A propriedade privada é a base da sociedade libertária e, na teoria rothbardiana, uma sociedade libertária é aquela que se baseia em direitos absolutos de propriedade privada. Na sociedade libertária, toda a propriedade é propriedade privada. O libertarianismo é, portanto, construído sobre o princípio da autopropriedade: a sociedade libertária é uma sociedade livre na qual cada indivíduo tem a posse de si mesmo. Como Murray Rothbard explica em A Ética da Liberdade: “Obviamente, numa sociedade livre, Smith tem o poder de decisão final sobre a sua própria propriedade justa, Jones sobre a sua, etc.”
Desta forma, Rothbard estabelece as bases de uma filosofia política ética. O seu objectivo é “desenvolver o libertarianismo” como “uma ‘ciência’ ou disciplina da liberdade individual”. Rothbard conceptualiza a liberdade como um princípio moral: “Deve ficar claro a partir desta obra que, antes de mais, a liberdade é um princípio moral, fundamentado na natureza do homem. Em particular, é um princípio de justiça, da abolição da violência agressiva nos assuntos dos homens.” Além disso, não existe um consenso entre os libertários sobre os princípios morais, sociais ou políticos em que a sociedade libertária se deve basear. Uma sociedade que violasse ou abolisse o direito à autopropriedade não seria, certamente, uma sociedade libertária no sentido rothbardiano. No entanto, sujeito à defesa do direito à autopropriedade e à propriedade privada, bem como à manutenção do princípio da não agressão (NAP), o libertarianismo não prescreve os valores pessoais que os autoproprietários devem proteger.
Com base no princípio da autopropriedade, seguir-se-ia que qualquer sociedade fundada na propriedade privada absoluta e no PNA fosse ipso facto uma sociedade libertária? Para dar um exemplo, uma vez que a propriedade privada implica o direito a excluir, seguir-se-ia que qualquer sociedade fundada na propriedade privada que exclui as pessoas por qualquer motivo — por exemplo, como punição por violarem as suas directrizes de discurso preferidas ou violarem os seus preceitos morais — seja uma sociedade libertária? Afinal, excluir pessoas é apanágio do proprietário, e nenhum direito à liberdade de expressão ou à liberdade de consciência pode anular a prerrogativa do proprietário de excluir da sua propriedade privada qualquer pessoa que expresse opiniões ou crenças que este desaprova. Se um missionário errante tocar à campainha e tentar entrar na sua casa com o propósito de o converter à sua religião, tem o direito de dizer não. O missionário não pode queixar-se de que a sua liberdade de expressão e a sua liberdade de crença foram violadas.
Muitos exemplos semelhantes poderiam ser dados. No famoso caso inglês de 1895 Bradford v. Pickles, o Sr. Pickles perfurou um poço no seu terreno com o único motivo de desviar água de um rio que abastecia uma cidade próxima. A sua intenção era pressionar a cidade a pagar-lhe uma quantia considerável para garantir os direitos ribeirinhos sobre as suas terras. A questão era saber se ele tinha o direito de fazer o que bem entendesse com a sua propriedade (perfurar o poço) ou se o exercício dos direitos de propriedade privada depende de demonstrar que o proprietário não tinha más intenções em relação a terceiros. A Câmara dos Lordes decidiu que não havia qualquer exigência para demonstrar se existia algum motivo válido por detrás do direito do proprietário de lidar com a sua propriedade como bem entendesse. Foi estabelecido o princípio de que “nenhum uso de propriedade, que seria legal se devido a um motivo adequado, pode tornar-se ilegal por ser motivado por um motivo impróprio ou mesmo malicioso”. Esta decisão, embora tenha sido há muito substituída pela intervenção normativa para regular o uso da terra e o abastecimento de água, capta a essência libertária da propriedade privada e a natureza absoluta da prerrogativa do proprietário de não responder a ninguém quando toma decisões sobre a sua própria propriedade.
