Todas as boas moedas se parecem; cada moeda ruim é ruim à sua própria maneira.
Logo que o ETF à vista do Bitcoin foi aprovado pela SEC em janeiro deste ano, escrevi aqui sobre esta importante etapa para a adoção institucional do Bitcoin nos Estados Unidos, abordando também os riscos de curto e longo prazo envolvidos neste tipo de produto financeiro. Agora que, inesperadamente e por meio de pressão política, a SEC também aprovou o ETF à vista de Ethereum (ETH), entrarei em detalhes sobre como creio que será competição destes diferentes ETFs no mercado.
A narrativa sobre o que é e para que serve a rede Ethereum está sempre a mudar, assim como sempre mudam suas regras protocolares de consenso e as regras de emissão monetária. Já li que a rede representaria um supercomputador, uma internet descentralizada e uma plataforma de inovação financeira. Segundo a última atualização feita por Vitalik e seu time, hoje ela funciona de fato como uma plataforma tokenizada que valida seus blocos e remunera parte dos seus usuários através do mecanismo de prova-de-participação (PoS, proof-of-stake). Para todos efeitos práticos, a rede Ethereum emite constantemente novos tokens (ETH) – sendo que 70% deles já foi pré-minerado por seus desenvolvedores – e estes tokens podem ser trocados por seus usuários para pagar por diferentes aplicações. Após esta última atualização, como um banco no sistema fiat, se você tiver tokens de ETHs o suficiente, pode colocar parte deles para “render” pelo mecanismo de “staking”, ganhando mais ETHs por meio do processo de validação de novos blocos. Este processo emite mais unidades de ETH que não existiam, um mecanismo que é perpetua e aleatoriamente inflacionário, pois não sabemos quantos ETHs algum dia serão emitidos ou se essas regras se manterão no futuro.
Descrito dessa forma, tokens de ETH apresentam-se como candidatos a bens monetários nativos da internet. Portanto, embora haja diferentes narrativas, quando comparamos Bitcoin e Ethereum, no final das contas, estamos navegando no antigo tema da competição monetária, quando vários bens monetários competem por adoção ampla e dominância.
Além de Ethereum, provavelmente a agência reguladora também aprovará ETFs semelhantes no futuro desta classe de ativos que, erroneamente, são vendidos por aí como “criptoativos”. Sigo o mesmo argumento de que o vencedor leva tudo, a moeda vencedora também e que, nesta competição entre Bitcoin e os diversos tokens que estiverem nestes fundos, Bitcoin será dominante, como, aliás, vem sendo dominante na competição não-institucional do varejo antes de serem embalados como produtos financeiros por grandes instituições. Como demonstrou no gráfico abaixo Rafael Zagury, CIO da Swan, 95% dos tokens que foram lançados no mercado desde 2016 perderam em valorização em relação ao Bitcoin. A grande maioria, 5.175, sequer têm cotação hoje, foram um fracasso total:
Poderia a luz verde da SEC dar alguma sobrevida para tokens como Ethereum, Solana ou Dogecoin?
Muitos conhecem a abertura do famoso romance de Tolstoi Anna Karenina:
“Todas as famílias felizes se parecem; cada família infeliz é infeliz da sua própria maneira”.
Com esta frase, Tolstói queria dizer que, para ser bem sucedido, um casamento deve possuir em conjunto atributos diferentes, tais como atração física, mesmos princípios de educação dos filhos, religião, parentes amigáveis e outras questões fundamentais. O fracasso de qualquer um destes atributos essenciais pode arruinar um casamento, mesmo que ele tenha todos os outros.
