Ensaio original escrito por Murray N. Rothbard, publicado em Cato Journal 2, Nº 1 (Primavera de 1982): 55–99.
O Direito como Disciplina Normativa
O Direito é um conjunto de ordens; os princípios do direito penal ou de responsabilidade civil, com os quais iremos lidar, são ordens negativas ou proibições, no sentido de “não deves” realizar as acções X, Y ou Z.1 Em suma, certas acções são consideradas erradas a tal ponto que se considera apropriado utilizar sanções de violência (uma vez que o direito é a corporificação social da violência) para combater, defender contra e punir os infractores.
Existem muitas acções contra as quais não se considera apropriado o uso de violência, seja individual ou organizada. Mentir (isto é, quando não há quebra de contractos que envolvam a transferência de títulos de propriedade), traição, ingratidão profunda, ser desagradável para amigos ou colegas, ou não cumprir promessas são, em geral, consideradas acções erradas, mas poucos pensam em usar a violência para combatê-las. Outras sanções, como deixar de ver ou ser amigável com a pessoa, ostracizá-la, e assim por diante, podem ser utilizadas por indivíduos ou grupos, mas o uso da violência do direito para proibir tais acções é considerado excessivo e inadequado.
Se a ética é uma disciplina normativa que identifica e classifica determinados conjuntos de acções como boas ou más, certas ou erradas, então o direito penal ou de responsabilidade civil é um subconjunto da ética que identifica determinadas acções como adequadas para serem combatidas com violência. O direito afirma que a acção X deve ser ilegal e, portanto, deve ser combatida pela violência do direito. O direito é um conjunto de proposições normativas ou de dever-ser.
Muitos escritores e juristas afirmam que o direito é uma disciplina neutra, “positiva”. Claro que é possível simplesmente listar, classificar e analisar o direito existente sem ir mais além, sem dizer o que a lei deve ou não deve ser.2 Mas esse tipo de jurista não está a cumprir a sua tarefa essencial. Uma vez que o direito é, em última instância, um conjunto de comandos normativos, o verdadeiro jurista ou filósofo do direito não terá completado a sua tarefa até que exponha o que o direito deve ser, por mais difícil que isso possa ser. Se não o fizer, abdica necessariamente da sua função em favor de indivíduos ou grupos sem formação em princípios jurídicos, que podem impor os seus comandos por mero capricho e arbitrariedade.
Assim, os juristas austinianos proclamam que o rei, ou soberano, deve impor a lei, e a lei é apenas um conjunto de comandos emanados da sua vontade. Mas, então, surge a questão: Com base em que princípios é que o rei opera ou deve operar?3 Será possível dizer que o rei emitiu um decreto “mau” ou “impróprio”? Quando o jurista admite isso, ele vai para além da vontade arbitrária e começa a formular um conjunto de princípios normativos que devem guiar o soberano. E, assim, ele regressa ao direito normativo.
Variações modernas da teoria do direito positivo afirmam que o direito deve ser o que os legisladores determinam. Mas que princípios devem guiar os legisladores? E, se afirmamos que os legisladores devem ser os porta-vozes dos seus constituintes, então simplesmente adiamos o problema um passo atrás e perguntamos: Que princípios devem guiar os eleitores? Ou será que o direito, e, portanto, a liberdade de acção de todos, deve ser governado pelo capricho arbitrário de milhões de pessoas, em vez de um homem ou de um pequeno grupo?4
Mesmo o conceito mais antigo de que o direito deve ser determinado por juízes tribais ou de direito consuetudinário, que estariam apenas a interpretar o costume da tribo ou da sociedade, não escapa aos julgamentos normativos fundamentais à teoria. Porque é que devem ser obedecidas as regras do costume? Se o costume tribal exigir o assassinato de todas as pessoas com mais de 1,80 metros de altura, deve este costume ser obedecido independentemente das circunstâncias? Porque não pode a razão estabelecer um conjunto de princípios para desafiar e derrubar o mero costume e a tradição? Da mesma forma, porque é que não pode ser usada para derrubar o mero capricho arbitrário do rei ou do público?
Como veremos, o direito penal ou de responsabilidade civil são um conjunto de proibições contra a invasão ou agressão dos direitos de propriedade privada, isto é, as esferas de liberdade de acção de cada indivíduo. Mas, se esse é o caso, então a implicação do comando “Não interferirás no direito de propriedade de A” é que o direito de propriedade de A é justo e, portanto, não deve ser invadido. As proibições legais, longe de serem de alguma forma neutras, implicam na realidade um conjunto de teorias sobre justiça, em particular a justa atribuição de direitos e títulos de propriedade. “Justiça” não é nada senão um conceito normativo.
“Variações modernas da teoria do direito positivo afirmam que o direito deve ser o que os legisladores determinam. Mas que princípios devem guiar os legisladores?”
Nos últimos anos, contudo, juristas e economistas da “Escola de Chicago” tentaram desenvolver teorias de direitos de propriedade livres de valores, direitos esses definidos e protegidos não com base em normas éticas como a justiça, mas baseados em alguma forma de “eficiência social”. Numa dessas variantes, Ronald Coase e Harold Demsetz afirmaram que “não faz diferença” como os direitos de propriedade são aplicados em casos de conflitos de interesse, desde que algum direito de propriedade seja atribuído a alguém e, em seguida, defendido. No seu famoso exemplo, Coase discute o efeito prejudicial de uma locomotiva ferroviária sobre as fazendas e pomares vizinhos. Para Coase e Demsetz, esse dano às colheitas de um agricultor causado pela ferrovia é uma “externalidade” que, segundo os princípios de eficiência social, deve ser internalizada. Mas para esses economistas, não faz diferença qual das duas possíveis alternativas deve ser adoptada. Ou se diz que o agricultor tem um direito de propriedade sobre o seu pomar e, portanto, a ferrovia deve pagar pelos danos causados e o agricultor deve poder impedir as acções invasivas da ferrovia; ou então a ferrovia tem o direito de espalhar fumo onde quiser, e se o agricultor quiser parar o fumo, ele deve pagar à ferrovia para instalar um dispositivo de abatimento de fumo. Não importa, do ponto de vista do gasto de recursos produtivos, qual rota é tomada.
Por exemplo, suponhamos que a ferrovia causa um prejuízo de 100.000 dólares e que, no Caso 1, essa acção é considerada uma invasão da propriedade do agricultor. Nesse caso, a ferrovia terá de pagar 100.000 dólares ao agricultor ou então investir num dispositivo de abate de fumo, conforme o que for mais barato. Porém, no Caso 2, onde a ferrovia tem o direito de emitir fumo, o agricultor teria de pagar à ferrovia até 100.000 dólares para que esta pare de danificar a sua exploração. Se o dispositivo de abate de fumo custar menos de 100.000 dólares, digamos 80.000 dólares, então o dispositivo será instalado, independentemente de a quem for atribuído o direito de propriedade. No Caso 1, a ferrovia gastará 80.000 dólares no dispositivo em vez de ter de pagar 100.000 dólares ao agricultor; no Caso 2, o agricultor estará disposto a pagar 80.000 dólares e até 100.000 dólares à ferrovia para instalar o dispositivo. Se, por outro lado, o dispositivo de abate de fumo custar mais de 100.000 dólares, digamos 120.000 dólares, então o dispositivo não será instalado de qualquer forma, independentemente da solução adoptada. No Caso 1, a ferrovia continuará a emitir fumo e a pagar ao agricultor uma indemnização de 100.000 dólares, em vez de gastar 120.000 dólares no dispositivo; no Caso 2, o agricultor não pagará à ferrovia um suborno de 120.000 dólares pelo dispositivo, já que tal implicaria uma perda maior do que os 100.000 dólares de danos. Portanto, independentemente de como os direitos de propriedade forem atribuídos — segundo Coase e Demsetz — a alocação de recursos será a mesma. A diferença entre as duas situações prende-se apenas com uma questão de “distribuição”, isto é, de rendimento ou riqueza.5
Existem muitos problemas com esta teoria. Primeiro, o rendimento e a riqueza são importantes para as partes envolvidas, embora possam não o ser para os economistas que não estão directamente envolvidos. Para as partes, faz uma grande diferença saber quem tem de pagar a quem. Segundo, esta tese só funciona se ignorarmos deliberadamente os factores psicológicos. Os custos não são apenas monetários. O agricultor pode ter um vínculo emocional à sua horta muito além do dano monetário. Assim, a horta pode valer muito mais para ele do que os 100.000 dólares de indemnização, podendo ser necessário um milhão de dólares para o compensar pela perda total. Mas, nesse caso, a suposta indiferença colapsa totalmente. No Caso 1, o agricultor não ficará satisfeito em aceitar uns meros 100.000 dólares de indemnização. Ele recorrerá a uma providência cautelar para impedir qualquer agressão adicional à sua propriedade, e mesmo que a lei permita uma negociação entre as partes para remover essa providência, ele exigirá mais de um milhão de dólares à ferrovia, o que esta não estará disposta a pagar.6 Inversamente, no Caso 2, é improvável que o agricultor consiga reunir os fundos necessários para cobrir o montante de um milhão de dólares para impedir a invasão de fumo na sua horta.
O apego do agricultor à sua horta ilustra uma dificuldade maior na doutrina de Coase-Demsetz: os custos são puramente subjectivos e não mensuráveis em termos monetários. Coase e Demsetz prevêem na sua tese de indiferença que todos os “custos de transacção” são nulos. Se não forem, então advogam a atribuição dos direitos de propriedade ao caminho que acarrete os menores custos sociais de transacção. Mas, uma vez que entendemos que os custos são subjectivos para cada indivíduo e, por conseguinte, não mensuráveis numericamente, percebemos que os custos não podem ser somados. E, se todos os custos, incluindo os custos de transacção, não podem ser somados, então não existem “custos sociais de transacção”, e estes não podem ser comparados nos Casos 1 ou 2, ou em qualquer outra situação.7
Outro problema sério com a abordagem de Coase-Demsetz é que, ao pretenderem ser neutros em relação aos valores, na realidade incorporam a norma ética da “eficiência” e afirmam que os direitos de propriedade devem ser atribuídos com base nessa eficiência. Mas, mesmo que o conceito de eficiência social fosse significativo, eles não respondem à questão de por que razão é que a eficiência deveria ser a consideração principal na formulação de princípios legais ou porque é que as externalidades deveriam ser internalizadas acima de todas as outras considerações. Estamos assim fora do campo da Wertfreiheit e de volta a questões éticas não examinadas.8, 9
Outra tentativa de os economistas da escola de Chicago fazerem recomendações de políticas públicas sob o disfarce de Wertfreiheit é a afirmação de que, ao longo dos anos, os juízes do direito consuetudinário chegarão à alocação socialmente eficiente dos direitos de propriedade e das responsabilidades civis. Demsetz enfatiza direitos que minimizam os custos sociais de transacção; Richard Posner enfatiza a maximização da “riqueza social”. Tudo isto traz consigo um determinismo histórico injustificado, funcionando como uma espécie de “mão invisível” que guia os juízes para o caminho da actual escola de Chicago, para além das outras falácias já analisadas.10
Se o direito for um conjunto de princípios normativos, segue-se que qualquer direito positivo ou consuetudinário que tenha emergido não pode simplesmente ser decretado e seguido cegamente. Todo o direito deve ser sujeito a uma crítica aprofundada, baseada nesses princípios. Então, se houver discrepâncias entre o direito positivo e os princípios de justiça, como quase sempre há, devem ser tomadas medidas para que o direito se conforme aos princípios jurídicos correctos.
