[Esta palestra foi proferida na reunião anual da Property and Freedom Society, em Bodrum, Turquia no dia 20 de Setembro de 2025]
Introdução
Um dos políticos mais comentados de hoje é o presidente argentino, Javier Milei. É geralmente retratado e se auto-retrata como um libertário e um seguidor da escola austríaca, invocando, especificamente, Mises, Rothbard e Hoppe, entre outros. Foi a leitura de Rothbard sobre o monopólio que primeiro alertou Milei para a escola austríaca, e ele leu Acção Humana de Mises tantas vezes e fez tantas anotações que teve que comprar uma segunda cópia. Durante um período de tempo, até restringiu seu consumo de outros bens ao mínimo, a fim de comprar o maior número possível de livros sobre economia austríaca. Ele narrou essa história de conversão repetidamente, no Encontro Hayek em Hamburgo e no prefácio do livro Javier Milei – A Causa da Liberdade, de Philipp Bagus.
Esta é uma história encantadora, mas resta saber que tipo de ciência económica Milei realmente propaga para seus seguidores e usa como guia para suas políticas. O seu programa político geral e sua retórica têm revelado cada vez mais que Milei não passa de um conservador comum, em vez de um revolucionário libertário, como evidenciado nos seus crescentes gastos militares, na sua reforma e aumento do tamanho da polícia argentina e na sua busca por relações muito estreitas com o Estado americano. Talvez o mesmo seja verdade para sua economia: que a economia austríaca de Milei, assim como seu libertarianismo, é apenas um fino verniz com pouca base na realidade.
Embora as políticas económicas de Milei tenham sido frequentemente criticadas, poucos examinaram criticamente sua relação com a escola austríaca,1 e alguns até celebraram essa suposta relação. Mas a ciência económica de Milei é realmente inspirada por Mises e Rothbard, como sua retórica levaria a acreditar? Como é provavelmente bem conhecido para os leitores deste instituto, quando o Prof. Hoppe criticou o programa político de Milei no ano passado, a resposta foi uma torrente de abusos que equivalia à alegação de que Hoppe não conhece a ciência económica. Essa afirmação foi repetida em 8 de Junho deste ano no Fórum Económico de Madrid e novamente no Twitter (X), com Milei a acrescentar que Rothbard discordaria de Hoppe.
Não vou aqui entrar muito nos detalhes da disputa entre Milei e Hoppe sobre principalmente a natureza do banco central, mas sim examinar uma questão mais geral: Milei é um economista austríaco? É ele um representante fiel de nossa tradição, a saber, a de Ludwig von Mises e Murray N. Rothbard, e é justo e razoável associar a escola austríaca, para o bem ou para o mal, com a economia de Milei? Vou-me concentrar principalmente nos escritos e discursos de Milei sobre economia e apenas secundariamente em suas políticas. Um defensor de Milei pode alegar que ele é realmente “um de nós”, mas que o seu poder político é limitado, ele não pode fazer tudo o que quer fazer e assim por diante. Mas talvez seu programa económico não seja austríaco pela simples razão de que Milei não é austríaco e seu envolvimento com a escola é apenas superficial.
O pensamento económico de Milei
Crescimento económico
O lugar ideal para começar a examinar a economia de Milei é sua teoria do crescimento económico. Isso ocorre por duas razões: primeiro, Milei era e apresentava-se como um economista desenvolvimentista antes de descobrir a escola austríaca, e foi o fracasso da economia desenvolvimentista mainstream em explicar os últimos séculos de crescimento económico que fez ele se consciencializar dos problemas da economia neoclássica e o fez voltar-se para Rothbard; e segundo, até onde pude encontrar, o único escrito académico de Milei2 desde sua “conversão” austríaca descreve precisamente esse fracasso da economia neoclássica e a solução que ele encontrou em Rothbard e na Escola Austríaca.
