A Ligação entre o Cálculo Económico e a Personalidade Humana
Economistas e historiadores mostraram claramente que a destruição do valor e da função do dinheiro pela hiperinflação torna impossível o cálculo económico e leva à desintegração económica e social e à pobreza generalizada. O que não é tão claramente compreendido, mesmo por muitos economistas, é que durante períodos de inflação rápida, a incapacidade de calcular economicamente deteriora a própria natureza da propriedade e debilita a personalidade humana, que está intimamente ligada à propriedade. Ao eliminar os meios de avaliar e disponibilizar racionalmente a propriedade de alguém, a hiperinflação elimina a própria base da existência e da personalidade humana independente sob um sistema de cooperação social. O resultado inevitável é a dissolução da sociedade do contrato voluntário e a sua substituição por uma ordem hegemónica na qual a propriedade e a personalidade são colectivizadas.
O papel central do dinheiro e da propriedade na formação da personalidade humana individual sob a divisão do trabalho ainda não foi investigado em profundidade, e não tentarei fazer isso aqui. No entanto, observarei que, ao falar da personalidade humana, estou a referi-me ao que tem sido chamado, geralmente ironicamente, de “personalidade burguesa”1. Este é o estado comum de pensar e ser que caracteriza o indivíduo moderno agindo numa ordem social de propriedade privada. O indivíduo burguês é orientado para objectivos, egoísta (mas não necessariamente interesseiro), frugal e usa o tempo como um recurso escasso para melhorar a sua produtividade e aumentar o seu bem-estar futuro. Ao perseguir os seus próprios interesses, este indivíduo deve agir socialmente de forma consciente e repetida. Ou seja, deve especializar-se na produção de bens e serviços que são valorizados por pessoas que ele provavelmente não conhece. Ao produzir e trocar com essas pessoas desconhecidas, o indivíduo integra-se no que Ludwig von Mises chama de divisão social do trabalho. A produção especializada e a troca voluntária são a essência da acção social e são necessariamente guiadas pelos preços de mercado. Abrangem a escolha deliberada de meios e fins concretos e o cálculo monetário de custos e benefícios. Portanto, a personalidade humana, como o termo é usado aqui, não se refere a um conjunto de atributos e qualidades psicológicas; em vez disso, é um modo de ser e de se tornar alguém que se baseia no cálculo económico e na pertença da propriedade. Um engenheiro de software, um motorista de Uber, um dono de restaurante – ninguém poderia ser o que é na ausência de dinheiro e de propriedade privada.
A destruição da propriedade e da personalidade durante a hiperinflação
Como meio geral de troca, o dinheiro é a ferramenta para avaliar a propriedade de alguém, estimar a sua riqueza e julgar as suas perspectivas de bem-estar futuro. Uma vez que o valor futuro do dinheiro é impossível de prever com segurança, as pessoas comuns perdem a capacidade de usar racionalmente a sua propriedade e preservar a sua riqueza e, assim, tornam-se incapazes de planear o futuro. Isso deixa-lhes pouca escolha, a não ser dissipar a sua riqueza e energia na luta pela recompensa imediata. Este aumento na preferência temporal – isto é, no prémio da satisfação presente em relação às satisfações no futuro – anula o valor do trabalho produtivo, da poupança e do investimento sóbrio. Isso traz uma revolução social na qual a classe média produtiva, empresários, capitalistas e inventores são destruídos e substituídos no topo da estrutura social por jogadores, vigaristas e burlões.