Invasão Física
O princípio normativo que estou a sugerir para o direito é simplesmente o seguinte: Nenhuma acção deve ser considerada ilícita ou ilegal, a menos que invada ou agrida a pessoa ou a propriedade legítima de outrem. Apenas as acções invasivas devem ser declaradas ilegais e combatidas com todo o poder da lei. A invasão deve ser concreta e física. Existem graus de gravidade dessa invasão e, portanto, diferentes graus adequados de restituição ou punição. O “furto”, invasão simples e discreta de propriedade para fins de roubo, é menos grave do que o “assalto”, onde a força das armas pode ser utilizada contra a vítima. Aqui, no entanto, não estamos a lidar com as questões dos graus de invasão ou punição, mas apenas com a invasão em si.
Se nenhum homem pode invadir a propriedade “legítima” de outro, qual será o nosso critério de justiça?11 Não há espaço aqui para elaborar uma teoria da justiça baseada em títulos de propriedade. Basta dizer que o axioma fundamental da teoria política libertária sustenta que todo o homem é proprietário de si mesmo, tendo jurisdição absoluta sobre o seu próprio corpo. De facto, isto significa que ninguém pode invadir ou agredir legitimamente a pessoa de outrem. Segue-se, então, que cada pessoa é proprietária legítima de qualquer recurso anteriormente não possuído que ela aproprie ou “misture com o seu trabalho”. A partir destes dois axiomas — autopropriedade e “apropriação original” — deriva-se a justificação para todo o sistema de direitos de propriedade numa sociedade de livre mercado. Este sistema estabelece o direito de cada homem sobre si próprio, o direito de doação, de deixar um legado (e, concomitantemente, o direito de receber um legado ou herança), e o direito de troca contratual de títulos de propriedade.12
A teoria legal e política tem causado muitos problemas ao falhar em identificar a invasão física como a única acção humana que deveria ser ilegal e que justifica o uso de violência física para combatê-la. O conceito vago de “dano” é substituído pelo conceito preciso de violência física.13 Considere os seguintes dois exemplos. Jim está a cortejar Susan e está prestes a ganhar a sua mão em casamento, quando de repente Bob aparece e conquista-a. Certamente, Bob causou um grande “dano” a Jim. Uma vez que se adota um sentido de dano que não envolve invasão física, quase qualquer acto ilegal pode ser justificado. Jim deveria poder “proibir” a própria existência de Bob?14
De modo semelhante, A é um vendedor de lâminas de barbear de sucesso. Mas então B surge e vende uma lâmina melhor, revestida de teflon para evitar cortes ao barbear. O valor da propriedade de A é grandemente afectado. Deveria ele poder cobrar indemnizações a B, ou, melhor ainda, proibir B de vender uma lâmina melhor? A resposta correcta não é que os consumidores seriam prejudicados se fossem forçados a comprar a lâmina inferior, embora isso certamente seja verdade. Em vez disso, a resposta é que ninguém tem o direito de impedir legalmente ou retaliar contra “danos” à sua propriedade, a menos que seja um acto de invasão física. Todos têm o direito de manter a integridade física da sua propriedade intacta; ninguém tem o direito de proteger o valor da sua propriedade, pois esse valor é puramente o reflexo do que as pessoas estão dispostas a pagar por ela. Essa disposição depende unicamente de como as pessoas decidem usar o seu dinheiro. Ninguém pode ter o direito ao dinheiro de outra pessoa, a menos que essa outra pessoa tenha previamente contratado transferi-lo para ele.
“A teoria legal e política tem causado muitos problemas ao falhar em identificar a invasão física como a única acção humana que deveria ser ilegal e que justifica o uso de violência física para combatê-la.”
No direito das obrigações civis, o “dano” é geralmente tratado como invasão física de pessoa ou propriedade. A criminalização da difamação (calúnia e injúria) sempre foi uma anomalia gritante no direito das obrigações. Palavras e opiniões não são invasões físicas. Analogamente à perda de valor da propriedade causada por um produto melhor ou uma alteração na procura dos consumidores, ninguém tem um direito de propriedade sobre a sua “reputação.” A reputação é estritamente uma função das opiniões subjectivas de outras mentes, e elas têm o direito absoluto às suas próprias opiniões, quaisquer que sejam. Portanto, proibir a difamação é, em si, uma invasão grosseira do direito à liberdade de expressão do difamador, que é uma subcategoria do seu direito de propriedade sobre si mesmo.15
Uma agressão ainda mais ampla à liberdade de expressão é o moderno delito inspirado por Warren-Brandeis, de invasão do suposto direito à “privacidade”, que proíbe discursos livres e actos realizados com a própria propriedade que nem sequer são falsos ou “maliciosos.”16
No direito das obrigações, o “dano” é geralmente tratado como invasão física de pessoa ou propriedade, e normalmente exige o pagamento de uma indemnização por “dano emocional” se, e somente se, esse dano for consequência de uma invasão física. Assim, dentro do direito padrão de intrusão — invasão de pessoa ou propriedade — a “agressão” é a invasão efectiva do corpo de outra pessoa, enquanto que o “assédio” é a criação, por uma pessoa, de medo ou apreensão de agressão física em outra.17
Para que o assédio seja ilícito e, portanto, passível de processo jurídico, o direito civil sabiamente exige que a ameaça seja próxima e iminente. Meros insultos e palavras violentas, ameaças vagas futuras, ou a simples posse de uma arma não podem constituir agressão18; deve haver uma acção ostensiva que acompanhe a ameaça para dar origem à apreensão de uma agressão física iminente.19 Ou, de outra forma, deve haver uma ameaça concreta de uma agressão iminente antes que a vítima potencial possa legitimamente usar a força e a violência para se defender.
A invasão ou molestação física não precisa de ser “danosa” ou causar grandes danos para constituir um ilícito civil. Os tribunais têm correctamente decidido que actos como cuspir na cara de alguém ou arrancar o chapéu de alguém são agressões. As palavras do Lorde Chief Justice Holt em 1704 ainda parecem aplicáveis: “O mínimo toque noutra pessoa com raiva é uma agressão.” Embora o dano real possa não ser substancial, num sentido profundo podemos concluir que a pessoa da vítima foi molestada, foi afectada pela agressão física contra ela, e que, portanto, essas acções aparentemente menores tornaram-se ilícitos legais.20
Iniciação de um Ato Ostensivo: Imputabilidade Estricta
Se somente uma invasão física de pessoa ou propriedade constitui um acto ilícito ou delito civil, então torna-se importante delimitar quando é que uma pessoa pode agir como se tal invasão física estivesse prestes a ocorrer. A teoria jurídica libertária sustenta que A não pode usar força contra B, excepto em legítima defesa, isto é, a menos que B esteja a iniciar força contra A. Mas quando é que a força de A contra B é legítima defesa, e quando é que ela própria constitui agressão ilícita contra B? Para responder a esta questão, devemos considerar que tipo de teoria de responsabilidade civil estamos preparados para adoptar.
Suponha, por exemplo, que Smith vê Jones a franzir o sobrolho na sua direcção do outro lado da rua, e que Smith tem uma fobia específica de ser olhado de forma desagradável. Convencido de que Jones está prestes a disparar contra ele, ele então puxa uma arma e dispara contra Jones, acreditando estar a agir em legítima defesa. Jones apresenta uma acusação de agressão e lesão corporal contra Smith. Será que Smith foi um agressor e, portanto, deveria ser responsabilizado? Uma teoria de imputabilidade — a teoria ortodoxa do “homem razoável” ou da “conduta razoável” ou da “negligência” — diz que sim, porque franzir o sobrolho não despertaria a apreensão de um ataque iminente num “homem razoável.” Uma teoria concorrente, outrora defendida e estando agora a ser revivida — a de “imputabilidade estrita” ou “responsabilidade causal objectiva” — concorda que deveria ser claro para um juiz ou júri que Jones não era um agressor iminente. E isso ocorreria independentemente de quão sincero fosse o medo de Smith de ser atacado.
Dois graves defeitos da teoria do “homem razoável” são que a definição de “razoável” é vaga e subjectiva, e que agressores culpados ficam impunes, enquanto que as suas vítimas não são compensadas. Neste caso particular, as duas teorias coincidem, mas em muitos outros casos elas não coincidem. Veja, por exemplo, o caso Courvoisier v. Raymond (1896)21. Nesse caso, o arguido, um lojista, foi ameaçado por uma multidão em motim. Quando um homem, que por acaso era um polícia à paisana, se aproximou do arguido para tentar ajudá-lo, o arguido, confundindo-o com um membro da multidão, disparou contra o polícia. Será que o lojista deveria ser responsabilizado?
O tribunal de primeira instância decidiu o caso correctamente — com base na imputabilidade estrita — e o júri decidiu a favor do polícia. Pois é claro que o arguido cometeu uma agressão ao disparar contra o queixoso. Na teoria da imputabilidade estrita, a questão que interessa é a causalidade: quem iniciou o delito ou o crime? Uma defesa primordial para a acção do arguido seria se o queixoso, de facto, tivesse cometido um assédio, ameaçando iniciar uma agressão iminente contra ele. A questão tradicionalmente então torna-se uma questão factual para os júris decidirem: O polícia à paisana ameaçou de facto agressão contra o lojista? O júri decidiu a favor do polícia.22 No entanto, o tribunal de segunda instância reverteu a decisão do tribunal de primeira instância. Para o tribunal, o lojista agiu como um “homem razoável” ao concluir, embora incorrectamente, que o polícia à paisana estava prestes a atacá-lo.
Quando é que um ato deve ser considerado uma agressão? Franzir o sobrolho dificilmente qualificaria. Mas se Jones tivesse sacado de uma arma e a tivesse apontado na direcção de Smith, embora ainda não tivesse disparado, isso claramente seria uma ameaça de agressão iminente, e Smith poderia legitimamente reagir disparando contra Jones em legítima defesa. (Neste caso, a nossa visão e a teoria do “homem razoável” coincidem novamente). O critério adequado para determinar se o ponto de agressão foi alcançado é este: Jones iniciou um “acto ostensivo” ameaçando uma agressão física? Como Randy Barnett apontou:
«Num caso de haver menos que uma certeza, o único uso justificável de força é aquele utilizado para repelir um acto ostensivo que seja algo mais do que mera preparação, distante no tempo e no local do crime pretendido. Deve ser mais do que “arriscado”; deve ser feito com a intenção específica de cometer um crime e tender directamente, de forma substancial, para sua realização.»23
Princípios semelhantes aplicam-se em casos de danos a terceiros inocentes. Jones agride e ataca Smith; Smith, em legítima defesa, dispara. O tiro desvia-se e atinge acidentalmente Brown, um terceiro inocente. Deve Smith ser responsabilizado? Infelizmente, os tribunais, mantendo-se fiéis à doutrina tradicional do “homem razoável” ou da “negligência”, decidiram que Smith não é responsável se de facto ele estava razoavelmente a disparar em legítima defesa contra Jones.24 Mas, na teoria libertária e na teoria da imputabilidade estrita, Smith agrediu de facto Brown, embora de forma não intencional, e deve pagar por este dano. Assim, Brown tem um processo jurídico legítimo contra Smith. Como Jones coagiu ou atacou Smith, Smith também tem uma acção independente e legítima de agressão ou lesão corporal contra Jones. Presumivelmente, a responsabilidade ou punição de Jones seria consideravelmente mais severa do que a de Smith.