Ao se preparar para sua primeira apresentação em Davos em 2024, Milei usou o trabalho de Angus Maddison3 para uma visão geral do desenvolvimento económico global. Com Maddison, ele aprendeu que até 1800 basicamente não houve desenvolvimento – as pessoas eram basicamente tão pobres em 1800 quanto no ano 1. No entanto, nos 200 anos seguintes, a riqueza multiplicou-se. Isso significa que houve um período de rendimentos crescentes, mas rendimentos crescentes não se conseguem encaixar nos modelos de crescimento neoclássicos – na verdade, como veremos, a economia neoclássica é positivamente hostil à explicação de Milei. Milei volta-se primeiro para Adam Smith4 em busca de respostas, como qualquer economista faria. Apesar da conhecida crítica de Rothbard a Smith,5 isso também parece aceitável do ponto de vista austríaco, mas é crucial examinar o que Milei encontrou em Smith.
Lendo-o, Smith identifica cinco causas do desenvolvimento económico: acumulação de capital, mercados livres, inovação tecnológica e aprendizagem experiencial, e rendimentos crescentes à escala, que Milei vê como a realidade por trás do famoso exemplo da fábrica de alfinetes (ou parábola, como Milei o chama). De facto, Milei resume ainda mais as ideias-chave de Smith:
“o modelo do Pai da Economia baseia-se em duas ideias fundamentais: a fábrica de alfinetes (rendimentos crescentes à escala) e o conceito da mão invisível (cooperação social sob ordem espontânea).”6
Qual é então a fonte dos rendimentos crescentes à escala? Aqui, a leitura de Milei de Smith torna-se idiossincrática. Adam Smith, é claro, quis destacar a importância da divisão do trabalho com o seu exemplo de fábrica de alfinetes, mas Milei não localiza aí a fonte de rendimentos crescentes. Em vez disso, rendimentos crescentes só podem vir de “estruturas de mercado concentradas”, ou seja, de monopólios. É aqui que Milei vê a crise da economia neoclássica: o monopólio explica o aumento dos rendimentos e, portanto, o desenvolvimento económico, mas o monopólio é uma externalidade negativa que deve ser evitada por meio da intervenção para alcançar o resultado óptimo de Pareto.7
Nessa crise do neoclassicismo, Milei volta-se para a análise de Rothbard sobre o monopólio em Homem, Economia e Estado.8 Citando a definição de monopólio de Lord Coke como privilégio legal, Milei conclui que não há nada de errado com o monopólio, a não ser que seja o resultado de intervenção violenta e que a livre troca versus intervenção violenta é a distinção importante ao analisar um mercado, não o número de vendedores.9 Tudo isso é verdade, é claro, e uma tradução fiel da posição de Rothbard, mas deixa a análise de Milei sobre o desenvolvimento económico intocada: o monopólio traz rendimentos crescentes e, portanto, progresso. Ele apenas descarta a conotação negativa de monopólio e, em seguida, afirma que as intervenções destinadas a quebrar os monopólios levarão a um ciclo de intervencionismo que acabará por terminar no socialismo. Tal análise do intervencionismo é bem conhecida a partir do trabalho de Mises,10 mas Milei apenas cita O Caminho da Servidão de Hayek e Planning for Freedom de Mises, não se envolve em nenhuma descrição ou análise do processo pelo qual a legislação antimonopólio leva ao socialismo.
Exactamente como os monopólios levam a rendimentos crescentes também não está claro além da sua necessidade matemática no modelo neoclássico, como Milei o lê. Suspeita-se que eles sejam cruciais na introdução de novas tecnologias, já que a inovação é a explicação padrão do crescimento na economia mainstream moderna, seja em modelos exógenos na tradição de Solow11 ou, sem dúvida, também nos modelos endógenos que Milei defende.12 Essa impressão é reforçada quando Milei destaca a inovação em sua leitura de Adam Smith.
Desnecessário dizer que não é “austríaco” afirmar que os monopólios são os motores do desenvolvimento económico. As explicações austríacas padrão do desenvolvimento são muito “clássicas” nos seus argumentos: a divisão do trabalho pode gerar rendimentos crescentes, mas em especial a acumulação de capital é fundamental. A diferença entre um país rico e um pobre, como diz Mises, deve-se à diferença no capital acumulado por pessoa, que por sua vez determina a produtividade por pessoa.