A inflação não destrói apenas as poupanças das classes produtivas e desvia as suas energias para actividades improdutivas e corruptas mas também deforma e atenua as suas personalidades. Quer gostemos ou não, homens e mulheres existem num mundo onde não podem viver e florescer física ou espiritualmente sem propriedade. Como o fundador da Escola Austríaca, Carl Menger, apontou: “Propriedade não é… uma quantidade arbitrariamente combinada de bens, mas um reflexo directo das necessidades [de uma pessoa], um todo integrado, nenhuma parte essencial do qual pode ser diminuída ou aumentada sem afectar a realização do fim a que serve.” Assim, a propriedade é o fundamento da personalidade humana – nenhum movimento, actividade ou expressão significativa de pensamento é possível sem ela, pois a personalidade humana não é a projecção espontânea no mundo externo de impulsos internos aleatórios que caracterizam o comportamento irreflectido de um bebé humano. A personalidade é a projecção externa de um modo deliberadamente planeado de ser e tornar-se individual. Como tal, envolve um arranjo consciente de actividades cuja procura requer uma estrutura de meios cuidadosamente escolhida, isto é, a propriedade. A propriedade, portanto, não é uma colecção aleatória de coisas que podem ser completamente descritas em termos físicos, mas sim a personificação coerente e objectiva dos desejos e aspirações do espírito humano.
Num sentido real, então, a propriedade define e delimita a personalidade de um indivíduo. Uma pessoa não pode ser o que quiser ser; ela é rigidamente limitada pelos meios à sua disposição. Não se é verdadeiramente um romancista a menos que se possua uma sala, uma mesa, um computador e um software de processamento de texto; um dono de restaurante deve ter acesso a uma cozinha abastecida com comida. Uma pessoa não pode sequer exercer actividades de lazer ou vocacionais sem possuir os meios concretos específicos para tal. Não se é pescador sem equipamento de pesca e acesso a um barco e a uma massa de água; não se pode ser um jogador de golfe sem a posse ou os meios de adquirir equipamentos de golfe.
Além disso, numa economia de troca, é o cálculo económico baseado nos preços monetários que dá sentido a um conjunto de diferentes tipos de bens concretos e permite ao actor transformar esses bens numa estrutura integrada de propriedade adequada ao seu sistema de fins. Sem preços monetários para guiá-lo nos seus cálculos, uma pessoa age às cegas ao entrar numa profissão ou negócio, porque nunca pode saber se essas actividades produzirão rendimento suficiente para ajudar a sustentar a sua vida. Além disso, uma pessoa não sabe o grau do seu sucesso ou a sua posição na estrutura social, a menos que possa calcular o valor monetário das suas posses. Essa pessoa alcançou relevância ou sofreu uma decepção esmagadora? Essa pessoa é príncipe ou mendigo?
As pessoas não podem nem saber o que ou quem serão no futuro sem saber o valor monetário de suas economias e activos acumulados. Todos os seus planos para si e para os seus filhos são moldados por esse conhecimento. Uma pessoa aposentar-se-á num condomínio fechado com um campo de golfe luxuoso aos sessenta anos ou ela cumprimentará os clientes no Walmart local como um septuagenário?
O dinheiro e a propriedade são, portanto, elementos essenciais no processo socioeconómico que condiciona o que um ser humano é e pode ser. Sem cálculo económico baseado em dinheiro sólido, não apenas é impossível para empreendedores e empresas calcularem razoavelmente o possível resultado de decisões alternativas de investimento, mas também torna-se impossível para uma pessoa saber quem ela é ou estimar razoavelmente o que ela pode ser. Durante a hiperinflação alemã, por exemplo, professores universitários e funcionários públicos de alto escalão com salários relativamente fixos não podiam sustentar-se a si mesmos e às suas famílias e, da noite para o dia, converteram-se em taxistas e em empregados de mesa, com tudo o que isso implicava para as suas relações profissionais e pessoais, posição social e perspectivas de aposentação.
A hiperinflação alemã
Os efeitos concretos da destruição do dinheiro e da propriedade sobre a personalidade humana são demonstrados mais vividamente no episódio histórico da hiperinflação alemã de 1923.