Uma das grandes falhas na abordagem ortodoxa da negligência tem sido focar-se no direito de autodefesa de uma vítima (Smith) ao repelir um ataque, ou em seu erro de boa-fé. Mas a doutrina ortodoxa infelizmente negligencia a outra vítima — o homem que franze o sobrolho do outro lado da rua, o agente à paisana a tentar salvar alguém, o terceiro inocente. O direito de autodefesa do queixoso está a ser gravemente negligenciado. O ponto adequado a ser focado em todos esses casos é: O queixoso teria o direito de disparar contra o arguido em legítima defesa? O homem que franze o sobrolho, o agente à paisana, o terceiro inocente, se tivessem tempo, teriam o direito de disparar contra os arguidos sinceros mas errados, em legítima defesa? Certamente, qualquer que seja a nossa teoria de imputabilidade, a resposta deve ser “sim”; portanto, a preferência deve ir para a teoria da imputabilidade estrita, que se concentra no direito de autodefesa de todos, e não apenas no de um determinado arguido. Pois é claro que, já que esses queixosos tinham o direito de disparar em legítima defesa contra o arguido, então o arguido deve ter sido o agressor ilícito, independentemente de quão sincera ou “razoável” possa ter sido a sua acção.
A partir de várias discussões elucidativas do Professor Epstein, parece evidente que existem três teorias contrastantes de responsabilidade civil entrelaçadas na nossa estrutura jurídica. A mais antiga, a responsabilidade causal objectiva, distribuía a culpa e o ónus com base na causa identificável: Quem disparou contra quem? Quem agrediu quem? Apenas a defesa da pessoa e da propriedade seria uma defesa adequada contra a acusação de uso de força. Esta doutrina foi substituída, durante o século XIX, pela teoria da negligência ou do “homem razoável”, que ilibou muitos arguidos culpados se as suas acções fossem consideradas razoáveis ou não apresentassem negligência excessiva. Na prática, a teoria da negligência inclinou-se excessivamente a favor do arguido e contra o queixoso. Em contraste, a teoria moderna, emergente de forma crescente no século XX, ansiosa por ajudar os queixosos (especialmente se forem pobres), procura formas de encontrar responsabilidade dos arguidos mesmo que não se possa provar causa estrita de invasão física. Se a teoria mais antiga é denominada “responsabilidade causal objectiva”, a teoria moderna poderia ser denominada “responsabilidade presumida”, uma vez que a presunção parece ser contra o arguido, em flagrante violação do princípio de presunção de inocência do arguido no direito penal anglo-saxónico.25
Estendendo a nossa discussão dos crimes contra a pessoa aos crimes contra a propriedade, podemos aplicar a mesma conclusão: Qualquer pessoa tem o direito de defender a sua propriedade contra um acto ostensivo iniciado contra ela. Ele não pode agir com força contra um alegado agressor — um invasor da sua terra ou bens móveis — até que este último inicie o uso da força através de um acto ostensivo.
“Se a teoria mais antiga é denominada ‘responsabilidade causal objectiva’, a teoria moderna poderia ser denominada ‘responsabilidade presumida’, uma vez que a presunção parece ser contra o arguido, em flagrante violação do princípio de presunção de inocência do arguido no direito penal anglo-saxónico.” Quanta força pode uma vítima usar para defender a sua pessoa ou a sua propriedade contra uma invasão? Aqui devemos rejeitar como totalmente inadequada a actual doutrina jurídica que permite o uso apenas de força “razoável”, o que na maioria dos casos tem reduzido o direito da vítima de se defender praticamente a nada.26 Na lei actual, uma vítima só pode usar força máxima, ou “letal”, (a) na sua própria casa, e mesmo assim apenas se estiver sob ataque directo; ou (b) se não houver maneira de recuar quando estiver sob ataque pessoal. Tudo isso é um disparate perigoso. Qualquer ataque pessoal pode acabar por ser mortal; a vítima não tem como saber se o agressor vai parar antes de infligir uma grave lesão. A vítima deve ter o direito de agir com base na suposição de que qualquer ataque é possivelmente letal, e, portanto, de usar força letal em resposta.
Na lei actual, a situação da vítima é ainda pior quando se trata de defender a integridade da sua própria terra ou propriedade móvel. Pois, neste caso, não lhe é permitido sequer usar força letal para defender a sua própria casa, muito menos outras terras ou propriedades. O raciocínio parece ser que, uma vez que a vítima não seria autorizada a matar um ladrão que rouba o seu relógio, ela não deveria, portanto, ser capaz de disparar contra o ladrão no processo de roubo do relógio ou na sua perseguição. Mas punição e defesa de pessoa ou propriedade não são a mesma coisa e devem ser tratadas de forma diferente. Punição é um ato de retaliação após o crime ter sido cometido e o criminoso ter sido apreendido, julgado e condenado. A defesa durante a execução do crime, ou até que a propriedade seja recuperada e o criminoso apreendido, é uma história muito diferente. A vítima deve ter o direito de usar qualquer força, incluindo força letal, para defender ou recuperar a sua propriedade, desde que o crime esteja a ser cometido — ou seja, até que o criminoso seja apreendido e devidamente julgado pelo processo legal. Por outras palavras, ela deveria poder disparar contra ladrões.27
O Fardo Adequado do Risco
Concluímos, então, que ninguém pode usar força para se defender ou para defender a sua propriedade até que haja a iniciação de um acto ostensivo de agressão contra si. Mas esta doutrina não impõe um risco excessivo a todos?
A resposta básica é que a vida é sempre arriscada e incerta e não há como contornar este facto primordial. Qualquer deslocação do fardo do risco de uma pessoa iria simplesmente transferi-lo para outra. Assim, se a nossa doutrina torna mais arriscado esperar até que alguém comece a agredi-lo, ela também torna a vida menos arriscada, porque, como não agressor, há mais garantia de que nenhuma suposta vítima descontrolada se lançará contra si em “legítima defesa”. Não há maneira de a lei reduzir o risco de forma global; por conseguinte, torna-se importante utilizar outro princípio para definir os limites da acção permissível e, assim, alocar os encargos do risco. O axioma libertário de que todas as acções são permissíveis, excepto os actos ostensivos de agressão, fornece uma base de princípio para essa alocação de riscos.
Existem razões mais profundas pelas quais os riscos globais não podem ser reduzidos ou minimizados por acção jurídica explícita. O risco é um conceito subjectivo, único para cada indivíduo; portanto, não pode ser colocado em forma quantitativa mensurável. Assim, o grau quantitativo de risco de uma pessoa não pode ser comparado com o de outra, e não se pode obter uma medida geral de risco social. Como conceito quantitativo, o risco geral ou social é tão sem sentido quanto o conceito do economista de “custos sociais” ou benefícios sociais.
Num mundo libertário, então, cada pessoa assumiria o “fardo adequado de risco”28 que lhe é atribuído como um ser humano livre, responsável por si mesmo. Esse seria o risco envolvido na sua pessoa e propriedade. Claro que os indivíduos poderiam voluntariamente partilhar os seus riscos, como em várias formas de seguro, em que os riscos são partilhados e os benefícios pagos aos perdedores do grupo. Ou os especuladores poderiam voluntariamente assumir os riscos das futuras alterações de preços, que são transferidos por outros nas operações de cobertura de mercado. Ou uma pessoa poderia assumir os riscos de outra mediante pagamento, como no caso de garantias de desempenho e outras formas de caução. O que não seria permitido seria um grupo decidir que outro grupo deveria ser forçado a assumir os riscos do primeiro. Se, por exemplo, um grupo forçasse outro a garantir os rendimentos do primeiro, os riscos aumentariam significativamente para o segundo, em detrimento dos seus direitos individuais. A longo prazo, claro, o sistema inteiro poderia colapsar, pois o segundo grupo só pode fornecer garantias a partir da sua própria produção e rendimentos, que inevitavelmente diminuirão à medida que o fardo do parasitismo social se expande e paralisa a sociedade.
O Fardo Adequado da Prova
Se o fardo adequado de risco de cada pessoa é abster-se de coerção, a menos que um acto evidente contra a sua pessoa ou propriedade tenha sido iniciado contra ela29, então, qual é o fardo adequado da prova contra um arguido?
Primeiro, devem existir padrões racionais de prova para que os princípios libertários possam operar. Suponhamos que o axioma básico do libertarianismo — a não iniciação de força contra pessoa ou propriedade — está consagrado em todos os processos jurídicos. Mas suponhamos que o único critério de prova é que todas as pessoas com menos de 1,80 metros de altura são consideradas culpadas, enquanto todas as pessoas com mais de 1,80 metros são consideradas inocentes. É evidente que esses parâmetros processuais de prova estariam em violação directa e flagrante dos princípios libertários. O mesmo aconteceria com testes de prova em que ocorrências irrelevantes ou aleatórias decidissem o caso, como o julgamento medieval por ordálio, ou o julgamento por folhas de chá ou cartas astrológicas.
De um ponto de vista libertário, então, o procedimento adequado exige uma prova racional da culpa ou inocência das pessoas acusadas de delito ou crime. As provas devem ser conclusivas para demonstrar uma cadeia causal estrita de actos de invasão da pessoa ou propriedade. As provas devem ser construídas para demonstrar que o agressor A, de facto, iniciou um acto físico evidente invadindo a pessoa ou propriedade da vítima B.30
Quem, então, deve arcar com o fardo da prova em qualquer caso específico? E que critério ou parâmetro de prova deve ser satisfeito?
O princípio libertário básico é que todos devem ser livres para fazer o que estão a fazer, a menos que estejam a cometer um acto evidente de agressão contra outra pessoa. Mas e o que dizer de situações em que não está claro se uma pessoa está ou não a cometer agressão? Nesses casos, o único procedimento consonante com os princípios libertários é não fazer nada; abster-se para garantir que a agência jurídica não está a coagir um homem inocente.31 Se houver dúvida, é muito melhor deixar um ato agressivo escapar do que impor coerção e, portanto, cometermos agressão nós mesmos.32 Um princípio fundamental do juramento de Hipócrates, “antes de mais nada, não fazer mal”, deve aplicar-se também às agências legais ou jurídicas.
A presunção em qualquer caso deve ser, então, que todo arguido é inocente até prova em contrário, e o fardo da prova deve recair integralmente sobre o queixoso.33
Se devemos sempre insistir no laissez-faire, então segue-se que um padrão de prova tão fraco como a “preponderância da prova” não deve ser permitido como uma demonstração de culpa. Se o queixoso apresentar provas consideradas, de algum modo, a pender em 51% para a culpa do arguido, isso é pouco melhor que o acaso para justificar o uso da força pelo tribunal contra o arguido. A presunção de inocência, então, deve estabelecer um limiar de prova muito mais elevado.
Actualmente, a “preponderância da prova” é usada para decidir casos civis, enquanto que um parâmetro muito mais rigoroso é utilizado para casos penais, pois as penalidades são muito mais severas. Mas, para os libertários, o teste de culpa não deve estar vinculado ao grau de punição; independentemente da punição, a culpa envolve coerção de algum tipo imposta ao arguido condenado. Os arguidos merecem tanta protecção em casos de responsabilidade civil como em casos penais.34
Alguns juízes, devidamente chocados com a visão dominante de que uma mera preponderância de 51% das provas pode servir para condenar, alteraram o critério para garantir que quem está a julgar o caso — juiz ou júri — esteja convencido da culpa pelo peso da prova. Um critério mais satisfatório, no entanto, é que o julgador deve estar convencido da culpa do arguido por uma “prova clara, forte e convincente”35. Felizmente, este teste tem sido utilizado cada vez mais em casos civis nos últimos anos. Melhor ainda seriam formulações mais rigorosas, mas geralmente rejeitadas, de alguns juízes, como “prova clara, positiva e inequívoca”, e a afirmação de um juiz de que a frase significa que os queixosos “devem … convencer-vos com certeza moral”.36
Mas o melhor parâmetro para qualquer prova de culpa é o comummente utilizado em casos criminais: Prova “para além de qualquer dúvida razoável”. Obviamente, persistirá alguma dúvida ao avaliar as acções das pessoas, de modo que um padrão como “para além de uma centelha de dúvida” seria irrealista. Mas a dúvida deve ser pequena o suficiente para que qualquer “homem razoável” esteja convencido da culpa do arguido. A condenação de culpa “para além de uma dúvida razoável” parece ser o padrão mais consonante com os princípios libertários.