Tolstoi toca algo profundo. Erramos quando buscamos explicações unidimensionais para o sucesso baseado em apenas um atributo isolado. Para assuntos vitais, precisamos evitar muitas possíveis causas específicas de fracasso. O “princípio Karenina” tem um alto poder explicativo e pode ser estendido para a compreensão de muitas outras coisas importantes na vida além de casamentos. Pode inclusive explicar a evolução do dinheiro até o Bitcoin. Formas históricas fracassadas de dinheiro, como conchas, pedras de calcário e a moeda fiat, fracassaram por motivos diferentes, e não foi à toa que convergimos para metais preciosos como prata, ouro e agora Bitcoin, que possuem muitos atributos semelhantes em conjunto. A adaptação do “princípio Karenina” para nossa história monetária seria algo como:
Todas as boas moedas se parecem; cada moeda ruim é ruim à sua própria maneira
Não sou primeiro a expandir o princípio Karenina além do domínio dos casamentos. Minha inspiração veio com a leitura do clássico Armas, Germes, e Aço e ver como Jared Diamond usou o “princípio Karenina” para explicar porque só alguns animais candidatos à domesticação foram de fato domesticados e porque a humanidade se especializou em domesticar grandes mamíferos terrestres.
De fato, o que hoje chamamos de civilização nunca teria nascido entre os povos eurasianos sem que tivéssemos domesticados estes tipos de animais, já que grandes mamíferos terrestres foram extremamente importantes para as sociedades humanas que os possuíam – foi esta atividade que determinou, em grande medida, a sobrevivência ou não de determinados grupos humanos. Quem fosse bem sucedido em conseguir domesticá-los teria mais carne, fertilizantes, transportes terrestres, couro, veículos militares de assalto, tração, lã, leite e seus derivados e também, claro, criaria imunidade natural aos germes que mataram os povos que não haviam sido anteriormente expostos a eles.
Dito assim, parecem óbvias as vantagens quando olhamos para uma vaca, para uma ovelha ou para porco, e não é difícil enxergar porque as sociedades que conseguiram domesticar esses animais prosperaram e as que não conseguiram domesticar estes animais não prosperaram. Mas por que muitas espécies de grandes mamíferos selvagens aparentemente dóceis, como a zebra e o antílope, que seriam grandes candidatos à domesticação, nunca foram domesticados e outros, como a vaca e o porco, foram?
Se a definição de “grande” é “pesando mais de 37 quilos”, o mundo tem apenas 148 espécies de grandes mamíferos selvagens, herbívoros ou onívoros, que poderiam ser candidatos à domesticação. Falamos aqui de “grandes” mamíferos porque o tamanho desses animais trouxe enormes vantagens comparativas para quem os adotou. Animais pequenos como galinhas, porquinhos-da-Índia, roedores, doninhas e chinchilas, tiveram, claro, sua importância. Mas nenhum destes seres pequenos puxava arados ou bigas, nenhum levava cavaleiros e nenhum, exceto cães, puxava trenós ou se tornou máquina de guerra e nenhum foi tão importante para alimentação quanto os grandes mamíferos domésticos.
O grande enigma por que, dessas 148 espécies, apenas 14 foram domesticadas antes do século XX. Isso indica que apenas um número pequeno de fatores determina se o animal é passível de ser domesticado. Por que, nesta competição tão importante, as outras 134 espécies falharam? E, mesmo assim, considerando sua importância global, dessas 14 espécies, apenas 5 principais se espalharam para praticamente todos os povos: a ovelha, a cabra, o gado, o porco e o cavalo – as 9 restantes que se tornaram importantes em apenas em partes limitadas do globo: o camelo árabe, o camelo bactriano, a lhama/alpaca, o burro, a rena, o búfalo, o iaque, o gado de Bali e o mithan (gayal).
Dada a propensão humana universal à domesticação, o fracasso da domesticação de certos animais se deve a deficiências de atributos das próprias espécies e não dos antigos humanos. O enigma está no domínio incontestável de tão poucas espécies e não em nós. A resposta para ele, segundo Diamond, segue o princípio Karenina. Para ser domesticada, uma espécie selvagem candidata tem que possuir muitos atributos diferentes em conjunto. A falta de qualquer um dos atributos obrigatórios compromete os esforços de domesticação, assim como compromete as tentativas para um casamento feliz.