No caso extremo da hiperinflação, à medida que o valor do dinheiro se aproxima de zero, a propriedade perde o seu significado, a personalidade humana debilita-se e a sociedade desintegra-se. Essa relação importantíssima entre o dinheiro e a propriedade, por um lado, e a personalidade humana, por outro, foi dramaticamente expressa pelo historiador e sociólogo alemão Konrad Heiden, um observador astuto da grande hiperinflação alemã. Heiden escreveu: “O povo alemão foi um dos primeiros a testemunhar a decadência daqueles valores materiais que um século inteiro adquirira como o mais alto de todos os valores. A nação alemã foi uma das primeiras a experimentar a morte da propriedade livre e ilimitada que proporcionou tanto orgulho real à humanidade moderna; o dinheiro havia perdido seu valor – o que, então, poderia ter algum valor? Claro, muitos estavam habituados a não ter dinheiro; mas mesmo com dinheiro você não tinha nada – isto era um crepúsculo dos deuses… Uma frivolidade cínica penetrou nas almas dos homens; ninguém sabia o que ele realmente possuía e alguns homens perguntavam-se o que realmente eram2.”
As percepções de Heiden são ilustradas nas declarações de uma mulher que viveu a hiperinflação alemã. Erna von Pustau era uma residente de classe média de Hamburgo que foi entrevistada pela eminente escritora americana Pearl Buck. As reminiscências de Pustau revelam como o povo alemão perdeu as suas amarras intelectuais e espirituais no meio do caos do cálculo da hiperinflação. A incapacidade de realizar cálculos contabilísticos simples que eram uma questão de rotina no passado, causou confusão de pensamento e de linguagem. Como Pustau recordou: “Dificilmente poderíamos dizer que o nosso marco estava a cair, pois, em números, estava constantemente a subir, a subir e a subir, assim como os preços, e isso era muito mais visível do que a percepção de que o valor do nosso dinheiro estava a cair. Parece confuso, não é? Mas esta confusão pertence à inflação, está-lhe inseparavelmente ligada e foi uma das razões pelas quais as pessoas desistiram de pensar nas coisas. Tudo parecia loucura e deixava as pessoas loucas.”
Pustau citou a seguinte frase de uma canção popular da época que aludia à destruição da riqueza causada pelo desejo desenfreado de gratificação imediata: “Estamos a beber a pequena cabana da nossa avó, a primeira e a segunda hipoteca também”. Pustau então comentou: “A poupança é a própria fonte de riqueza e saúde de uma nação sólida. Mas, já não temos uma nação sólida. Estamos a caminho de nos tornarmos uma nação louca, neurótica e doida.” Pustau também comentou sobre o trauma espiritual infligido pelo súbito colapso da estrutura social, lamentando que: “Era um mundo triste, um mundo em que ninguém era melhor do que o outro e tudo era uma questão de acaso e grau. Um mundo triste e uma triste concepção para uma menina que ainda se lembrava dos bons e velhos tempos da avó! Os nossos tempos tornaram-nos cínicos.”
Amante da música, Pustau relatou a ocasião em que ela e os seus amigos de classe média, repentinamente empobrecidos, foram forçados a esperar horas na fila para comprar bilhetes para ver o Crepúsculo dos Deuses de Wagner. A maioria dos lugares do teatro foi comprada por pessoas que optaram por comparecer, não porque eram amantes genuínos da música, mas porque desfrutaram de um lucro inesperado com a inflação. Este incidente impressionou Pustau de que o mau funcionamento do dinheiro penetrava no âmago da auto-identidade das pessoas e reformulou radicalmente os seus objectivos e crenças mais queridos sobre o mundo. Assim, ela afirmou: “[Os deuses de Wagner] incendiaram o mundo inteiro, mas fizeram-no por grandes coisas, por feitos heróicos, por amor – por essa coisa linda: o amor. E como é connosco? Lutamos por bilhetes, lutamos por centavos. São essas coisinhas feias que nos derrubam… Estava tudo tão confundido com dinheiro. Costumávamos considerar o dinheiro como nada e dizíamos: ‘O dinheiro é sujo’ e ‘Não se fala em dinheiro’. E aqui tudo estava confundido com dinheiro e apenas com pequenas somas e pequenas coisas.”