“Somos os afortunados herdeiros de nossos antepassados, cuja poupança permitiu a acumulação de bens de capital com os quais estamos a trabalhar hoje. Nós, os filhos privilegiados da era da electricidade, continuamos a beneficiar da poupança original dos primeiros pescadores que, ao produzirem as primeiras redes e canoas, dedicaram uma parte do seu tempo de trabalho para o aprovisionamento de um futuro mais remoto…. Estamos, hoje, melhores do que as gerações anteriores, porque dispomos dos bens de capital que elas acumularam para nós.”13
A tecnologia também não é uma explicação alternativa, uma vez que o conhecimento técnico não é um factor limitante na produção, mas sim a quantidade de capital e os bens de capital disponíveis que determinam quais dos possíveis planos técnicos de produção serão seguidos.14
A importância da acumulação de capital é hoje negada pela economia neoclássica mainstream, como é evidente nos modelos de crescimento com os quais Milei está familiarizado. Economistas clássicos como Smith e Ricardo enfatizaram esse ponto, e hoje em dia os austríacos estão virtualmente sozinhos em manter esse ponto de vista “clássico”. No entanto, Milei não aprendeu isso nem com Smith nem com Mises.
O problema dos rendimentos decrescentes que Milei encontrou nos modelos neoclássicos também não é aplicável à análise austríaca, uma vez que a lei dos rendimentos só se aplica aos factores individuais de produção, não ao capital como tal. À medida que o capital é acumulado, ele será investido em vários bens de capital concretos, cujo emprego, é claro, está sujeito à lei dos rendimentos decrescentes. Isso significa apenas, no entanto, que o rendimento do trabalho aumentará e, à medida que o capital for acumulado, novas combinações de produção e uma nova divisão do trabalho se tornarão possíveis, levando a rendimentos crescentes.15 Tudo isso aponta para a teoria distintamente austríaca do capital, mas Milei não discute o capital. Nisso sua leitura, ou pelo menos sua aplicação, da economia austríaca parece inexistente. Ele escreve puramente em termos neoclássicos e só aceita a visão de Rothbard sobre o monopólio. Ele realmente não escapou da armadilha neoclássica.
A economia desenvolvimentista de Milei não é apenas de interesse académico. Também propagou essas ideias publicamente, com destaque para o seu discurso em Davos, em Janeiro de 2024.
Teoria Monetária
A teoria monetária de Milei é talvez o mais conhecido dos seus desvios da tradição austríaca que ele afirma seguir. O seu programa de reforma monetária chamou a atenção generalizada e foi a crítica do professor Hoppe às suas políticas reais sobre o assunto que provocou as primeiras explosões de raiva de Milei contra Hoppe. Milei propôs um programa de dolarização seguido pela abolição do banco central.16 O programa de dolarização é defeituoso por dois motivos: equivale a um grande confisco de riqueza privada e é insuficiente em comparação com uma reforma mais simples.
Primeiro, o programa de dolarização com o qual Milei “flirtou” na sua campanha e que pode, pelo que sei, ainda estar a orientar a política, exige que o banco central da Argentina primeiro construa reservas em dólares. A partir do momento em que as reservas sejam adequadas, o dólar americano substituirá o peso e o banco central argentino poderá deixar de existir. No entanto, a construção de reservas em dólares só pode acontecer por meio de algum tipo de tributação, a menos, é claro, que os argentinos entreguem voluntariamente seus dólares ao banco central. Ou então o governo argentino teria que usar os recursos obtidos através dos impostos para comprar dólares, o que dificilmente seria viável, pois ou iria colocar pressão na taxa de câmbio; ou teria que forçar as empresas de exportação a entregar os seus ganhos em dólares a uma taxa com desconto. Poderia também, como efectivamente foi feito, emprestar os dólares do FMI e de outras instituições internacionais, mas esta é apenas uma medida paliativa, uma vez que esses empréstimos geralmente têm de ser reembolsados a curto prazo.