O notável advogado constitucional libertário do século XIX, Lysander Spooner, era um ardente defensor do padrão de prova “para além de dúvida razoável” para todas as culpas:
«As vidas, liberdades e propriedades dos homens são demasiado valiosas para eles, e as presunções naturais são demasiado fortes em seu favor, para justificar a destruição delas por seus semelhantes com base numa mera ponderação de probabilidades, ou por qualquer motivo inferior à certeza para além de qualquer dúvida razoável.»37
Embora o critério de dúvida razoável geralmente não tenha sido usado em casos civis, alguns precedentes existem para esta proposta aparentemente ousada e chocante. Assim, na reivindicação de uma oferta oral de um presente num processo de inventário, o tribunal decidiu que o presente alegado “deve ser provado por um testemunho forte, claro e conclusivo que convença o tribunal para além de dúvida razoável quanto à sua veracidade”. E numa ação para rever um contracto escrito, o tribunal decidiu que o erro deve ser “estabelecido por provas tão fortes e conclusivas que o coloquem para além de dúvida razoável”.38
Causalidade Estricta
O que o queixoso tem de provar, para além de qualquer dúvida razoável, é uma ligação causal estrita entre o arguido e a sua agressão contra o queixoso. Ele deve provar, em resumo, que A efectivamente “causou” uma invasão da pessoa ou da propriedade de B.
Num brilhante ensaio sobre a causalidade no direito, o Professor Epstein demonstrou que a sua própria teoria da responsabilidade civil estrita está intimamente ligada a uma visão directa, rigorosa e de senso comum da “causa”. A proposição causal numa visão de responsabilidade estrita no direito assume a forma de “A atingiu B”, “A ameaçou B” ou “A forçou B a atingir C”. A teoria ortodoxa da responsabilidade civil, em contraste, ao enfatizar a responsabilidade por “negligência” em vez de por acção de agressão directa, está enredada em teorias vagas e complexas de “causa”, distantes da simplicidade do senso comum do tipo “A atingiu B”. A teoria da negligência postula uma noção vaga e “filosófica” de “causa de facto” que, em última análise, culpa toda a gente e ninguém, passado, presente e futuro, por cada acto, para depois restringir a causa de uma forma vaga e insatisfatória à “causa próxima” no caso específico. O resultado, como Epstein aponta de forma incisiva, é a destruição do conceito de causa e a autorização concedida aos tribunais para decidir os casos de forma arbitrária, de acordo com as suas próprias visões de política social.39
Para estabelecer culpa e responsabilidade, a causalidade estrita da agressão que conduz ao dano deve satisfazer o teste rígido de prova para além de qualquer dúvida razoável. Pressentimentos, conjecturas, plausibilidade ou mesmo mera probabilidade não são suficientes. Nos últimos anos, a correlação estatística tem sido comummente utilizada, mas esta não pode estabelecer uma relação de causalidade, certamente não para uma prova legal rigorosa de culpa ou dano. Assim, se as taxas de cancro do pulmão são mais elevadas entre os fumadores de cigarros do que entre os não-fumadores, isto não estabelece por si só prova de causalidade. O simples facto de que muitos fumadores nunca desenvolvem cancro do pulmão e que muitos doentes com cancro do pulmão nunca fumaram indica que existem outros factores complexos em jogo. Assim, embora a correlação seja sugestiva, está longe de ser suficiente para estabelecer uma prova médica ou científica; muito menos pode estabelecer qualquer tipo de culpa legal (por exemplo, se uma mulher que desenvolveu cancro do pulmão processasse o marido por fumar e, portanto, ter causado lesões aos seus pulmões).40
Milton Katz destaca, num caso em que o queixoso processou por danos causados pela poluição do ar:
«Suponha que o queixoso alega danos graves: por enfisema, talvez, ou por cancro do pulmão, bronquite ou outra lesão igualmente grave nos seus pulmões. Ele enfrentaria um problema de prova de causalidade…. Os diagnósticos médicos parecem ter estabelecido que o dióxido de enxofre e outros poluentes do ar desempenham frequentemente um papel significativo na etiologia do enfisema e de outras formas de lesão pulmonar. Mas estes não são, de modo algum, os únicos possíveis factores causais. O enfisema e o cancro do pulmão são doenças complexas que podem ter origem numa variedade de causas, como, por exemplo, o consumo de tabaco, para citar um exemplo familiar. Mesmo que o queixoso conseguisse provar que a conduta dos arguidos poluiu o ar da sua casa, não se seguiria necessariamente que a poluição causou a sua doença. O queixoso ainda teria de enfrentar o encargo de provar a etiologia do dano aos seus pulmões.»41
Assim, deve existir uma ligação causal estrita entre um agressor e uma vítima, e essa ligação deve ser provada para além de qualquer dúvida razoável. Tem de ser uma causalidade no sentido de prova rigorosa do conceito de senso comum do tipo “A atingiu B”, não uma mera probabilidade ou correlação estatística.
Responsabilidade Exclusiva do Agressor
De acordo com a teoria da responsabilidade estrita, pode presumir-se que se “A atingiu B”, então A é o agressor e, por conseguinte, apenas A é responsável perante B. No entanto, surgiu e triunfou uma doutrina legal, aprovada até pelo Professor Epstein, na qual, por vezes, C, inocente e não sendo o agressor, também é considerado responsável. Esta é a notória teoria da “responsabilidade vicária”.
A responsabilidade vicária desenvolveu-se no direito medieval, no qual o senhor era responsável pelos actos ilícitos cometidos pelos seus servos, súbditos, escravos e esposa. À medida que o individualismo e o capitalismo se desenvolveram, o common law mudou, e a responsabilidade vicária desapareceu nos séculos XVI e XVII, quando se concluiu, de forma sensata, que “o senhor não deveria ser responsável pelos atos ilícitos do seu servo, a menos que tivesse ordenado o ato em questão”.42
Desde os séculos XVIII e XIX, contudo, a responsabilidade vicária dos senhores ou empregadores voltou em força. Desde que o ato ilícito seja cometido pelo empregado no âmbito da promoção, ainda que parcial, dos interesses do empregador, o empregador também é responsável. A única excepção é quando o empregado age de forma totalmente desconexa dos negócios do empregador, num “desvio pessoal”. Prosser escreve:
«O facto de o acto do empregado ser expressamente proibido pelo empregador, ou de ser realizado de uma maneira que este tenha proibido, não é, geralmente, conclusivo, e não impede, por si só, que o acto esteja dentro do âmbito do emprego [e, portanto, torne o empregador responsável]. Um empregador não pode escapar à responsabilidade apenas ordenando ao seu empregado que aja com cuidado…. Assim, as instruções dadas a um vendedor para nunca carregar uma arma enquanto a exibe não impedirão a responsabilidade quando o empregado o faz, numa tentativa de vender a arma…. [O] empregador não pode escapar à responsabilidade, independentemente de quão específicas, detalhadas e enfáticas tenham sido as suas ordens em sentido contrário. Isto ficou claro desde os principais casos ingleses (Limpus v. London General Omnibus Co., [1862] 1H. & C. 526, 158 Eng. Rep. 993) nos quais uma empresa de autocarros foi considerada responsável, apesar de ordens claras dadas ao seu motorista para não obstruir outros veículos.»43
Ainda mais notável é o facto de o empregador ser agora considerado responsável até por actos ilícitos intencionais cometidos pelo empregado sem o consentimento do empregador:
«Em geral, o empregador é considerado responsável por qualquer acto ilícito intencional cometido pelo empregado, desde que o objectivo, ainda que mal orientado, seja em parte ou totalmente promover os negócios do empregador.
Assim, será considerado responsável quando o seu motorista de autocarro atira um autocarro concorrente para uma vala, ou agride um intruso para o expulsar do autocarro, ou quando um vendedor faz declarações fraudulentas sobre os produtos que está a vender.»44
Prosser critica duramente o raciocínio tortuoso pelos quais os tribunais tentaram justificar um conceito legal tão contrário ao libertarianismo, ao individualismo e ao capitalismo, adequando-se apenas a uma sociedade pré-capitalista.
«Uma infinidade de razões muito engenhosas foram oferecidas para a responsabilidade vicária de um empregador: ele tem um “controlo” mais ou menos fictício sobre o comportamento de um empregado; ele “colocou tudo em movimento” e, portanto, é responsável pelo que aconteceu; ele seleccionou o empregado e confiou nele, e por isso deve pagar pelos seus erros, em vez de um estranho inocente que não teve oportunidade de se proteger; é uma grande concessão que qualquer homem seja autorizado a empregar outro, e deve haver uma responsabilidade correspondente como o preço a pagar por isso…. A maioria dos tribunais pouco ou nada fez para explicar o resultado, refugiando-se em frases ocas, como… a fórmula repetida ad nauseam de “respondeat superior“, que em si significa apenas “remeter para o superior”.»45
De facto, como Prosser indica, a única justificação real para a responsabilidade vicária é que os empregadores geralmente têm mais dinheiro do que os empregados, tornando mais conveniente (para quem não é o empregador) imputar a responsabilidade à classe mais rica. Nas palavras cínicas de Thomas Baty: “Na verdade, a razão para a responsabilidade dos empregadores é que as indemnizações são tiradas de um bolso fundo.”46
Em oposição, temos a crítica lúcida do juiz Holmes: “Assumo que o senso comum é contrário a fazer um homem pagar pelo erro de outro, a menos que ele tenha realmente causado o erro…. Portanto, assumo que o senso comum é contrário à teoria fundamental da agência.”47
Esperar-se-ia que, numa teoria de responsabilidade estrita por causalidade, a responsabilidade vicária fosse descartada sem cerimónia. É, portanto, surpreendente ver o Professor Epstein violar o espírito da sua própria teoria. Ele parece ter duas defesas para a doutrina do “respondeat superior” e da responsabilidade vicária. Uma é o argumento curioso de que “assim como o empregador obtém e se beneficia dos ganhos das actividades dos seus trabalhadores, ele também deve ser obrigado a arcar com as perdas dessas actividades.”48 Esta afirmação não compreende a natureza da troca voluntária: Tanto o empregador quanto o empregado beneficiam do contracto de trabalho. Além disso, o empregador arca com as “perdas” no caso da sua produção (e, portanto, os seus recursos) se mostrarem mal alocados. Ou, suponha que o empregador comete um erro e contrata uma pessoa incompetente, que recebe $10.000. O empregador pode demitir esse trabalhador, mas ele, e só ele, arca com a perda de $10.000. Assim, não parece haver razão legítima para forçar o empregador a arcar com o custo adicional do comportamento tortuoso do seu empregado.
“Na realidade, uma ‘corporação’ não age; apenas indivíduos agem, e cada um deve ser responsável por suas próprias acções e somente por elas.”
O segundo argumento de Epstein está contido na frase: “A corporação X prejudicou-me pelo que o seu empregado fez no curso do seu emprego.” Aqui Epstein comete o erro do realismo conceptual, ao supor que uma “corporação” realmente existe e que cometeu um acto de agressão. Na realidade, uma “corporação” não age; apenas indivíduos agem, e cada um deve ser responsável por suas próprias acções e somente por elas. Epstein pode ridicularizar a posição de Holmes como baseada na “premissa do século XIX de que a conduta individual era a base da responsabilidade individual”, mas Holmes, no entanto, estava certo.49
Uma Teoria da Propriedade Justa: Apropriação Original
Existem dois princípios fundamentais sobre os quais se baseia a teoria libertária da propriedade justa:
- Todos têm direito absoluto de propriedade sobre o seu próprio corpo; e
- Todos têm direito absoluto de propriedade sobre recursos naturais previamente não possuídos (terra) que eles primeiro ocupam e colocam em uso (na frase de Locke, “Misturando o seu trabalho com a terra”).