Diamond identifica seis motivos para uma domesticação fracassar: dieta, taxa de crescimento, problemas de procriação de cativeiro, mau comportamento, tendência para o pânico e estrutura social. Explicarei aqui resumidamente cada um deles, seguindo o mesmo raciocínio de Diamond:
- Dieta. Sempre quando um animal come uma planta ou outro animal, a conversão de biomassa de alimento em biomassa para o consumidor é normalmente em torno de 10%. Por isso são necessários aproximadamente 5 toneladas de milho para uma vaca que pesa meia tonelada. Para criar um animal carnívoro, seriam necessárias incríveis 5 toneladas de animais herbívoros para servirem de alimento à base de 50 toneladas de milho. Seria um desperdício enorme de energia e tempo. Por isso nenhum mamífero carnívoro foi domesticado para servir de alimento para nós seres humanos de forma confiável e selecionamos só os herbívoros.
- Taxa de Crescimento. Mas nem todo herbívoro. Para valer a pena, os animais domesticados precisam crescer depressa. Isso elimina os gorilas e elefantes, embora eles sejam herbívoros, tenham muita carne e sejam relativamente simples de alimentar. Ninguém esperaria 15 anos para que o rebanho chegasse ao tamanho adulto. Precisamos de grandes herbívoros com uma taxa de crescimento rápida.
- Problema da Procriação em Cativeiro. Assim como os seres humanos, muitas espécies que poderiam ser muito úteis a nós não gostam de se reproduzir sob o olhar atento dos outros estranhos. Por isso animais como a vicunha, um tipo de camelo selvagem dos Andes que possui uma lã muito valiosa, não conseguiu ser domesticada. Apesar de fortes incentivos para sua domesticação, as vicunhas não conseguem se reproduzir em cativeiro. Elas possuem um demorado e complicado ritual de cortejo antes do acasalamento, algo que não ocorre quando cercadas em uma área restrita. Os grandes herbívoros com taxa de crescimento rápido precisam se reproduzir facilmente em cativeiro.
- Mau Comportamento. Quase toda espécie grande de mamífero consegue matar um ser humano. Muitas pessoas já foram mortas por porcos, cavalos, camelos e bois. Mas alguns animais têm um comportamento ainda pior e são muito mais perigosos que os outros. A tendência para matar seres humanos desclassificou muitos candidatos aparentemente ideias para a domesticação. Esse é o caso do búfalo africano. Ele tem todos os outros atributos, é herbívoro, cresce rápido, não tem problema em se reproduzir em cativeiro, mas, como ele é muito perigoso, isso impediu sua domesticação. Outros exemplos não tão óbvios são a zebra, o onagro, o alce e o asno asiático. O temperamento desses animais é péssimo, são irritadiços e costumam morder as pessoas. Os grandes herbívoros com taxa de crescimento rápido precisam se reproduzir facilmente em cativeiro e não serem propensos a matar ou morder seres humanos.
- Tendência Para o Pânico. Grandes mamíferos reagem ao perigo de predadores de maneiras diferentes. Alguns saem correndo e fogem imediatamente, outros são mais lentos e buscam se proteger em rebanhos. Cervos geralmente são do primeiro tipo, ovelhas e cabras são do segundo. A gazela, por exemplo, embora muito caçada, nunca foi domesticada porque quando em cativeiro ela se debate tentando escapar e morre, ou consegue saltar quase nove metros e correr a 80 km/h. Os grandes herbívoros com taxa de crescimento rápido precisam se reproduzir facilmente em cativeiro, não podem ser hostis aos seres humanos ou tentarem fugir desesperadamente quando capturados.
- Estrutura Social. Animais que vivem bem em rebanhos mantêm uma hierarquia de dominação entre os membros. Dessa forma os rebanhos podem ocupar a mesma pastagem em vez de territórios exclusivos. Não há lutas e cada um consegue conhecer seu lugar dentro da hierarquia. Os seres humanos conseguem domesticá-los porque assumem a liderança na hierarquia de dominação. O ser humano se torna líder e o rebanho pode ser guiado por um pastor ou cão pastor, e os animais conseguem ficar bem em currais lotados porque costumam também ficar aglomerados na selva. Animais territorialistas, como os grandes felinos, não seguem os seres humanos. Cervos e antílopes não possuem uma hierarquia social bem definida, isso impediu sua domesticação completa. Os grandes herbívoros com taxa de crescimento rápido precisam se reproduzir facilmente em cativeiro, não podem ser hostis aos seres humanos, tentar fugir desesperadamente e também devem possuir uma estrutura social favorável a viver em grandes rebanhos.