Pustau resumiu as suas lembranças da hiperinflação comparando os efeitos culturais e morais da hiperinflação com os da guerra: “Para uma batalha, foi essa inflação, travada com meios financeiros. As cidades ainda estavam lá, as casas ainda não tinham sido bombardeadas e nem estavam em ruínas, mas as vítimas eram milhões de pessoas. Elas perderam as suas fortunas, as suas economias; estavam atordoadas e chocadas com a inflação e não entendiam como isso acontecera e quem era o inimigo que as derrotara. No entanto, perderam a sua autoconfiança; o sentimento de que elas próprias poderiam ser os mestres das suas próprias vidas se trabalhassem duro o suficiente; e também se perderam os velhos valores da moral, da ética, da decência.”
O sociólogo Heiden resumiu vividamente a lição geral das experiências de milhões de alemães como Erna Pustau que foram apanhados pela hiperinflação: “O homem mediu-se pelo dinheiro; o seu valor foi medido por dinheiro; através do dinheiro, era alguém ou pelo menos esperava tornar-se alguém. Os homens vieram e foram, subiram e caíram, mas o dinheiro foi permanente e imortal. Agora o Estado conseguira matar essa coisa imortal. O Estado foi o conquistador e sucessor do dinheiro. E assim o Estado era tudo. O homem olhou para si mesmo e viu que não era nada.”
Assim, como Heiden verdadeiramente percebeu, na Alemanha a abolição do dinheiro por meio da hiperinflação tornou a propriedade sem sentido e, assim, destruiu a base da personalidade humana. As instituições sociais e económicas há muito tidas como garantidas, desintegraram-se e desapareceram, e a própria estrutura social começou a dissolver-se, fazendo com que a existência humana se tornasse atomizada e sem objectivos. Pensamento, linguagem, valores, cultura – tudo foi deformado à medida que a vida interior do indivíduo foi drenada de significado e propósito e, em grande medida, extinta.
Heiden resumiu de forma concisa: “O estado eliminou a propriedade, o sustento, a personalidade, espremeu e reduziu o indivíduo, destruiu a sua fé em si mesmo destruindo a sua propriedade – ou pior, a sua fé e esperança na propriedade. As mentes estavam maduras para a grande destruição. O estado quebrou o homem económico começando com o mais fraco.” Heiden não está a referir-se ao “homem económico” abstracto, mas ao homem burguês de carne e osso, o ser social cuja existência está enraizada na propriedade privada e na economia de mercado.
O Estado como moldador da personalidade
Não havia nada definido além do Estado para preencher o vazio económico e espiritual criado pela hiperinflação alemã. Mas um político alemão astuto e perspicaz chamado Adolf Hitler entendeu a natureza da inflação como uma gigantesca fraude material e espiritual e reconheceu a deformação das almas e da personalidade alemãs e a correspondente desintegração da sociedade alemã. Hitler zombou do povo alemão por tolerar a fraude e, ao mesmo tempo, prometeu-lhes alívio material e regeneração espiritual no Estado, o sucessor do dinheiro.
Heiden relatou que Hitler contou a seguinte história numa reunião no verão de 1923: “Acabamos de ter um grande festival de ginástica em Munique. Trezentos mil atletas de todo o país reuniram-se aqui. Isto deve ter trazido muitos negócios à nossa cidade, pensam vocês… Havia uma velha que vendia cartões postais ilustrados. Ela estava feliz porque o festival lhe traria muitos clientes. Ela ficou fora de si de alegria quando as vendas excederam em muito as suas expectativas. Os negócios realmente estavam bons – ou assim ela pensava. Mas agora a velha está sentada em frente a uma loja vazia, a chorar. Pois com o miserável papel-moeda que ela recebeu pelos seus cartões, ela não pode comprar um centésimo da sua antiga reserva de postais. O seu negócio está arruinado, o seu sustento absolutamente destruído. Ela pode pedir esmola. E o mesmo desespero está a assenhorear-se de todo o povo. Estamos diante de uma revolução.”