O princípio de “primeira posse ao primeiro usuário” para recursos naturais também é popularmente chamado de “princípio da apropriação original”. Se cada homem possui a terra com a qual “mistura seu trabalho”, então ele possui o produto dessa mistura, e tem o direito de trocar títulos de propriedade com outros produtores similares. Isso estabelece o direito de contracto livre no sentido de transferência de títulos de propriedade. Também estabelece o direito de doar tais títulos, seja como presente ou herança.
A maioria de nós pensa na apropriação original de recursos não utilizados no sentido antiquado de limpar um pedaço de terra não possuída e cultivar o solo. Existem, no entanto, formas mais sofisticadas e modernas de apropriação original, que devem estabelecer um direito de propriedade. Suponha, por exemplo, que um aeroporto é estabelecido com uma grande quantidade de terra vazia ao redor. O aeroporto emite um nível de ruído de, digamos, X decibéis, com as ondas sonoras viajando sobre a terra vazia. Um empreendimento habitacional então compra terras perto do aeroporto. Algum tempo depois, os proprietários processam o aeroporto por excesso de ruído, interferindo com o uso e usufruto tranquilo das casas.
O ruído excessivo pode ser considerado uma forma de agressão, mas, neste caso, o aeroporto já apropriou X decibéis de ruído. Pela sua reivindicação anterior, o aeroporto agora “possui o direito” de emitir X decibéis de ruído na área circundante. Em termos legais, podemos então dizer que o aeroporto, através da apropriação original, ganhou um direito de servidão para criar X decibéis de ruído. Esta servidão apropriada é um exemplo do antigo conceito legal de “prescrição”, em que uma certa actividade ganha um direito de propriedade prescritivo para a pessoa que realiza a acção.
Por outro lado, se o aeroporto começar a aumentar os níveis de ruído, então os proprietários poderiam processar ou impedir a agressão sonora do aeroporto pelos decibéis extra, que não haviam sido apropriados. Claro, se um novo aeroporto for construído e começar a emitir ruídos de X decibéis sobre as casas circundantes existentes, o aeroporto torna-se totalmente responsável pela invasão de ruído.
Deve ficar claro que a mesma teoria deve aplicar-se à poluição do ar. Se A está a causar poluição no ar de B, e isso pode ser provado além de qualquer dúvida razoável, então isso é agressão e deve ser impedido e a compensação paga de acordo com a responsabilidade estrita, a menos que A estivesse lá primeiro e já estivesse a poluir o ar antes do desenvolvimento da propriedade de B. Por exemplo, se uma fábrica de propriedade de A poluísse originalmente uma propriedade não utilizada, até uma certa quantidade de poluente X, então pode-se dizer que A apropriou uma servidão de poluição de certo grau e tipo.
Dada uma servidão prescritiva, os tribunais geralmente têm-se saído bem ao decidir os seus limites. Em Kerlin v. Southern Telephone and Telegraph Co. (1941), uma utilidade pública manteve uma servidão por prescrição de postes e fios de telefone sobre a terra de outra pessoa (chamada de “propriedade subserviente” na lei). A utilidade queria estender dois fios adicionais, e a propriedade subserviente contestou o seu direito de fazê-lo. O tribunal decidiu correctamente que a utilidade tinha o direito porque não havia nenhuma mudança proposta nos “limites exteriores do espaço utilizado pelo proprietário da servidão.” Por outro lado, um caso inglês antigo decidiu que uma servidão para mover carrinhos não poderia ser usada posteriormente para o propósito de conduzir gado.50
Infelizmente, os tribunais não têm honrado o conceito de apropriação original em casos de servidões de ruído ou poluição. O caso clássico é Sturges v. Bridgman (1879), na Inglaterra. O queixoso, um médico, adquiriu um terreno em 1865; na propriedade contígua, o arguido, um farmacêutico, utilizava um pilão e almofariz, o que causava vibrações no terreno do médico. Contudo, não houve qualquer problema até ao momento em que o médico construiu um consultório, dez anos depois. Ele, então, processou o farmacêutico, argumentando que o seu trabalho constituía uma perturbação de sossego. O arguido alegou corretamente que as vibrações já ocorriam antes da construção do consultório, que então não constituíam uma perturbação, e que, portanto, ele tinha um direito prescritivo de continuar a operar o seu negócio. No entanto, a alegação do arguido foi rejeitada.
Consequentemente, assistimos a injustiças como mudanças compulsórias no carácter de um negócio e à ausência de uma prescrição pelo uso original. Prosser observa que “o carácter de uma área pode mudar com o passar do tempo, e a indústria estabelecida no campo pode tornar-se um incómodo ou ser obrigada a modificar as suas actividades quando surgem residências ao seu redor. Não adquirirá qualquer direito prescritivo.”51 Uma lei justa diria aos residentes que chegam mais tarde que eles sabiam o que estavam a aceitar e que devem adaptar-se ao ambiente industrial, e não o contrário.
Em alguns casos, no entanto, os tribunais têm sustentado, ou pelo menos considerado, que o queixoso, ao “aproximar-se do incómodo”, entrou voluntariamente numa situação preexistente, e que, portanto, o arguido não é culpado. Prosser afirma que, “na ausência de um direito prescritivo, o arguido não pode condenar as instalações ao seu redor a suportar o incómodo”, mas o nosso ponto aqui é que o proprietário original de uma servidão de ruído ou de poluição adquiriu de facto esse direito em casos de “aproximação ao incómodo.”52
A opinião dominante nos tribunais, como no caso Ensign v. Walls (1948), descarta ou minimiza a “aproximação ao incómodo” e rejeita a ideia de uma servidão possuída por uso. Mas uma opinião minoritária apoiou fortemente este ponto de vista, como no caso de Nova Iorque Bove v. Donner-Hanna Coke Co. (1932). A queixosa havia-se mudado para uma área industrial, onde o arguido operava um forno de coque do outro lado da rua. Quando a queixosa tentou proibir a operação do forno de coque, o tribunal rejeitou o pedido com as seguintes palavras exemplares:
«Com toda a sujidade, fumo e gás que necessariamente emanam das chaminés das fábricas, comboios e barcos, e com pleno conhecimento de que esta região era especialmente destinada a fins industriais, e não residenciais, e que as fábricas aumentariam no futuro, a queixosa escolheu esta localidade como o local para o seu futuro lar. Ela mudou-se voluntariamente para esta zona, ciente de que a atmosfera seria constantemente contaminada por sujidade, gás e odores desagradáveis, e de que não poderia esperar encontrar nesta localidade o ar puro de uma zona exclusivamente residencial. Evidentemente, viu certas vantagens em viver neste centro congestionado. Este não é um caso de uma indústria, com o seu ruído e sujidade, a invadir uma área residencial tranquila. É o oposto. Aqui, uma residência foi construída numa área naturalmente destinada a fins industriais e já utilizada para esses fins. A queixosa dificilmente poderá ser ouvida a queixar-se, a esta altura, de que a sua paz e conforto foram perturbados por uma situação que já existia, pelo menos em certa medida, no momento em que comprou a sua propriedade.»53
Incómodos Visíveis e Invisíveis
Uma invasão da propriedade de outra pessoa pode ser considerada uma invasão ou um incómodo, e há uma considerável confusão acerca da fronteira entre ambas. Para os nossos propósitos, a distinção clássica entre as duas é importante. A invasão ocorre quando “há uma intrusão física que interfere directamente com a posse da propriedade, que geralmente deve ser realizada por uma massa tangível.”54 Por outro lado, “o contacto por partículas minúsculas ou intangíveis, como pó industrial, fumos nocivos ou raios de luz, geralmente tem sido considerado insuficiente para constituir uma intrusão invasora, com base no argumento de que não há interferência com a posse, ou que a intrusão não é directa, ou que a invasão não se qualifica como intrusão devido à sua natureza imponderável ou intangível.”55
Essas invasões mais intangíveis qualificam-se como incómodos privados e podem ser processadas como tal. Um incómodo pode ser, como Prosser aponta:
«Uma interferência com a condição física da própria propriedade, como por vibrações ou explosões que danificam uma casa, a destruição de colheitas, inundações, elevação do lençol freático ou a poluição de um rio ou de uma fonte de água subterrânea. Pode consistir numa perturbação do conforto ou da conveniência do ocupante, como por odores desagradáveis, fumo ou pó ou gás, ruídos altos, luz excessiva ou temperaturas altas, ou até chamadas telefónicas repetitivas.»56
Prosser resume a diferença entre invasão e incómodo:
«A invasão é uma violação do interesse do queixoso na posse exclusiva do seu terreno, enquanto que o incómodo é uma interferência com o seu uso e usufruto da mesma. A diferença é como … derrubar uma árvore para dentro da sua propriedade e mantê-lo acordado à noite com o ruído de um moinho de laminação.»57
Mas o que significa, precisamente, a diferença entre “posse exclusiva” e “interferência com o uso”? Além disso, a diferença prática entre uma acção de responsabilidade civil por invasão e por incómodo é que a invasão é ilegal per se, enquanto que o incómodo, para ser accionável, deve causar danos à vítima para além do mero facto da invasão em si. Qual é, se existir, a justificação para tratar a invasão e o incómodo de forma tão distinta? E será que a antiga distinção entre invasão tangível e invisível está realmente agora obsoleta, como sustenta Prosser, “à luz dos testes científicos modernos?”58 Ou, como afirma uma nota da Columbia Law Review:
«O tribunal federal… sugeriu que historicamente a relutância dos tribunais em considerar que invasões por gases e partículas minúsculas eram invasões resultava da exigência de que, para se considerar uma invasão, um tribunal deveria ser capaz de ver alguma intrusão física por matéria tangível; depois concluiu que essa dificuldade já não existe, pois os tribunais podem hoje confiar em métodos científicos de detecção, que podem fazer medições quantitativas precisas de gases e sólidos minúsculos, para determinar a existência de uma entrada física de matéria tangível.»59
A distinção entre visível e invisível, contudo, não é completamente eliminada pelos modernos métodos de detecção científica. Tomemos duas situações opostas. Primeiro, uma invasão directa: A conduz o seu carro para o jardim de B ou coloca um objecto pesado no terreno de B. Porque é que isso é uma invasão e é ilegal per se? Em parte, nas palavras de um antigo caso inglês, “a lei presume algum dano; se nada mais, o pisoteio de relva ou vegetação.”60 Mas não é apenas o pisoteio; uma invasão tangível na propriedade de B interfere com o seu uso exclusivo da propriedade, nem que seja ocupando pés quadrados (ou cúbicos) tangíveis. Se A caminha ou coloca um objecto no terreno de B, então B não pode usar o espaço que A ou o seu objecto ocuparam. Uma invasão por uma massa tangível é uma interferência per se com a propriedade de outrem e, portanto, é ilegal.
Em contraste, considere o caso das ondas de rádio, que atravessam as fronteiras de outras pessoas de forma invisível e insensível ao proprietário da propriedade. Todos somos bombardeados por ondas de rádio que atravessam as nossas propriedades sem o nosso conhecimento ou consentimento. Será que elas são invasivas e, por isso, deveriam ser ilegais, agora que temos dispositivos científicos capazes de detectar tais ondas? Deveríamos então proibir toda a transmissão de rádio? E se não, porquê?
A razão para não o fazermos é que essas passagens de fronteiras não interferem com a posse exclusiva, uso ou gozo da propriedade de ninguém. São invisíveis, não podem ser detectadas pelos sentidos humanos e não causam danos. Não são, portanto, invasões de propriedade, pelo que é necessário refinar o conceito de invasão para que signifique não apenas a passagem de fronteiras, mas passagens de fronteiras que, de alguma forma, interfiram com o uso ou gozo da propriedade por parte do proprietário. O que conta é se os sentidos do proprietário da propriedade são afectados pela interferência ou não.