O proprietário tem o direito de excluir peremptoriamente qualquer pessoa por um bom motivo, por um mau motivo ou sem motivo algum. A questão que tem preocupado tanto os libertários “thin” como os “thick”[1] é se a sociedade libertária é aquela em que o proprietário é livre para ser tão gentil ou tão malicioso quanto quiser, ou se existem regras adicionais que devem ser seguidas na sociedade libertária e, em caso afirmativo, se tais regras adicionais podem ser descritas com precisão como “libertárias”. Charles Johnson coloca a questão da seguinte forma:
Até que ponto deveriam os libertários preocupar-se com compromissos, práticas, projectos ou movimentos sociais que procuram resultados sociais diferentes para além do compromisso libertário padrão de expandir o âmbito da liberdade da coerção governamental? (…) Por outras palavras, o libertarianismo deve ser visto como um fino (“thin”) compromisso, que pode ser propiciamente associado a absolutamente qualquer conjunto de valores e projectos, “desde que seja pacífico”, ou será melhor tratá-lo como um fio entre outros num grosso (“thick”) novelo de compromissos sociais interligados?
Se o único princípio moral da sociedade libertária é proteger a propriedade privada, isso significa que, em teoria, pode existir uma sociedade libertária fundada em princípios liberais clássicos, outra fundada em princípios anárquicos e outra fundada em princípios políticos maquiavélicos — infinitas possibilidades, incluindo uma sociedade libertária fundada no «fascismo voluntário». A própria terra de Mordor, até mesmo o Hades, seria considerada libertária, bastando que tenha sido fundada com base em direitos de propriedade privada e no PNA. Esta conclusão seria preocupante e de facto abominável para muitos libertários, que procuram, por isso, uma base de princípios para determinar o que é considerado propriamente “libertário”.
No entanto, os rótulos filosóficos nem sempre são um guia útil para determinar objectivos políticos, sociais e morais. Por exemplo, há muitas vezes pouco em comum entre os “libertários de esquerda”, muitos dos quais rejeitam o conceito de autopropriedade e não atribuem qualquer importância particular aos direitos de propriedade privada, e os “libertários de direita”, que dão prioridade aos direitos de propriedade e variam do centro-direita à direita e à extrema-direita. No debate político, atribuir o rótulo de “libertário” a todos estes grupos não só não reflecte de forma abrangente os seus princípios políticos subjacentes, como também não sinaliza ao público o que está precisamente a ser defendido, tornando impossível distinguir entre um e outro movimento político.
A disputa política não se limita ao âmbito de uma ética da liberdade, mas estende-se para abranger questões de estratégia política. A estratégia política envolve frequentemente coligações e alianças que podem abranger muitas perspectivas filosóficas diferentes. Como Murray Rothbard observa em “Uma Estratégia para a Direita”, não existe um rótulo político obviamente preciso para identificar a estratégia política que defendeu:
A palavra “conservador” é insatisfatória. A direita original nunca usou o termo “conservador”: nós chamávamos-nos individualistas, ou “verdadeiros liberais”, ou direitistas (…). Então, como nos devemos chamar? Não tenho uma resposta fácil, mas talvez nos pudéssemos chamar reaccionários radicais, ou “direitistas radicais”, o rótulo que nos foi dado pelos nossos inimigos na década de 1950. Ou, se houver muita objecção ao temido termo “radical”, podemos seguir a sugestão de alguns do nosso grupo de nos chamarmos “Hard Right”. Qualquer um destes termos é preferível a “conservador” e serve também a função de nos separar do movimento conservador oficial que, como observarei mais tarde, foi amplamente dominado pelos nossos inimigos.