Hitler observou de forma perspicaz que, uma vez que o governo começara a utilizar as impressoras “a tempo inteiro”, estava condenado a continuar a “fraude” até o amargo fim de um colapso hiperinflacionário. Parar a expansão monetária revelaria aos trabalhadores que o seu rendimento real era substancialmente menor do que imaginavam e que muito estava a ser desviado para pagar reparações a potências estrangeiras, conforme determinado pelo Tratado de Versalhes. Essa revelação significaria a queda do governo. Entretanto, a confiança das pessoas na ordem moral e social estabelecida associada ao capitalismo seria destruída, pois os viciosos substituiriam os virtuosos no topo da estrutura socioeconómica. Como Hitler escreveu no seu jornal diário em 1923: “O governo continua a imprimir calmamente estes retalhos de papel, porque, se parar, isso significará o fim do governo, porque uma vez que as impressoras parem… a fraude será imediatamente trazida à luz. Pois então o trabalhador perceberá que está a ganhar apenas um terço do que ganhou em tempos de paz… Acreditem em mim, a nossa miséria aumentará. O canalha vai sobreviver. Mas o empresário decente e sólido que não especula será totalmente esmagado; primeiro será o sujeito que está na base, mas no final também será o sujeito que está no topo. Mas o canalha e o vigarista permanecerão, em cima e em baixo. O motivo: porque o próprio Estado se tornou o maior. Um Estado de ladrões.”
Embora Hitler tenha falado com mais sinceridade sobre a natureza e os efeitos da inflação do que nossos actuais banqueiros centrais e economistas académicos, a sua intenção não era apresentar um programa para abolir o “estado dos ladrões” e restaurar a moeda sólida, a propriedade privada e a ordem moral e social do capitalismo. Em vez disso, Hitler procurou assustar e envergonhar as massas alemãs sem propriedade, desmoralizadas e atomizadas para que abandonassem os políticos social-democratas corruptos e míopes da República de Weimar e procurassem a salvação num estado ditatorial dirigido pelo movimento nacional-socialista. Assim, Hitler avisou que as pessoas que ganhavam milhões de marcos, literalmente morreriam de fome. O agricultor pararia de vender os seus produtos pelos milhões inúteis, os quais só pode usar para “forrar as paredes do anexo onde guarda o estrume”. O que Hitler esperava provocar era o que chamou de “revolta dos milionários famintos”. De acordo com Hitler, “se as pessoas horrorizadas podem morrer de fome com milhões, então devem chegar a essa conclusão: não nos submeteremos mais a um Estado que se baseia na ideia enganadora da maioria, queremos ditadura!”
Hitler, no entanto, usou mais do que o medo para motivar os seus ouvintes. Capitalizou o auto desprezo daqueles que lhes tinha sido subtraído as propriedades e os valores morais, e cujo senso de identidade tinha sido destruído. Observou que pessoas como estas regrediram ao estado imaturo da adolescência e estavam prontas para seguir um líder – para reconstruir os seus próprios códigos morais e personalidades de acordo com o ideal colectivista e nacionalista artificial da visão distorcida do líder. Hitler dirigiu-se-lhes e criticou-as em conformidade: “O povo alemão [é] feito de crianças, pois apenas um povo infantil aceitará notas de um milhão de marcos”.
Heiden ligou perspicazmente o objectivo de Hitler nos seus discursos sobre hiperinflação com o desarranjo da sua própria personalidade e como o produto da mesma catástrofe moral, económica e social da hiperinflação: “Foi a construção artificial de um novo carácter nacional, um carácter ersatz3, uma atitude criada de acordo com um plano artificial. As pessoas sonham e o adivinho diz o que estão a sonhar. Esta conversa contínua, dominadora, mas íntima com o povo, só poderia ser realizada por um homem que fosse povo e inimigo do povo em um só; uma personalidade dilacerada que se sentia um fragmento pisoteado do povo na sua própria nulidade miserável e oprimida, e se revoltou com o povo contra este destino; mas que ao mesmo tempo estava convencido da necessidade absoluta de pisotear, de coagir e de sacudir o punho do mestre.”