Mas suponha-se que se descobre mais tarde que as ondas de rádio são prejudiciais, que causam cancro ou alguma outra doença. Nesse caso, estariam a interferir com o uso da propriedade na pessoa do proprietário e deveriam ser ilegais e impedidas, desde que, obviamente, essa prova de dano e a ligação causal entre os invasores específicos e as vítimas específicas sejam estabelecidas para além de qualquer dúvida razoável.
Assim, vemos que a distinção apropriada entre intrusão e incómodo, entre responsabilidade objectiva per se e responsabilidade objectiva apenas com prova de dano, não se baseia realmente na “posse exclusiva” em oposição ao “uso e gozo”. A distinção correcta está entre a invasão visível e tangível ou “sensível”, que interfere com a posse e uso da propriedade, e as passagens de fronteira invisíveis e “insensíveis” que não interferem e, portanto, só devem ser proibidas com prova de dano.
O mesmo princípio aplica-se à radiação de baixo nível, que praticamente todas as pessoas e todos os objetos no mundo emitem e, portanto, todos recebem. Proibir, ou impedir, a radiação de baixo nível, como alguns dos nossos fanáticos ambientalistas parecem defender, equivaleria a interditar toda a raça humana e o mundo que nos rodeia. A radiação de baixo nível, precisamente porque é indetectável pelos sentidos humanos, não interfere com o uso ou posse da propriedade de ninguém e, portanto, só pode ser combatida com prova causal estrita de dano além de qualquer dúvida razoável.
A teoria das servidões de usucapião discutida anteriormente não exigiria nenhuma restrição às transmissões de rádio ou à radiação de baixo nível das pessoas. No caso das transmissões de rádio, a propriedade de Smith de um terreno e de todas as suas acessões não lhe confere o direito de possuir todas as ondas de rádio que atravessam o seu terreno, pois Smith não usucapiou ou transmitiu nas frequências de rádio. Assim, Jones, que transmite numa onda de, digamos, 1200 kilohertz, adquire por usucapião a propriedade dessa onda até onde ela viajar, mesmo que cruze a propriedade de Smith. Se Smith tentar interferir ou perturbar de alguma forma as transmissões de Jones, será culpado de interferir na propriedade justa de Jones.61
Só se for provado que as transmissões de rádio são prejudiciais à pessoa de Smith, além de qualquer dúvida razoável, é que as actividades de Jones deverão ser sujeitas a uma injunção. O mesmo tipo de argumento, evidentemente, aplica-se às transmissões de radiação.
Entre a intrusão tangível e as ondas de rádio ou a radiação de baixo nível, existe uma gama de incómodos intermédios. Como devem eles ser tratados?
A poluição do ar, constituída por odores nocivos, fumo ou outras partículas visíveis, constitui definitivamente uma interferência invasiva. Estas partículas podem ser vistas, cheiradas ou tocadas e, portanto, devem constituir uma invasão per se, excepto no caso de servidões de poluição do ar usucapiadas. (Os danos além da simples invasão, evidentemente, exigiriam responsabilidade adicional.) A poluição do ar, no entanto, composta por gases ou partículas que são invisíveis ou indetectáveis pelos sentidos, não deve constituir uma agressão per se, pois sendo insensíveis, não interferem com a posse ou uso do proprietário. Assumem o estatuto de ondas de rádio invisíveis ou radiação, a menos que seja provado que são prejudiciais, e até que essa prova e a ligação causal entre o agressor e a vítima possam ser estabelecidas além de qualquer dúvida razoável.62
O ruído excessivo é certamente um delito de incómodo; interfere com o gozo da propriedade de uma pessoa, incluindo a sua saúde. No entanto, ninguém sustentaria que qualquer pessoa tem o direito de viver como se estivesse num quarto à prova de som; apenas o ruído excessivo, por mais vago que seja o conceito, pode ser passível de processo jurídico.
Em certo sentido, a própria vida usucapia uma servidão de ruído. Cada área tem certos ruídos, e as pessoas que se mudam para uma área devem antecipar um nível razoável de ruído. Como Terry Yamada admite com resignação:
«Um residente urbano deve aceitar as consequências de uma situação de ambiente ruidoso. Os tribunais geralmente consideram que as pessoas que vivem ou trabalham em comunidades densamente povoadas devem, necessariamente, suportar os incómodos e desconfortos habituais dos negócios e comércios localizados na vizinhança onde vivem ou trabalham; tais incómodos e desconfortos, no entanto, não devem ser superiores aos razoavelmente esperados na comunidade e devem estar de acordo com a licitude do comércio ou negócio.63
Em resumo, aquele que deseja um quarto à prova de som deve pagar pela sua instalação.»
A regra geral actual dos tribunais civis em processos de incómodo por ruído é pertinente:
«Uma fonte de ruído não é, per se, um incómodo, mas apenas se torna incómoda em determinadas condições. Essas condições dependem de uma consideração da área circundante, da hora do dia ou da noite em que as actividades geradoras de ruído ocorrem e da forma como a actividade é conduzida. Um incómodo privado é compensável apenas quando é considerado irracional ou excessivo e quando provoca desconforto físico real ou lesão a uma pessoa de sensibilidade comum, de forma a interferir com o uso e gozo da sua propriedade.»64
Posse da Unidade Tecnológica: Terra e Ar
Na nossa discussão sobre a apropriação original, não enfatizámos o problema da dimensão da área a ser ocupada. Se A utiliza uma certa quantidade de um recurso, qual deve ser a extensão desse recurso a ser convertida em sua propriedade? A nossa resposta é que ele possui a unidade tecnológica do recurso. A dimensão dessa unidade depende do tipo de bem ou recurso em questão e deve ser determinada por juízes, jurados ou árbitros especializados no recurso ou indústria em questão. Se o recurso X pertence a A, então A deve possuir o suficiente desse recurso para incluir os acessórios necessários. Por exemplo, na determinação jurídica da posse de frequências de rádio na década de 1920, a extensão da propriedade dependia da unidade tecnológica da onda de rádio — a largura no espectro electromagnético para que outra onda não interferisse com o sinal, e a sua extensão espacial. A posse da frequência foi então determinada pela largura, extensão e localização.
A história da colonização de terras nos Estados Unidos reflecte os desafios, muitas vezes mal-sucedidos, com a dimensão da unidade de ocupação. Assim, a provisão de ocupação originária na lei federal de terras de 1861 previa uma unidade de 160 acres, cuja desmatação e uso, ao longo de um certo período, transfeririam a propriedade para o ocupante. Infelizmente, em poucos anos, quando se iniciou a colonização das pradarias secas, 160 acres revelaram-se insuficientes para qualquer uso viável da terra (em geral, criação de gado e pastagem). Como resultado, pouca terra no Oeste tornou-se propriedade privada durante várias décadas. O uso excessivo que resultou causou a destruição da cobertura de pastagem ocidental e de grande parte das florestas.
Com a importância da análise da unidade tecnológica em mente, examinemos a posse do espaço aéreo. Pode haver propriedade privada do ar e, em caso afirmativo, em que extensão?
O princípio do common law é que todo proprietário de terra possui todo o espaço aéreo acima dele, indefinidamente para cima, até aos céus, e para baixo, até ao centro da terra. No famoso dito de Lord Coke: cujus est solum ejus est usque ad coelum; isto é, quem possui o solo possui para cima até ao céu e, por analogia, para baixo até Hades. Embora seja uma regra antiga, foi, obviamente, formulada antes da invenção dos aviões. Uma aplicação literal da regra proibiria, na prática, toda a aviação, bem como foguetes e satélites.65
Mas será que o problema prático da aviação é o único defeito da regra ad coelum? Usando o princípio da apropriação original, a regra ad coelum nunca fez sentido, e já deveria ter sido abandonada na história jurídica. Se alguém ocupa originariamente e usa o solo, em que sentido é que ele também está a utilizar todo o volume acima dele até ao céu? Claramente, não está.
A regra ad coelum, infelizmente, persistiu no Restatement of Torts (1939), adotada pela Lei Uniforme Estatal para a Aeronáutica e promulgada em 22 estados durante as décadas de 1930 e 1940. Esta variante continuou a reconhecer uma posse ilimitada do espaço aéreo ascendente, mas acrescentou um privilégio público superior para invadir esse direito. Aviadores e proprietários de satélites ainda teriam o ónus de provar que possuíam este privilégio um quanto vago de invadir a propriedade privada no espaço aéreo. Felizmente, a Lei Uniforme foi retirada pelos Comissários de Leis Estaduais Uniformes em 1943 e está agora em declínio.
Uma segunda solução, adoptada pelo Tribunal Federal do Nono Circuito em 1936, aboliu completamente a propriedade privada no espaço aéreo e até permitiu que aviões voassem perto da superfície terrestre. Apenas uma interferência real com o uso actual da terra constituiria um acto ilícito.66 A teoria de incómodo mais popular simplesmente proíbe a interferência com o uso da terra, mas é insatisfatória, pois elimina qualquer discussão sobre a posse do espaço aéreo.
A melhor teoria jurídica é a da “zona”, que afirma que apenas a parte inferior do espaço aéreo acima de um terreno é de propriedade do dono; esta zona é o limite da “posse efectiva” do proprietário. Como define Prosser, “posse efectiva” é “a quantidade de espaço acima do proprietário que é essencial para o uso e gozo completo do terreno.”67 A altura do espaço aéreo de posse irá variar conforme os factos de cada caso e, portanto, de acordo com a “unidade tecnológica”. Assim, Prosser escreve:
«Esta foi a regra aplicada no caso inicial de Smith v. New England Aircraft Co., onde voos a uma altura de cem pés foram considerados invasão, pois o terreno era usado para o cultivo de árvores que atingiam essa altura. Alguns outros casos adoptaram a mesma visão.»
A altura da zona de posse deve variar de acordo com os factos de cada caso.68
Por outro lado, a teoria de incómodo deve ser acrescentada à zona estrita de posse para casos em que o excesso de ruído de aeronaves prejudica pessoas ou actividades numa área adjacente, não directamente abaixo do avião. A princípio, os tribunais federais decidiram que apenas voos baixos sobre as terras poderiam constituir um acto ilícito contra proprietários privados, mas o caso de ruído excessivo Thornburg v. Port of Portland (1962) corrigiu essa visão. O tribunal justificou-se em Thornburg:
«Se aceitarmos… a validade das proposições de que um ruído pode ser um incómodo; que um incómodo pode dar origem a uma servidão; e que um ruído vindo directamente de cima das terras de alguém pode configurar uma apropriação se for suficientemente persistente e agravado, então, logicamente, o mesmo tipo e grau de interferência com o uso e gozo das terras de alguém pode também constituir uma apropriação mesmo que o vector de ruído venha de outra direcção que não a perpendicular.»69
Embora não haja razão para que o conceito de posse do espaço aéreo não possa ser utilizado para combater ilícitos de poluição do ar, raramente foi aplicado dessa forma. Mesmo quando o princípio ad coelum estava em vigor, foi utilizado contra sobrevoos de aviões, mas não para combater a poluição do ar, que era inconsistente e frequentemente considerada um recurso comum. A lei de incómodo tradicionalmente poderia ser utilizada contra a poluição do ar, mas até recentemente estava limitada por “balanço de equidades”, regras de negligência contra a responsabilidade objectiva, e pela declaração de que a poluição do ar “razoável” não era passível de processo jurídico. No caso clássico de Holman v. Athens Empire Laundry Co. (1919), o Supremo Tribunal da Geórgia declarou: “A poluição do ar, na medida em que seja razoavelmente necessária para o gozo da vida e indispensável para o progresso da sociedade, não é passível de processo.”70 Felizmente, essa atitude está a tornar-se obsoleta.