Em segundo lugar, mesmo que a dolarização seja melhor do que um peso inflacionário, o dólar americano em si está longe de ser uma boa moeda. É verdade que a dolarização tornaria a política monetária na Argentina impossível, mas os argentinos ainda estariam sujeitos a uma grande perda de poder de compra, à medida que a inflação americana redistribui a riqueza de todos os detentores de dólares em todo o mundo para os destinatários favorecidos de dólares recém-criados em Washington e Nova York. Uma solução superior e mais simples seria simplesmente fechar o banco central argentino e, se isso se mostrar politicamente impossível, fazê-lo parar de emitir novos pesos e permitir total liberdade na escolha da moeda. Se a taxa de criação de dinheiro caísse para um mínimo ou mesmo para zero, as expectativas inflacionárias das pessoas provavelmente desapareceriam da noite para o dia e a qualidade do peso melhoraria substancialmente. Os argentinos também poderiam decidir usar outra moeda em vez do peso e, dadas as amplas participações em dólares na Argentina, o dólar seria o primeiro da fila, mas isso não é de forma alguma certo. Em vez disso, à medida que a qualidade percebida do peso aumentasse, as pessoas começariam a livrar-se de seus dólares, pois é muito mais conveniente para cada um manter a sua riqueza na mesma moeda que usa para transacções diárias.17
O facto de Milei não ter abolido completamente o banco central não é simplesmente uma consequência de seu programa de dolarização ou das suas limitadas possibilidades políticas. Quando questionado sobre o assunto, ele (infamemente) afirmou que o banco central é necessário para lastrear a moeda. O peso é um passivo do banco central, portanto, se você abolir o banco central, tornará o peso inútil. Esta é a chamada ‘teoria de lastro da moeda’, segundo a qual, longe de ser um motor da inflação, o banco central é necessário para salvaguardar o valor do dinheiro. A inflação é, nessa visão, uma questão do banco central manter o tipo errado de activos de baixa qualidade, o que no caso da Argentina seriam títulos do governo argentino em vez de títulos do governo americano, presumivelmente.
Essa teoria é um desenvolvimento da doutrina falaciosa das letras reais, segundo a qual a expansão do crédito bancário não é inflacionária, desde que os bancos só emprestem dinheiro contra letras de câmbio que representem actividade económica real. Da mesma forma, os bancos centrais não são inflacionários, desde que detenham activos de alta qualidade. No entanto, os argumentos da escola monetária contra a doutrina das letras reais também se aplicam à teoria do lastro: o valor dos activos que lastreiam uma moeda não é independente da quantidade de dinheiro em circulação ou do aumento da quantidade de dinheiro. O alegado limite à inflação é perfeitamente elástico.
Não deveria ser surpresa que essa teoria não tenha nada a ver com a teoria monetária de Ludwig von Mises e Murray N. Rothbard. O dinheiro é um bem económico que é valorizado apenas pelo seu poder de compra.18 Não é uma reivindicação sobre outros bens, mas um bem económico em si e seu valor é determinado de acordo com a demanda (com base no poder de compra esperado) e a oferta. No mundo moderno, os bancos centrais criam dinheiro. Mises em 1949 chamou os bancos centrais de “meras ferramentas de expansão do crédito e inflação”19 e em 1959, numa palestra proferida na Argentina, ele descreveu o banco central simplesmente como um motor da inflação.20 Rothbard argumentou que “o propósito essencial do banco central é usar o privilégio do governo para remover as limitações… na inflação monetária e de crédito bancário”.21 Embora os activos do banco central sejam importantes quando se trata de sua capacidade de conduzir a política monetária, eles são irrelevantes para o valor do dinheiro. A taxa de criação de dinheiro e as avaliações e expectativas do público são aqui os únicos factores decisivos.22
As políticas económicas de Milei
Se nos voltarmos agora para o que Milei realmente fez, é difícil considera-lo algum tipo de implementador de políticas austríacas ou libertárias. Sim, ele pode ser mais radical do que o eurocrata padrão ou a elite governante dos Estados Unidos, mas para um país em desenvolvimento e para a Argentina em particular ele não é fora do comum. Considere o presidente “peronista” Carlos Menem, que governou a Argentina de 1989 a 1999. Quando ele chegou ao poder, a hiperinflação destruiu a Argentina. Em vez de simplesmente falar sobre dolarização e motosserras, ele aboliu a antiga moeda argentina, o austral, e introduziu um novo peso atrelado 1:1 ao dólar. Também desregulamentou a economia e supervisionou um vasto programa de privatização que transformou ferrovias estatais, empresas de telefonia e serviços públicos em empresas privadas.23 Com certeza, há limites para a liberalização de Menem: as empresas privadas receberam muitas concessões e monopólios de décadas e sua política monetária rapidamente se tornou inflacionária. O seu desafio ao sindicato também fracassou. No entanto, não está claro se o seu programa deva alguma coisa quando comparado ao de Milei.