Estes atributos em conjunto resolvem o mistério da aparente arbitrariedade com que só pouquíssimas espécies tenham sido domesticadas e não outras, muitas vezes sendo parentes próximos. Ocorre que todos os outros candidatos à domesticação foram eliminados pelo princípioKarenina, com várias espécies de animais falhando ao longo do caminho por motivos diferentes. Os seres humanos e a maioria das espécies de animais foram um casamento infeliz por uma ou mais de uma razões possíveis: dieta, taxa de crescimento, hábitos de acasalamento, tendência ao pânico e várias características distintas de organização social. Só uma pequena porcentagem de mamíferos selvagens chegou a casamentos felizes com os seres humanos, graças à compatibilidade destes atributos, e isso favoreceu enormemente os povos eurasianos em relação a outros povos.
Proponho que, para outra questão fundamental, isto é, qual bem monetário escolher, podemos aplicar o princípio Karenina para explicar também a aparente arbitrariedade com que alguns bens desempenharam bem a função de moeda e outros não. Alguns bens formaram um casamento feliz com seres humanos para servirem como dinheiro e outros falharam por motivos diferentes. A aparência de arbitrariedade na escolha destes bens fez muita gente pensar que o dinheiro é simplesmente uma “construção social” ou uma ilusão coletiva, e que tudo pode ser dinheiro, basta querer ou alguma autoridade decidir por decreto. Mas nossa história econômica é outra. Assim como na domesticação de grandes mamíferos, as reiteradas trocas entre seres humanos selecionaram para que apenas alguns bens fossem usados como dinheiro e outros não. E, como na história da domesticação de grandes mamíferos, aqueles que escolheram corretamente os melhores bens monetários se beneficiaram enormemente.
Sabemos que diversos bens foram candidatos à moeda na história da humanidade. Objetos como conchas, pedaços de ossos, sal, gado, miçangas de vidro, pedras de calcário, cobre, prata e ouro foram usados como dinheiro em diversos povos ao redor do globo. Mas estes objetos nunca funcionaram em pé de igualdade: se um dinheiro melhor fosse introduzido e se as condições econômicas fossem livres, com o tempo a forma superior de dinheiro será adotada e a forma inferior será descartada (para uma explicação mais aprofundada, ver meu artigo sobre a correta interpretação da Lei de Gresham). Por isso é que as formas de dinheiro primitivo ou de proto-dinheiro, como os colares de conchas wampum, que foram usados como dinheiro na América do Norte pelos ameríndios antes dos ingleses, não circulam hoje em dia nos Estados Unidos ou no Canadá. Até a chegada do Bitcoin, neste processo milenar de seleção de inúmeras trocas reiteradas ao longo da tempo, o ouro foi elemento natural que melhor serviu como dinheiro e só conhecemos as diferentes formas de dinheiro primitivos em relatos antropológicos e históricos. Este não foi um processo aleatório. Ele ocorreu porque a boa moeda é aquela que serve para transportar valor no tempo e espaço e para que isso ocorra há atributos que algo precisa ter em conjunto: divisibilidade, portabilidade, fungibilidade, durabilidade, verificabilididade e alta taxa de escassez. Explicarei aqui cada uma delas e porque só o bem que tiver estas características em conjunto formam um casamento feliz conosco em forma de dinheiro:
- Divisibilidade. Indica se o bem pode ser facilmente divido em sub-partes. Se queremos guardar valor no espaço e no tempo, precisamos de um bem que seja fácil de dividir e contar. Só um bem facilmente divisível pode funcionar como unidade de conta, permitir o cálculo econômico e facilitar trocas. E poucas coisas em seu estado natural são fáceis de dividir dessa forma. Até mesmo o ouro em seu estado natural não é fácil de dividir, por isso tivemos que recorrer à cunhagem para atribuir unidades aproximadas de peso, como gramas ou kilogramas. Mesmo assim, para pequenos valores, o ouro nunca foi a moeda ideal para ser dividido, por isso que até o século XIX foi adotado padrão bimetálico em muitos lugares, usando ouro para valores maiores, prata e cobre para valores menores. A baixa divisibilidade exclui vários bens que, mesmo valiosos, não conseguem funcionar bem como dinheiro. Imóveis, por exemplo, embora usados como reserva de valor por muitos e tenham sido monetizados no sistema fiat, não são facilmente divididos em pequenas sub-partes. Se alguém quiser comprar uma moto, não é possível vender alguns metros quadrados de um apartamento para