Embora a poluição do ar deva ser um acto ilícito sujeito a responsabilidade objectiva, deve-se enfatizar que declarações como “todos têm direito a ar limpo” são desprovidas de sentido. Existem poluentes atmosféricos constantemente originados por processos naturais, e o ar de cada um é aquele que ocorre na sua propriedade. A erupção do Monte Santa Helena deveria ter alertado a todos sobre os processos naturais de poluição sempre presentes. A regra tradicional e correcta dos tribunais do common law é que nenhum proprietário é responsável pelos danos causados por forças naturais originadas na sua propriedade. Como escreve Prosser, um proprietário de terra
«não tem dever afirmativo de remediar condições de origem puramente natural na sua propriedade, ainda que possam ser altamente perigosas ou inconvenientes para os seus vizinhos… Assim, tem sido decidido que o proprietário não é responsável pela existência de um pântano fétido, pela queda de rochas, pela disseminação de ervas daninhas ou cardos que crescem no seu terreno, pelos danos causados por animais nativos ou pelo fluxo normal e natural de água superficial.»71
Em suma, ninguém tem direito a ar limpo, mas tem o direito de não ter o seu ar invadido por poluentes gerados por um agressor.
Poluição Atmosférica: Direito e Regulação
Estabelecemos que cada pessoa pode agir conforme deseja, desde que não inicie um acto evidente de agressão contra a pessoa ou propriedade de outrem. Qualquer um que inicie tal agressão deve ser responsabilizado estritamente por danos ao lesado, mesmo que a acção seja “razoável” ou acidental. Finalmente, essa agressão pode assumir a forma de poluição do ar de outra pessoa, incluindo o espaço aéreo efectivamente detido por ela, lesão contra a sua pessoa, ou incómodo que interfira na posse ou no uso do seu terreno.
Esse é o caso, desde que:
“Em suma, ninguém tem direito a ar limpo, mas tem o direito de não ter o seu ar invadido por poluentes gerados por um agressor.”
- o poluidor não tenha previamente estabelecido uma servidão de ocupação;
- enquanto poluentes visíveis ou odores nauseantes são per se agressões, no caso de poluentes invisíveis e insensíveis, o queixoso deve provar dano real;
- o ónus da prova de tal agressão recai sobre o queixoso;
- o queixoso deve provar uma causalidade estrita das acções do arguido para a sua vitimização;
- o queixoso deve provar essa causalidade e agressão além de qualquer dúvida razoável; e
- não há responsabilidade vicária, mas apenas para aqueles que efectivamente cometem o acto.
Com esses princípios em mente, consideremos o estado actual da lei sobre poluição atmosférica. Mesmo a mudança actual de negligência e acções “razoáveis” para responsabilidade estrita não satisfez de forma alguma os pleiteantes crónicos em favor dos queixosos ambientais. Como afirma Paul Downing: “Actualmente, uma parte que foi danificada pela poluição atmosférica deve provar em tribunal que o emissor A lhe causou dano. Deve estabelecer que foi danificado e que o emissor A o fez, e não o emissor B. Esta é quase sempre uma tarefa impossível.”72 Se assim for, devemos aceitar sem reclamações. Afinal, a prova de causalidade é um princípio básico do direito civilizado, já para não falar do direito libertário.
De forma semelhante, James Krier concede que mesmo que o requisito de provar intenção, conduta não razoável ou negligência seja substituído pela responsabilidade estrita, persiste o problema de provar o nexo causal entre o acto ilícito e o dano. Krier queixa-se de que “a causa e o efeito ainda devem ser estabelecidos.”73 Ele deseja uma “reafectação sistemática do ónus da prova”, ou seja, transferir o ónus do queixoso, onde claramente deveria estar. Estarão agora os arguidos considerados culpados até que provem a sua inocência?
A prevalência de múltiplas fontes de emissões poluentes é um problema. Como podemos responsabilizar o emissor A se existem outros emissores ou se há fontes naturais de emissão? Seja qual for a resposta, ela não deve vir à custa do abandono de normas adequadas de prova, nem conferindo privilégios injustos aos queixosos e encargos especiais aos arguidos.74
Problemas semelhantes de prova enfrentam os queixosos em casos de radiação nuclear. Como escreve Jeffrey Bodie, “Em geral, os tribunais parecem exigir um grau elevado de causalidade em casos de radiação, o que frequentemente é impossível de satisfazer, dado o conhecimento médico limitado nesta área.”75 Mas, como vimos acima, é precisamente esse “conhecimento limitado” que torna imperativo proteger os arguidos de normas de prova laxas.
Existem, claro, inúmeros estatutos e regulamentos que criam ilicitude, além dos delitos tratados pelos tribunais do common law.76 Não tratámos de leis como o Clean Air Act de 1970 ou de regulamentos por uma razão simples: Nenhum deles é permissível de acordo com a teoria jurídica libertária. Na teoria libertária, só é permitido agir coercivamente contra alguém se este for um agressor comprovado, e essa agressão deve ser provada em tribunal (ou em arbitragem) além de qualquer dúvida razoável. Qualquer estatuto ou regulamento administrativo torna automaticamente ilícitas acções que não são iniciações evidentes de crimes ou delitos segundo a teoria libertária. Todo estatuto ou regra administrativa é, portanto, ilegítimo e é, ele próprio, uma interferência criminosa e invasiva contra os direitos de propriedade de não-criminosos.
Suponhamos, por exemplo, que A constrói um edifício, vende-o a B, e este desmorona prontamente. A deve ser responsabilizado pela lesão à pessoa e propriedade de B, e essa responsabilidade deve ser provada em tribunal, que pode então fazer cumprir as medidas adequadas de restituição e punição. Mas, se a legislação impôs códigos de construção e inspecções em nome da “segurança”, construtores inocentes (ou seja, aqueles cujos edifícios não desmoronaram) estão sujeitos a regras desnecessárias e frequentemente dispendiosas, sem que o governo tenha a necessidade de provar crime ou dano. Eles não cometeram nenhum delito ou crime, mas estão sujeitos a normas, frequentemente apenas remotamente relacionadas com segurança, impostas antecipadamente por órgãos governamentais tirânicos. Contudo, um construtor que cumpre os códigos de inspecção e segurança administrativa e depois tem um edifício que desmorona, muitas vezes é absolvido pelos tribunais. Afinal, ele não cumpriu todas as regras de segurança do governo e não recebeu assim o aval prévio das autoridades?77
O único sistema civil ou penal consonante com os princípios jurídicos libertários é o de ter juízes (e/ou júris e árbitros) que julgam acusações de delitos feitas por queixosos contra arguidos.
É necessário sublinhar que, na teoria jurídica libertária, apenas a vítima (ou os seus herdeiros e cessionários) pode legitimamente requerer um processo jurídico contra transgressores alegados contra a sua pessoa ou propriedade. Procuradores ou outros agentes do governo não deveriam ter permissão para apresentar acusações contra a vontade da vítima, em nome de “crimes” contra entidades duvidosas ou inexistentes, como “sociedade” ou “Estado.” Se, por exemplo, a vítima de uma agressão ou furto é pacifista e se recusa a processar o criminoso, ninguém mais deveria ter o direito de o fazer contra sua vontade. Pois, assim como um credor tem o direito de “perdoar” uma dívida não paga voluntariamente, também uma vítima, seja por motivos pacifistas ou porque o criminoso pagou para evitar o processo78 ou por qualquer outra razão, tem o direito de “perdoar” o crime, de forma que o crime seja, assim, anulado.
“É necessário sublinhar que, na teoria jurídica libertária, apenas a vítima (ou os seus herdeiros e cessionários) pode legitimamente requerer um processo jurídico contra transgressores alegados contra a sua pessoa ou propriedade.”
Críticos das emissões de automóveis ficarão perturbados com a ausência de regulação governamental, em vista das dificuldades de provar o dano às vítimas por automóveis individuais.79 Mas, como sublinhámos, as considerações utilitaristas devem sempre ser subordinadas aos requisitos da justiça. Aqueles que se preocupam com as emissões de automóveis estão numa situação ainda pior nos tribunais de direito civil, pois o princípio libertário também requer um retorno à agora muito desprezada regra da privity do século XIX.
A regra da privity, que se aplica sobretudo no campo da responsabilidade civil por produtos defeituosos, estabelece que o comprador de um produto defeituoso só pode processar a pessoa com quem celebrou um contracto.80 Por exemplo, se um consumidor compra um relógio a um retalhista e o relógio não funciona, ele apenas pode processar o retalhista, uma vez que foi este quem transferiu a propriedade do relógio em troca do dinheiro do consumidor. O consumidor, contrariamente ao entendimento de algumas decisões modernas, não deveria poder processar o fabricante, com quem não teve qualquer relação contratual. Foi o retalhista quem, ao vender o produto, deu uma garantia implícita de que o produto não estaria defeituoso. De forma similar, o retalhista só deveria poder processar o grossista pelo produto defeituoso, o grossista o intermediário, e, por fim, o fabricante.81
De modo análogo, a regra da privity deveria ser aplicada às emissões de automóveis. O poluidor culpado deveria ser cada proprietário individual do automóvel e não o fabricante, que não é responsável pelo acto ilícito em si nem pelas emissões propriamente ditas. (Por exemplo, o fabricante pode não ter conhecimento de que o automóvel seria utilizado numa área com alta densidade populacional, ou que seria usado apenas para contemplação estética pelo proprietário.) Assim como nos casos de responsabilidade por produtos, a única justificação real para processar o fabricante em vez do retalhista é a conveniência e o facto de o fabricante, presumivelmente, possuir mais recursos financeiros do que o retalhista.
Embora a situação para os queixosos em casos de emissões de automóveis possa parecer sem esperança no âmbito do direito libertário, existe uma solução parcial. Numa sociedade libertária, as estradas seriam propriedade privada. Isso significa que as emissões dos automóveis emanariam da estrada do proprietário da mesma para os pulmões ou o espaço aéreo de outros cidadãos, tornando o proprietário da estrada responsável pelos danos causados pela poluição aos habitantes circundantes. Processar o proprietário da estrada seria muito mais viável do que processar cada proprietário individual de automóvel pela quantidade minúscula de poluentes pelos quais seria responsável. Para se proteger desses processos jurídicos, ou mesmo de possíveis injunções, o proprietário da estrada teria então um incentivo económico para emitir regulamentos antipoluição para todos os automóveis que pretendessem utilizar a sua estrada. Mais uma vez, como em outros casos da “tragédia dos comuns”, a propriedade privada do recurso pode resolver muitos problemas de “externalidades”.82
Colapso do Direito Penal no Direito Civil
Se não existe uma entidade como a sociedade ou o Estado, ou se ninguém além da vítima deveria ter legitimidade para agir como acusador ou queixoso, isto significa que toda a estrutura do direito penal deve ser eliminada, restando-nos apenas o direito civil, onde a vítima, de facto, apresenta queixa contra o agressor.83 Contudo, não há razão para que partes do direito actualmente pertencentes ao domínio do direito penal não possam ser integradas num direito civil ampliado. Por exemplo, a restituição à vítima é actualmente considerada domínio do direito civil, enquanto que a punição pertence ao direito penal.84 No entanto, indemnizações punitivas por actos ilícitos intencionais (por oposição a acidentes) já são geralmente concedidas no âmbito do direito civil. É, portanto, concebível que penas mais severas, como prisão, trabalho forçado para compensar a vítima, ou desterro, possam também ser integradas no direito civil.85
Um argumento convincente contra qualquer proposta de colapso do direito penal no direito civil é o raciocínio contra a concessão de indemnizações punitivas em casos civis, com o argumento de que estas são “fixadas apenas ao capricho do júri e impostas sem as habituais garantias do processo penal, como a prova de culpa para além de dúvida razoável [e] o privilégio contra a auto-incriminação.”86 Mas, como foi argumentado anteriormente, parâmetros como a prova para além de dúvida razoável deveriam também ser aplicados aos casos de direito civil.87
O Professor Epstein, ao tentar preservar um domínio separado para o direito penal face a uma proposta de colapso no direito civil, baseia grande parte do seu argumento na lei das tentativas. No direito penal, uma tentativa de crime que, por alguma razão, falha e não resulta em qualquer dano ou violação dos direitos da vítima, ainda assim constitui crime e pode ser processada. E, no entanto, acusa Epstein, tal tentativa de crime não constituiria uma violação de direitos e, portanto, não poderia ser considerada um acto ilícito nem processada ao abrigo do direito civil.88
A refutação de Randy Barnett, no entanto, é conclusiva. Barnett aponta, em primeiro lugar, que a maioria das tentativas frustradas de violação resultam, ainda assim, numa violação “bem-sucedida”, embora menor, da pessoa ou propriedade, podendo, portanto, ser processadas ao abrigo do direito civil. “Por exemplo, uma tentativa de homicídio é geralmente uma agressão agravada, uma tentativa de roubo à mão armada é geralmente uma agressão, uma tentativa de furto de automóvel ou de roubo é geralmente um acto de intrusão.”89 Em segundo lugar, mesmo que a tentativa de crime não criasse uma violação de propriedade propriamente dita, se a tentativa de agressão ou homicídio fosse conhecida pela vítima, o medo criado na vítima seria processável como agressão. Assim, o criminoso tentante (ou agente ilícito) não escaparia ileso.