Javier Milei, de facto, talvez seja melhor visto como um implementador de consenso “neoliberal” de Washington do que como um cruzado libertário. O consenso de Washington é o conjunto de políticas que o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e o governo dos EUA patrocinaram em todo o mundo em desenvolvimento. Essa agenda política não é de todo má, pois inclui desregulamentação da economia, privatização, segurança dos direitos de propriedade e abertura ao comércio. No entanto, visa fundamentalmente tornar os estados financeiramente sólidos mais do que promover economias livres e saudáveis – o último é realmente um meio para o primeiro na agenda de Washington. As reformas tributárias de Milei são de facto típicas de uma política de Washington: ele cortou alguns impostos, mas ao mesmo tempo ampliou a base tributária e trabalhou para tornar a tributação mais eficiente. Tais políticas equivalem a um aumento de impostos de facto e são prejudiciais ao desenvolvimento económico sólido, mas são úteis para garantir um fluxo confiável e estável de rendimento para o estado, o que, por sua vez, torna o estado um cliente melhor para os credores internacionais.
A retórica de Milei sobre aumentar a confiança na Argentina aponta na mesma direcção. Ele realmente quer dizer confiança nos títulos do governo argentino, mas se alguém quiser atrair investimentos estrangeiros para a Argentina, não é necessário fazer do governo argentino um bom devedor. Na verdade, isso é positivamente prejudicial. O governo está em concorrência directa com as empresas privadas quando se trata de atrair capital, o que é conhecido como efeito crowding-out. Se o governo se provar ser um “investimento” melhor do ponto de vista dos financeiros internacionais, eles vão transferir os seus fundos do investimento privado para títulos do governo, o que, por sua vez, prejudicará o desenvolvimento da economia do sector privado. Se o objectivo é atrair capital internacional (e convencer os argentinos a investir em actividades produtivas em vez de apenas manter grandes saldos de caixa), então a segurança da propriedade, a liberdade de associação, impostos baixos ou de preferência inexistentes e um sistema de justiça justo e eficiente é tudo o que é necessário. Milei poderia ter aprendido isso com Adam Smith:
“Pouco mais é necessário para levar um estado ao mais alto grau de opulência, desde a mais baixa barbárie, do que paz, impostos moderados e uma administração tolerável de justiça: todo o resto é provocado pelo curso natural das coisas.”24
Se olharmos para sua política monetária, as coisas parecem sombrias. A oferta monetária medida pelo M2 dobrou em 2024 e continuou a crescer em 2025 a uma taxa mensal de 5% ou mais. A taxa mensal de inflação de preços é de cerca de 2%. É difícil comemorar isso como se fossem algum tipo de sucesso, apesar da queda relativa do nível muito alto de 2023, quando a oferta monetária triplicou. Em Abril deste ano, o Banco Central da Argentina anunciou a fase 3 do plano económico. Muitos controles de capital e câmbio foram finalmente eliminados e a taxa de câmbio foi autorizada a flutuar livremente entre faixas de 1.000 a 1.400 pesos por dólar. Milei já tinha desvalorizado o peso de cerca de 360 para 790 pesos por dólar, e a trajectória descendente continuou desde então. De facto, imediatamente após o anúncio da fase 3, o peso caiu para quase 1.200 e depreciou lentamente desde então. Agora (16 de Setembro) está pressionando o limite máximo em 1.465 pesos por dólar.
O enorme empréstimo de US$ 42 bilhões que a Argentina recebeu do FMI, do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento foi para fornecer aos argentinos acesso ao mercado de câmbio com dólares, enquanto o banco central e Milei ainda afirmam por vezes que estão construindo reservas. Ao mesmo tempo, tem um efeito inibidor na economia produtiva. As exportações argentinas estão fora do mercado global e, embora a porta para o capital estrangeiro esteja teoricamente aberta, é improvável que alguém invista nesse ambiente inflacionário. Em vez disso, vimos evasões maciças desde Abril, possibilitadas pelo encerramento dos controles e financiadas pelo empréstimo do FMI.