pagá-la, é necessário vendê-lo inteiro, para o desespero de quem precisa vender rápido um apartamento em alguma eventual falta de dinheiro. Historicamente, o gado foi um forte candidato a moeda, inclusive os termos pecuniárioe pecúnia, um outro nome para dinheiro, vêm de pecus, que significa gado em latim, mesma origem da palavra pecuária. Embora haja essa associação entre gado e dinheiro, mesmo o gado padecia do problema da má divisibilidade, principalmente para valores pequenos. Na história monetária este problema foi diminuindo com a cunhagem e quando as notas bancárias foram aprimoradas e os registros bancários se sofisticaram. Assim foi possível manter o ouro nos cofres e fazer circular cédulas que representassem apenas frações de peso do ouro depositado nos bancos, melhorando sua divisibilidade, ainda que ela representasse crédito de ouro e não o ouro em si. A divisibilidade do Bitcoin não é um problema já que cada Bitcoin é sub-dividido em 100.000.000 sats, o que facilita o cálculo econômico em muitas sub-partes. Quando o Bitcoin se tornar moeda corrente mundial, ainda poderíamos, em segundas ou terceiras camadas, estipular sub-sats caso seja necessário. Os tokens que hoje competem com o Bitcoin também são facilmente divididos, essa é uma vantagem da desmaterialização do dinheiro que facilita sua abstração numérica em partes idênticas.
- Portabilidade.Este atributo avalia os custos de se portar e transportar aquele bem. Não basta que um dinheiro seja divisível, ele precisa ser portável para que alguém consiga levar consigo e também para facilitar as trocas econômicas para onde o indivíduo se deslocar. Com uma má portabilidade, um bem simplesmente não funciona para transferir valor no espaço, o que impede trocas econômicas e impede seu uso como dinheiro. Todos os bens físicos carregam algum custo de portabilidade e esta foi a outra grande vantagem da desmaterialização do dinheiro: diminuir consideravelmente o custo da portabilidade. O ouro, embora tenha funcionado como o melhor dinheiro durante milênios, possui um alto custo de transporte. Imagine comprar um hoje livro na Amazon tendo que enviar por correios frações de gramas de ouro como pagamento. Isso é totalmente inviável para o comércio contemporâneo. Para valores muito altos, a portabilidade do ouro piora muito, já que seu valor é medido em peso (gramas ou kilos) e ninguém em sã consciência ficaria andando por aí com barras de ouro no carro para pagar por um imóvel. Foi a baixa portabilidade do ouro que levou à sua centralização em bancos e seu posterior confisco e desmonetização pelos governos no mundo inteiro. Teoricamente, a moeda fiat possui uma boa portabilidade, principalmente para valores pequenos. Basta uma pequena nota de papel-moeda ou uma moedinha para pagar pelo ‘“cafezinho na padaria”. O grande problema da portabilidade da moeda fiat é que, para valores mais altos, sua portabilidade é muito restrita, até mesmo proibida em alguns países. Se alguém anda com muitas notas no bolso, muitas perguntas são feitas por agentes estatais. Tente enviar algum valor significativo para outro país e veja a quantidade de taxas, controle e permissões que são necessárias. O sistema SWIFT ainda é muito lento, caro e ineficiente, geralmente demora dias para confirmar uma única transação entre países. A superioridade do Bitcoin em relação a outras moedas neste atributo é enorme. Para portar e transportar Bitcoin, basta manter consigo suas chaves-privadas e saber assinar as transações em celulares ou computadores. Não precisa pedir autorização para ninguém. A portabilidade é como uma senha que alguém pode transportar até na cabeça. Para valores baixos, a segunda camada Lightning Network, o “PIX do Bitcoin”, funciona instantaneamente e com taxas razoáveis. Para valores altos e altíssimos, as taxas dos Bitcoins são irrisórias. É comum vermos transações bilionárias pagando poucos dólares em transações que demoram poucos minutos para serem confirmadas, algo impensável no sistema fiat. A princípio, os principais tokens que concorrem com o Bitcoin normalmente possuem uma portabilidade razoável, mas a grande maioria não possui liquidez o suficiente para serem aceitos em corretoras algumas corretoras ou por pessoas. Dos tokens com maior valor de mercado, já li muitos relatos de problemas com a rede Solana, que é tão instável que precisa ser paralisada inúmeras vezes. E a rede Ethereum sofre com altas taxas de transação devido à forma como elas são calculadas no seu sistema de PoS.