Rothbard observa que, embora houvesse pontos de consenso dentro da Velha Direita em questões de cultura “porque todos estavam imbuídos e amavam a velha cultura”, também havia muitos pontos de desacordo:
Dentro do consenso geral, então, na Velha Direita, havia muitas diferenças dentro da estrutura, mas diferenças que permaneceram notavelmente amigáveis e harmoniosas (…) livre comércio ou tarifas proteccionistas, política de imigração e, dentro da política de “isolacionismo”, se este deve ser um isolacionismo “doutrinário”, como o meu, ou se os Estados Unidos devem intervir regularmente no Hemisfério Ocidental ou nos países vizinhos (…) outras diferenças, que também existem, são mais filosóficas: devemos ser lockeanos, hobbesianos ou burkeanos: defensores dos direitos naturais, ou tradicionalistas, ou utilitaristas? Em termos de estruturas políticas, deveríamos ser monárquicos, federalistas de freios-e-contrapesos ou descentralistas radicais?
A Velha Direita discordava sobre como construir com precisão a sociedade livre a que todos aspiravam, mas é evidente que estes pontos de desacordo eram “amigáveis e harmoniosos” porque todos se enquadravam no mesmo consenso cultural geral. Debateram se deveriam ser “defensores dos direitos naturais, ou tradicionalistas, ou utilitaristas”, e não se deveriam ser liberais, ou comunistas, ou fascistas.
Em última análise, o debate sobre o que é uma sociedade libertária mostra os limites filosóficos da filosofia política do libertarianismo. O libertarianismo, no sentido filosófico articulado em A Ética da Liberdade de Rothbard, é uma “moral dos direitos naturais” preocupada com “a esfera natural da propriedade e da posse, o fundamento da liberdade (…) a esfera justificada da acção livre de cada indivíduo”. Não é uma teoria moral de tudo e não pode responder a questões sobre o código moral a que cada homem deve aspirar na sua própria vida. Para isso, deve procurar noutro lugar que não na filosofia libertária. Nem é correcto um libertário enquadrar as suas próprias predilecções morais ou convicções religiosas, quaisquer que elas sejam, como “libertárias”. Uma sobreposição entre os próprios princípios morais e o libertarianismo — por exemplo, no que diz respeito à importância da liberdade individual — não significa que a própria religião seja também uma componente essencial do libertarianismo ou que qualquer adepto do libertarianismo deva, portanto, aderir à sua religião particular.
Da mesma forma, na sociedade libertária, o autoproprietário é livre de ser tão bondoso e compassivo ou tão cruel e malévolo quanto quiser, de acordo com os ditames da sua própria consciência, desde que não agrida os outros nem viole os seus direitos de propriedade. Contudo, não se concluiria nestes casos que a bondade e a compaixão são essenciais para ser “libertário”; nem tão pouco se concluiria, no caso de alguém encontrar um libertário que fosse cruel e malévolo, que a crueldade e a malevolência fossem componentes do “libertarianismo”.
Por fim, o ponto levantado por Rothbard sobre uma estratégia para a liberdade é também importante neste contexto: evidentemente, os princípios morais ou políticos de alguém, quaisquer que eles sejam, não devem ser inerentemente incompatíveis com os princípios da autopropriedade e dos direitos de propriedade como fundamento da liberdade e da justiça. É necessária uma devoção primordial à justiça. Rothbard explica: “Portanto, para ser fundamentado e perseguido adequadamente, o objectivo libertário deve ser procurado no espírito de uma devoção primordial à justiça (…) o libertário deve possuir uma paixão pela justiça, uma emoção derivada e canalizada pela sua percepção racional sobre o que a justiça natural requer.”
[1] N. do T.: Pode traduzir-se literalmente como “fino” e “grosso”, respectivamente, todavia pode adaptar-se “estrito” e “lato” como tradução livre mais adequada ao contexto. O libertarianismo estrito (“thin”) é definido como uma doutrina estritamente política, enquanto o libertarianismo lato (“thick”) é definido como um liberalismo que integra um conjunto mais amplo de valores sociais ou culturais, estando este mais de acordo com a teoria libertária rothbardiana. Os autores que são considerados os criadores destes termos e que têm uma série de artigos em que abordam o tema da distinção entre as diferentes distinções e características são Roderick T. Long, Charles W. Johnson e Jan Narveson.
Publicado originalmente no Mises Institute.