É importante ressaltar que a depreciação não é um fenómeno inexplicável. O principal impulsionador é a inflação da oferta monetária, já que a mudança no valor do dinheiro provavelmente será registada primeiro no mercado de câmbio. Milei falou em estabilizar as expectativas como um primeiro passo para controlar a inflação. As expectativas inflacionárias são um fenómeno real, mas Milei, como o mainstream dos banqueiros centrais que seguem a mesma ideia, parece não perceber o que causa as expectativas inflacionárias. É a inflação contínua da oferta monetária que causa as expectativas e nenhuma conversa e nenhuma política pode mudar essas expectativas enquanto a inflação estiver em andamento. Tudo o que a política actual consegue fazer é vender dólares aos investidores a baixo custo, ao mesmo tempo em que interrompe o comércio e os fluxos de capital.
A política económica e monetária argentina, então, não é particularmente austríaca e, para ser justo, Milei e seu governo não parecem reivindicar muito que o seja. Em vez disso, é mais uma rodada do antigo consenso de Washington patrocinado pelo FMI e, em última análise, financiado pelos pagadores de impostos argentinos. Embora seja possível instalar uma política monetária eficaz dessa maneira – seja dolarização ou uma moeda indexada ou qualquer outra coisa – a trajectória actual da política de Milei aponta para o fracasso completo. Como a taxa de câmbio está agora no limite superior, a questão é se o banco central argentino corrigirá sua política inflacionária antes de esgotar suas reservas. Um retorno aos controlos de capital num futuro próximo também é possível.
Conclusão: Milei e a Escola Austríaca
Milei é austríaco? Ele certamente acredita em mercados livres, mas o mesmo acontece com muitos, senão a maioria, dos economistas não-austríacos, pelo menos em teoria. Ele adoptou a terminologia sobre cooperação social e ordem espontânea que é mais exclusivamente austríaca, e aprendeu com Rothbard a não temer monopólios. No entanto, esta é a totalidade da sua adesão à escola austríaca e quando se trata de questões substanciais, o que Peter Klein chamou de “economia mundana”,25 Milei continua a ser um neoclássico propagando ideias mainstream e a implementar políticas amplamente “neoliberais”.
Essas políticas não são de todo más, mas na questão-chave em que as percepções austríacas são mais distintas e onde uma política austríaca seria mais radical, ou seja, sobre a moeda, Milei permanece preso no seu paradigma neoclássico, e a moeda permanece algo completamente incompreensível para ele. Isso é compreensível e lamentável, pois, para citar Huerta de Soto, “as relações sociais que envolvem dinheiro são decididamente as mais abstractas e difíceis de entender… o que, por sua vez, torna a intervenção nesta área de longe a mais prejudicial”.26 Portanto, não vamos fingir que Milei pertence à Escola Austríaca. No campo crucial da moeda e do sistema bancário, ele está a anos-luz de Mises, Rothbard e Hoppe, e suas políticas inflacionárias são positivamente anti-austríacas.
Notas:
Adaptado da tradução publicada no Instituto Rothbard.