- Durabilidade. Este atributo se refere à degradação do bem no tempo. Bens que se degradam facilmente ao longo do tempo são péssimos para guardar valor simplesmente porque ele vai perdendo suas propriedades. Ninguém pensou em usar frutas como dinheiro porque depois de alguns dias elas estão podres. É necessário que o bem perdure para conseguir guardar valor no tempo. Isso selecionou os metais preciosos, principalmente o ouro, que é praticamente indestrutível. As moedas fiat, por outro lado, podem se degradar de duas formas: as cédulas físicas podem sofrer com a ação do tempo (não é uma boa ideia enterrar notas de R$ no quintal para deixar para seus netos), mas também o valor das moedas fiat pode se deteriorar por causa da ação da autoridade que o emitiu (Quanto vale uma nota de Cruzado hoje em dia?) e deixarem de ser aceitas. Isso faz com que a grande maioria das moedas fiat possuam uma durabilidade muito limitada – a média de duração de uma moeda fiat é de apenas 27 anos. Como o Bitcoin é desmaterializado, ele existirá enquanto existirem nós rodando seu software. Bitcoins não se degradam com o tempo porque ele existe na forma de registros descentralizados em sua timechain. Unidades de bitcoins podem ser “perdidas” caso alguém se esqueça de sua chave-privada ou caso envie para um endereço errado. Porém, eles não podem ser destruídos da mesma forma que um bem físico pode ser destruído. Os outros tokens que concorrem com o Bitcoin também são imateriais, são registros em computadores. Porém, como não são descentralizados, podem ter sua durabilidade comprometida pois os servidores daqueles que controlam a rede podem ser desligados. Eles são duráveis na medida em que a equipe de desenvolvedores estiver disposta a continuar a rodar os servidores que mantém os tokens funcionando.
- Verificabilidade. Este atributo se refere à facilidade e aos custos associados em se aferir a autenticidade de um bem monetário. Durante o padrão metálico, a verificabilidade sempre foi um problema constante, já que a raspagem e o recorte de moedas eram práticas muito comuns, seja por autoridade ou pessoas comuns. Aqueles desenhos que encontramos nas faces das moedas e as ranhuras que vemos em suas bordas foram inventadas para impedir sua raspagem e fazer com que a quantidade de gramas descrito na moeda de fato correspondia com o conteúdo metálico dela. Em valores maiores este problema persiste. É muito custoso aferir se um lingote de ouro é de fato de ouro ou outro metal como tungstênio. Pode-se usar um equipamento como espectrômetro, mas mesmo ele tem suas falhas e é muito custoso. A maneira mais segura de se verificar a autenticidade uma barra de ouro é derretê-la e refazê-la por inteiro, um processo muito demorado e caro. As atuais cédulas de moeda fiat foram desenvolvidas para impedir sua falsificação. Elas possuem marcas d’água para verificar sua autenticidade mas mesmo assim são falsificadas. Os modernos registros dos bancos e meios de pagamento ofereceram uma maneira mais eficiente, ainda que decentralizada, de verificar pagamentos e transferências. Mesmo assim é comum, principalmente no Brasil, ouvir falar de casos e roubo e fraude, por isso que a liquidação final das transações bancárias demoram alguns dias (para mais detalhes, leia este artigo que escrevi). A verificabilidade do Bitcoin é excelente pois ela é atestada por provas criptográficas. Se você roda seu nó pode ter certeza que aqueles registros são válidos, ele é impossível de ser falsificado e é muito barato de se verificar por você mesmo. Além disso, a propriedade dos Bitcoin não depende de nenhuma autoridade política. Ela é atestada pelo próprio sistema. Neste quesito, os tokens que concorrem com o Bitcoin são muito parecidos com a moeda fiat: possuem uma boa verificabilidade centralizada. Ambos são sistemas que precisam de um alto grau de confiança em terceiros que fazem toda a verificação por você.
