na razão, inteiramente distintos dos princípios derivados da “lei divina”. Rothbard rejeita a ideia de que “a lei natural e a teologia estão inextricavelmente interligadas”. Na sua opinião, a lei natural baseada na razão não é um conjunto de opiniões religiosas ou ideológicas subjectivas, mas um conjunto de princípios objectivos derivados da natureza humana.
A lei natural também não é um conjunto de normas culturais que compreendem princípios religiosos com a divindade convenientemente expurgada no sentido dawkinsiano. Rothbard rejeita a alegação de que, através da lei natural, “Deus e o misticismo estão a ser introduzidos pela porta das traseiras”. Deixa claro que a lei natural, na tradição em que se baseia, é “puramente racionalista e não teológica” e insiste na “absoluta independência da lei natural da questão da existência de Deus”.
Os princípios da lei natural não são derivados de forma alguma de princípios teológicos, mas por um processo independente de “razão e investigação racional”. O direito natural nesta tradição enfatiza “a capacidade da razão do homem para compreender e chegar às leis, físicas e éticas, da ordem natural”. Rothbard explica que “o instrumento pelo qual o homem apreende tal lei é a sua razão – não a fé, ou a intuição, ou a graça, a revelação ou qualquer outra coisa”.
A ordem natural, na qual a natureza humana deve ser compreendida e enfrentada, é, portanto, central no relato de Rothbard sobre a lei natural. A lei natural baseia-se na realidade, incluindo a realidade da natureza humana, e rejeita a noção moderna dos cientistas sociais de que a realidade é uma construção social que pode ser qualquer coisa que as pessoas escolham que seja. Rothbard cita Thomas E. Davitt:
Se a palavra “natural” significa alguma coisa, refere-se à natureza de um homem e, quando usada com “lei”, “natural” deve referir-se a uma ordenação que se manifesta nas inclinações da natureza de um homem e a nada mais.
Rothbard sublinha que a natureza não é de forma alguma uma ideia “mística” ou “sobrenatural”, mas refere-se aos atributos das coisas que podem ser identificados pela observação de causa e efeito: “O comportamento observável de cada uma destas entidades é a lei das suas naturezas, e esta lei inclui o que acontece como resultado das interacções” – referindo-se aqui às interacções que ocorrem “quando estas várias coisas se encontram e interagem”. Neste sentido, estando manifestados na natureza humana, os princípios da lei natural são universais e objectivos.
O facto de a lei natural ser universal importa muito. Isso explica porque é que os seres humanos de diferentes tribos e nações podem aprender uns com os outros e evitar os erros uns dos outros. Por referência aos princípios da lei natural, derivados da razão e da racionalidade, podemos determinar o que é objectivamente bom ou objectivamente mau para a sociedade. Os princípios da lei natural não reflectem a natureza de um homem em particular, ou de um grupo, nação, cultura ou raça de homens em particular, nem as opiniões e preferências subjectivas de ninguém, mas reflectem a natureza essencial dos seres humanos. Como afirma Rothbard , “A razão do homem é objectiva, ou seja, pode ser empregada por todos os homens para produzir verdades sobre o mundo”.
O objectivo de Rothbard ao basear-se na lei natural é formular uma teoria coerente da liberdade baseada na propriedade privada. Mas há mais: também esclarece os passos que as pessoas devem tomar para escolher que fins perseguir e como podem alcançar resultados bons e moralmente justos. Como explica Rothbard: “Pois os próprios fins são seleccionados pelo uso da razão; e a “razão correcta” dita ao homem os seus fins adequados, bem como os meios para os atingir”.
Artigo publicado originalmente no Mises Institute.