- Octavio Bermudez é uma excepção: “Desvendando o pensamento económico de Milei”. ↩︎
- Javier Gerardo Milei, ‘Capitalismo, socialismo e a armadilha neoclássica‘, em O Surgimento de uma Tradição: Ensaios em Homenagem a Jesús Huerta de Soto, Volume II: Filosofia e Economia Política, ed. David Howden e Philipp Bagus (Palgrave Macmillan, 2023), https://doi.org/10.1007/978-3-031-17418-6. ↩︎
- Angus Maddison, Contornos da Economia Mundial, 1-2030 DC: Ensaios em História Macroeconómica (Oxford University Press, 2007). ↩︎
- Adam Smith, Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações, ed. Edwin Cannan, 2 vols (Methuen & Co., Ltd., 1904), https://www.econlib.org/library/Smith/smWN.html. ↩︎
- Murray N. Rothbard, História do Pensamento Económico – Uma Perspectiva Austríaca – Antes de Adam Smith (Ludwig von Mises Institute, 2006). ↩︎
- Milei, ‘Capitalismo, socialismo e a armadilha neoclássica‘, 212. ↩︎
- Milei, ‘Capitalismo, socialismo e a armadilha neoclássica‘, 216–17. ↩︎
- Murray N. Rothbard, Homem, Economia e Estado – com Poder & Mercado (Ludwig von Mises Institute, 2009), cap. 10. ↩︎
- Milei, ‘Capitalismo, socialismo e a armadilha neoclássica‘, 217. ↩︎
- Ludwig v. Mises, Uma Crítica ao Intervencionismo, tradução revisada de 1976, trad. Hans F. Sennholz (Ludwig von Mises Institute, 2011); Ludwig v. Mises, Intervencionismo – Uma análise económica, ed. Bettina Bien Greaves (Liberty Fund, Inc, 2011). ↩︎
- Robert M. Solow, ‘Uma Contribuição para a Teoria do Crescimento Económico’, The Quarterly Journal of Economics 70, nº 1 (1956): 65, https://doi.org/10.2307/1884513. ↩︎
- Robert E. Lucas, ‘Sobre a Mecânica do Desenvolvimento Económico’, Journal of Monetary Economics 22, nº 1 (1988): 3–42, https://doi.org/10.1016/0304-3932(88)90168-7; Michael Kremer, ‘Crescimento Populacional e Mudança Tecnológica: Um Milhão de A.C. até 1990’, Quarterly Journal of Economics 108, nº 3 (1993): 681–716; cf. Robert J. Barro e Xavier Sala-i-Martin, Crescimento Económico, 2ª edição (MIT Press, 2004). ↩︎
- Ludwig v. Mises, Acção Humana – Um Tratado de Economia, The Scholar’s Edition (Ludwig von Mises Institute, 1998), 489. ↩︎
- Mises, Acção Humana, 492–94. ↩︎
- Cf. Rothbard, Homem, Economia e Estado, 561. ↩︎
- Cf. meus próprios artigos sobre o pensamento monetário de Milei: https://mises.org/mises-wire/will-dollarization-work-argentina e https://rothbardbrasil.com/hoppe-versus-milei-sobre-o-banco-central-quem-esta-certo/. Também importantes são as críticas de Nicolás Cachanosky a Milei em seu blog, Economic Order: https://economicorder.substack.com/. ↩︎
- Em um artigo a ser publicado, analiso a relação entre a qualidade do dinheiro e a demanda por meios secundários de troca. ↩︎
- Ludwig v. Mises, ‘A Posição da Moeda entre os Bens Económicos’, em Dinheiro, Método e o Processo de Mercado, por Ludwig v. Mises, ed. Richard M. Ebeling (Praxeology Press do Ludwig von Mises Institute; Kluwer Academic Publishers, 1990). ↩︎
- Mises, Acção Humana, 457. ↩︎
- Ludwig v. Mises, Política Económica: Pensamentos para Hoje e Amanhã, Terceira edição (Ludwig von Mises Institute, 2006), cap. 4. ↩︎
- Murray N. Rothbard, The Mystery of Banking, Segunda edição, com Douglas E. French e Joseph T. Salerno (Ludwig von Mises Institute, 2008), 125. ↩︎
- Os ativos do banco central podem influenciar indirectamente o valor do dinheiro se o público os considerar factores importantes. ↩︎
- Huberto M. Ennis e Santiago M. Pinto, ‘Privatização da Argentina: Efeitos na Distribuição de Renda’, em Reality Check: O Impacto Distributivo da Privatização nos Países em Desenvolvimento, ed. John Nellis (Centro para o Desenvolvimento Global, 2005), https://www.cgdev.org/publication/9781933286006-reality-check-distributional-impact-privatization-developing-countries. ↩︎
- Smith, A Riqueza das Nações, xxxv. ↩︎
- Peter G. Klein, ‘A Economia Mundana da Escola Austríaca’, The Quarterly Journal of Austrian Economics 11, nºs 3–4 (2008): 165–87, https://doi.org/10.1007/s12113-008-9045-3. ↩︎
- Jesús Huerta de Soto, A Escola Austríaca: Mercado e Criatividade Empresarial (Edward Elgar, 2008), 104. ↩︎