- Fungibilidade. Seguindo sua definição jurídica, bens fungíveis são aqueles que aqueles podem ser substituídos por outros de mesma espécie, qualidade e quantidade. Esse é um elemento muito importante para as trocas e para a existência do dinheiro, porque cria a possibilidade da igualdade e equivalência entre diferentes unidades de um bem monetário. Se um bem é único, como uma pintura do Tintoretto, ele não é fungível porque simplesmente não haverá outro de mesma espécie, qualidade ou quantidade no mundo. Grãos de sal, por outro lado, são muito fungíveis. Ouro e prata, se forem cunhados em moedas ou divididos em lingotes, também são muito fungíveis. Porém, o que muitos não percebem é que, mesmo sendo uma questão de grau, a fungibilidade é algo que é atribuído pelos próprios agentes econômicos e não um atributo intrínseco ao bem. Nada a rigor nada é exatamente equivalente a outra coisa. Até um grão de sal microscopicamente é diferente de outro grão de sal. Mesmo duas cédulas bancárias de R$10 possuem um número de série diferente, ainda que atribuímos o mesmo valor de R$ 10 para ambas e as tratamos como equivalentes. Digo isso porque o Bitcoin, ao mesmo tempo que favorece a fungibilidade (cada satoshi em forma de UTXO é um número integral associado a um endereço), ele também tem uma história de custódia registrada na timechain. Há esforços recentes e nefastos para se tentar diminuir a fungibilidade do Bitcoin, seja através de análise da rede (chain analysis), que tenta “marcar” satoshis associados a determinados endereços para autoridades de controle, seja por uma invenção recente chamada “teoria de Ordinals”, que arbitrariamente atribui uma ordem a cada satoshi existente. Ambas são tentativas espúrias de acabar a fungibilidade do Bitcoin e diminuir sua função monetária. Os tokens concorrentes ao Bitcoin também possuem um alto grau de fungibilidade, já que são registros em servidores centralizados, mas também podem ser “marcados” de diferentes formas.
- Taxa de Escassez. Taxa de escassez não é só o aumento da quantidade de unidades daquela moeda ou simplesmente uma métrica para medir o quanto um quanto ele é escasso. Taxa de escassez mede a relação entre o estoque e fluxo da oferta de um bem para avaliar sua capacidade de manter valor no tempo. O estoque é a oferta existente, consistindo em tudo que já foi produzido no passado, menos tudo que já foi consumido ou destruído; e o fluxo, é a produção extra que será feita no próximo período temporal. Se as pessoas escolhem uma moeda forte como reserva de valor, com uma taxa de escassez alta, esta decisão causará um aumento em seu preço, o que incentivará seus produtores criar mais unidades dela. Mas como o fluxo é pequeno se comparado ao estoque existente, mesmo com um aumento na nova produção é improvável que deprima o preço significativamente. Por outro lado, se pessoas escolherem manter sua riqueza em moeda fraca, com uma taxa de escassez baixa, será trivial para os produtores deste bem criar grandes quantidades dele, o que deprimirá seu preço, desvalorizará o bem, expropriará a riqueza dos poupadores, destruindo sua capacidade de manter valor no tempo. Saifedean Ammous, no livro O Padrão Bitcoin, chama esse problema de armadilha do dinheiro fácil: qualquer coisa usada como reserva de valor aumentará sua oferta e qualquer coisa adotada como dinheiro e cuja oferta pode ser facilmente aumentada destruirá a riqueza daqueles que usam como reserva de valor. A taxa de escassez é um indicador confiável do quão bem algo funcionará como dinheiro pois, mesmo usado como dinheiro e reserva de valor, será difícil diluir o poder de compra aumentando arbitrariamente o fluxo de oferta nova. Usarei aqui o exemplo famoso das pedras Rai na ilha de Yap para explicar este ponto. Até a chegada dos europeus, essas pedras de calcário tinham uma alta taxa de escassez, pois era difícil aumentar sua oferta na ilha e o