Hitler não utilizou apenas este tema da degeneração e reconstrução da personalidade como um dispositivo retórico. Transformou-o num dos princípios fundamentais da filosofia nacional-socialista. Num capítulo de Mein Kampf, intitulado “Personalidade e a Concepção do Estado Popular”, Hitler elaborou a sua visão do estado nacional-socialista, cuja “tarefa principal” via como “educar e preservar o detentor do estado”. Subjacente a esse estado estaria uma filosofia que “se baseia não na ideia da maioria, mas na ideia de personalidade”.
Para Hitler, a personalidade emerge das ideias inventivas e acções criativas de indivíduos especialmente capazes, mas só atinge a sua plena realização no estado organizado e, especialmente, na liderança desse estado. Os indivíduos não possuem personalidade, mas são possuídos e moldados por ela; o seu próprio ser não emana de dentro, mas penetra de fora. Para Hitler, a personalidade tem origem apenas no líder e trespassa e anima toda a nação, transformando-a em algo vivo. O princípio distorcido da personalidade de Hitler trespassa e organiza todos os campos da actividade humana, incluindo o pensamento, a arte e a vida económica. De facto, Hitler argumentou que “a ideia de personalidade é dominante em todos os lugares – a sua autoridade declina e a sua responsabilidade é para com a personalidade superior”. No entanto, ela é sufocada e incompletamente realizada porque é impedida de entrar na vida política pelo princípio antitético da maioria. Portanto, Hitler concluiu: “A melhor constituição e forma de estado é aquela que… eleva as melhores mentes da comunidade nacional a uma posição de liderança e influência de liderança.” Após uma década da publicação destas palavras, Hitler teria o seu estado ideal, que substituiria o dinheiro e a propriedade privada como formadores da personalidade humana e da sociedade.
Conclusão
A hiperinflação alemã é um exemplo histórico concreto de como a destruição da propriedade afecta a formação da personalidade humana. Ilustra uma ligação entre propriedade e personalidade que se baseia nos princípios universais estabelecidos pela praxeologia, a mesma ciência da acção humana que engloba a economia sólida. Em contraste, a disciplina mecanicista, compartimentada e hipermatemática que é a macroeconomia contemporânea nunca pode compreender toda a enormidade moral e social da hiperinflação. Os seus praticantes estreitamente especializados nem estão familiarizados com todos os ramos da ciência económica, muito menos com as disciplinas intimamente relacionadas da história, sociologia, psicologia e filosofia política. Um conhecimento prático das principais conclusões destas disciplinas é necessário para um economista que procura explicar completamente as causas e consequências de um evento económico complexo, como a hiperinflação alemã de 1923 ou a Grande Depressão da década de 1930. Como Friedrich Hayek apontou: “Ninguém pode ser um grande economista se for apenas um economista – e estou até tentado a acrescentar que o economista que é apenas um economista provavelmente tornar-se-á um incómodo, se não uma ameaça perigosa.”
- Estou em dívida ao David Gordon por este insight. ↩︎
- Konrad Heiden (1901-1966) era o líder de uma pequena organização democrática em 1923, quando entrou em conflito com Adolf Hitler e o seu movimento, patrocinando desfiles antinazis, protestos em massa e grandes cartazes. Ver Konrad Heiden, Der Fuehrer: Hitler’s Rise to Power, trad. Ralph Manheim (Boston: Houghton Mifflin, 1944), extraído em The German Inflation of 1923, ed. Fritz K. Ringer (Nova Iorque: Oxford University Press, 1969), 164–218. ↩︎
- Substituto, ou sucedâneo. Artificial. (N. do T.) ↩︎
Este artigo foi publicado originalmente no site do Mises Institute.