estoque delas era grande entre os moradores que a usava como dinheiro. Quando novas unidades foram facilmente trazidas de barco das ilhas vizinhas, os moradores de Yap sofreram uma alta inflação, pois a taxa de escassez das pedras Rai despencou abruptamente: novas pedras eram trazidas todos os dias para a ilha a um custo ínfimo. Com o tempo, as pedras Rai foram complemente desmonetizadas pois já não serviam como reserva de valor. Na milenar competição monetária, o ouro foi elemento natural que melhor serviu como dinheiro porque sua taxa de escassez é superior a todos os metais precisos. Como ele é praticamente indestrutível, a oferta de ouro foi se acumulando durante os séculos ao mesmo tempo em que era difícil aumentar sua oferta. Do gado ao sal, às conchas, aos metais e aos metais preciosos, fomos progredido constantemente, passando para o dinheiro mais forte, o que nos permite formas melhores de guardar valor no tempo. Isto culminou com o ouro se tornando o único dinheiro do mundo no final do século XIX, com um crescimento anual da oferta de aproximadamente 2%. Todos na Terra poderiam poupar em ouro sem medo da inflação. Isto é importante porque a taxa de escassez de um bem monetário controla também nossa preferência temporal: o grau em que descontamos o futuro. Quanto maior a taxa de escassez, menos a sua oferta aumenta, melhor ele retém valor no futuro, mais nos permite planejar além do presente e mais alguém será capaz de refrear os seus impulsos imediatos básicos em favor de uma orientação racional para o futuro. Todo o progresso humano e toda a civilização estão interligados com o fato de encontrarmos um dinheiro com uma maior taxa de escassez. O século XX foi uma catástrofe pois foi quando os governos proibiram a utilização monetária do ouro e substituíram-no por fiat, cuja oferta aumenta cerca de 14% ao ano em média. A poupança tornou-se mais difícil e o futuro mais incerto. A preferência temporal aumentou à medida que as pessoas se tornaram mais orientadas para o presente e os governos passaram a ter um poder de compra infinito à custa dos seus servos. As guerras tornaram-se mais longas e mais prováveis, com os governos capazes de roubar facilmente os seus cidadãos para financiá-las. Agora com o Bitcoin, pela primeira vez na história, os humanos têm uma forma de dinheiro cuja oferta aumenta menos de 1% ao ano. 94% de todo Bitcoin que irá existir já foi minerado, restam somente 6%. O bitcoin não apenas nos permite uma forma de dinheiro fora do controle do governo, mas também é o dinheiro com a maior taxa de escassez que já existiu, o que o torna a forma de dinheiro mais avançada de todos os tempos, melhor até mesmo do que o ouro. Não importa o que aconteça, você pode ter certeza de que seu bitcoin nunca será diluído em mais de 1% ao ano. Bitcoinheiros costumam enfatizar que o Bitcoin tem uma escassez absoluta. Enquanto o Bitcoin continuar a existir, essa será sua oferta monetária. Os outros tokens que concorrem com o Bitcoin podem se apresentar como escassos. Porém, como eles são centralizados e sempre alteram sua oferta monetária, esta escassez sempre será relativa.
Estes seis atributos em conjunto resolvem o mistério da aparente arbitrariedade com que alguns bens foram monetizados na história da humanidade. Assim como ocorreu como grandes mamíferos, todos os outros candidatos históricos foram eliminados pelo princípioKarenina, com vários tipos de dinheiro falhando ao longo do caminho por motivos diferentes. Os seres humanos e diversos objetos foram um casamento infeliz por uma ou mais de uma razões possíveis: divisibilidade, portabilidade, fungibilidade, durabilidade, verificabilididade e baixa taxa de escassez. Estas são as razões pelas quais tecnicamente creio que o Bitcoin continuará a se monetizar em relação a outros ativos e tokens que hoje são usados como dinheiro. E não será a aprovação de um novo ETF que mudará esta história.