Portanto, a única tentativa de violação que não poderia ser processada ao abrigo do direito civil seria aquela que ninguém jamais soubesse. Mas, se ninguém sabe, não pode ser processada ao abrigo de nenhuma lei.90
Além disso, como conclui Barnett, potenciais vítimas não seriam impedidas, no âmbito do direito libertário, de se defenderem contra tentativas de crime. Como Barnett afirma, é justificável que a vítima ou os seus agentes repilam um acto ostensivo iniciado contra ela, e isso é exactamente o que uma tentativa de crime representa.91
Actos Ilícitos Conjuntos e Vítimas Conjuntas
Até agora, ao discutir violações de pessoa ou propriedade, limitámo-nos a agressores individuais e vítimas individuais, do tipo “A agrediu B” ou “causou danos a B”. Mas os casos reais de poluição atmosférica frequentemente envolvem múltiplos agressores e múltiplas vítimas. Com base em que princípios podem eles ser processados ou condenados?
Quando mais de um agressor contribuiu para um acto ilícito, é geralmente mais conveniente para os queixosos juntar os arguidos num único processo jurídico (joinder). Contudo, a conveniência não deve sobrepor-se ao princípio ou aos direitos, e, na nossa opinião, a regra original do common law sobre joinder era correcta: os arguidos só podem ser obrigados a ser juntados quando todas as partes agiram em conjunto numa acção ilícita colectiva.
Nos casos de actos ilícitos verdadeiramente conjuntos, também faz sentido que cada um dos agressores conjuntos seja igualmente responsável pelo montante total dos danos. Caso contrário, cada infractor poderia diluir antecipadamente a sua própria responsabilidade ao adicionar mais cúmplices à sua empreitada conjunta. Assim, uma vez que a acção de todos os agressores foi realizada em conjunto, o acto ilícito foi efectivamente conjunto, de forma que
«“todos reunidos para realizar um acto ilícito, sendo de uma só parte, o acto de um é o acto da mesma parte presente.” Cada um, portanto, seria responsável pelo dano total causado, mesmo que um tivesse agredido o queixoso, outro o tivesse aprisionado, e um terceiro lhe tivesse roubado os botões de prata. Todos poderiam ser incluídos como arguidos no mesmo processo jurídico.»92
Infelizmente, por motivos de conveniência, a regra do joinder foi enfraquecida, e os tribunais, em muitos casos, têm permitido aos queixosos obrigar a junção de arguidos, mesmo em casos em que os actos ilícitos foram cometidos separadamente e não em conjunto.93 A confusão entre o joinder para actos ilícitos conjuntos e separados levou muitos tribunais a aplicar a regra de responsabilidade total ou “inteira” a cada agressor. No caso de actos ilícitos separados que afectam uma vítima, isso faz pouco sentido. Aqui, a regra deveria ser sempre a que tradicionalmente se aplica nos casos de incómodo (nuisance), em que os tribunais repartem os danos de acordo com as acções causais separadas atribuídas a cada arguido.
Os casos de poluição do ar, em geral, são casos de actos ilícitos separados que afectam vítimas; por conseguinte, não deveria haver junção obrigatória, e os danos deveriam ser repartidos em conformidade com os factores causais separados envolvidos. Como Prosser escreve:
«Os casos de incómodo, em particular, têm tendido a resultar em repartição dos danos, principalmente porque a interferência no uso da propriedade pelo queixoso tem tendido a ser divisível em termos de quantidade, percentagem ou grau. Assim, arguidos que, de forma independente, poluem o mesmo rio ou inundam a propriedade do queixoso a partir de fontes separadas são responsáveis apenas pelos danos que individualmente causaram, e o mesmo se aplica aos incómodos resultantes de ruído ou poluição do ar.»94
No entanto, como as lesões são múltiplas e separadas, cabe então aos queixosos demonstrar uma base racional e comprovável para repartir os danos entre os vários arguidos e factores causais. Se esta regra for devidamente e estritamente respeitada, e a prova for além de dúvida razoável, os queixosos em casos de poluição do ar, em geral, conseguirão obter muito pouco. Para contrariar isto, advogados ambientalistas têm proposto um enfraquecimento da própria base do nosso sistema jurídico, transferindo o ónus da prova para a repartição detalhada dos danos dos queixosos para os vários arguidos.95
Assim, a junção obrigatória de arguidos só pode proceder de acordo com a regra original do common law quando os arguidos alegadamente cometeram um acto ilícito verdadeiramente conjunto, numa acção concertada. Caso contrário, os arguidos podem insistir em processos jurídicos separados.
E quanto à junção de vários queixosos contra um ou mais arguidos? Quando pode ocorrer? Este problema é altamente relevante nos casos de poluição do ar, onde geralmente existem muitos queixosos contra um ou mais arguidos.
No início do common law, as regras eram rigorosas ao limitar a junção permitida de queixosos a casos em que todas as causas de acção tinham de afectar todas as partes envolvidas. Isto foi agora liberalizado para permitir a acção conjunta por parte dos queixosos sempre que a acção conjunta decorra da mesma transacção ou de uma série de transacções, e em que haja pelo menos uma questão de direito ou de facto comum a todos os queixosos. Esta liberalização parece legítima quanto à junção voluntária de queixosos.96
Embora a junção permissiva de queixosos neste sentido seja perfeitamente legítima, o mesmo não se aplica aos processos jurídicos colectivos (class action lawsuits), em que o resultado do processo é vinculativo mesmo para os membros da alegada classe de vítimas que não participaram nele. Parece o cúmulo da presunção que queixosos se juntem num processo comum e promovam um processo colectivo em que outros alegados lesados que nunca ouviram falar do processo ou que de alguma forma não consentiram nele sejam vinculados pelo resultado. Os únicos queixosos que deveriam ser afectados por um processo são aqueles que voluntariamente se juntam. Assim, não seria admissível que 50 residentes de Los Angeles apresentassem um processo de poluição em nome da classe de “todos os cidadãos de Los Angeles” sem o seu conhecimento ou consentimento expresso. Pelo princípio de que apenas a vítima, os seus herdeiros ou cessionários podem intentar um processo ou usar força em seu nome, os processos colectivos vinculativos para quem quer que não seja queixoso voluntário são inadmissíveis.97
Infelizmente, enquanto a Regra Federal de Processo Civil de 1938, n.º 23, previa pelo menos um tipo de processo colectivo não vinculativo, o “processo colectivo espúrio”, as regras revistas de 1966 tornaram todos os processos colectivos vinculativos para toda a classe, ou, mais precisamente, para todos os membros da classe que não solicitarem especificamente a sua exclusão. Num passo sem precedentes, a acção voluntária é agora presumida se não for tomada nenhuma acção. Os residentes de Los Angeles, que podem nem sequer saber do processo em questão, são obrigados a tomar medidas para se excluírem do processo; caso contrário, a decisão será vinculativa para eles.98 Além disso, a maioria dos estados seguiu as novas regras federais para os processos colectivos.
Como no caso da junção voluntária, a processo colectivo pós-1966 deve envolver questões de direito ou de facto comuns a toda a classe. Felizmente, os tribunais colocaram limites adicionais ao uso de processos colectivos. Na maioria dos casos, todos os membros identificáveis da classe devem receber uma notificação individual do processo, dando-lhes pelo menos a oportunidade de se excluírem do processo; além disso, a classe deve ser claramente identificável, determinável e gerível. Segundo esta regra, os tribunais federais geralmente não permitiriam que “todos os residentes da cidade de Los Angeles” fossem parte de um processo colectivo.99 Assim, um processo supostamente em nome de todos os residentes do Condado de Los Angeles (mais de sete milhões de pessoas) para impedir 293 empresas de poluir a atmosfera foi rejeitado pelo tribunal “por ser ingovernável devido ao número de partes (queixosos e arguidos), à diversidade dos seus interesses e à multiplicidade de questões envolvidas.”100
Outra limitação sensata imposta à maioria dos processos colectivos é que os interesses comuns da classe no processo devem prevalecer sobre os interesses individuais separados. Assim, um processo colectivo não será permitido quando as questões individuais separadas forem “numerosas e substanciais” e, portanto, as questões comuns não predominarem. No caso City of San Jose v. Superior Court (1974), o tribunal rejeitou um processo colectivo levado a cabo por proprietários de terrenos próximos a um aeroporto, que reclamavam de danos às suas propriedades causados por ruído, poluição, tráfego aéreo, entre outros. Embora o aeroporto afectasse cada um dos proprietários, o tribunal decidiu, de forma adequada, que “o direito de cada proprietário ser indemnizado pelos danos à sua propriedade envolvia demasiados factos individuais (como, por exemplo, proximidade das rotas de voo, tipo de propriedade, valor, uso, entre outros)” para permitir um processo colectivo.101
Dessa forma, os processos colectivos não devem ser permitidos, excepto quando todos os queixosos aderirem activa e voluntariamente, e quando os interesses comuns predominarem sobre os interesses individuais e separados.102
Como têm sido, então, aplicadas as regras recentes sobre processos colectivos à questão da poluição atmosférica? Krier observa com desapontamento que, embora a Federal Rule 23 de 1966 seja de facto mais liberal do que a sua antecessora ao permitir processos colectivos, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos praticamente anulou o seu impacto ao decidir que os membros de uma classe só podem agregar reivindicações individuais nos tribunais federais quando partilham um interesse comum indivisível.103 Segundo Krier, essa limitação consistente exclui a maioria dos processos colectivos em casos de poluição atmosférica. Ele acrescenta que, embora essa restrição não se aplique às acções federadas, estas são frequentemente ainda menos viáveis do que os processos colectivos federais sob as novas regras. Krier lamenta, com um tom involuntariamente humorístico, que alguns processos colectivos não atraem qualquer queixoso.104
Contudo, o principal problema dos processos colectivos para os queixosos, concede Krier, são as regras de gestão e determinabilidade em processos com um grande número de queixosos na classe, citando, em particular, o caso Diamond v. General Motors. Mas enquanto Krier atribui o problema unicamente à falta de competência e recursos dos juízes para equilibrar os vários interesses, ele não percebe o problema ainda maior da falta de identificabilidade e da ausência de provas claras de culpa e causalidade entre o arguido e o queixoso.
Conclusão
Tentámos apresentar um conjunto de princípios libertários para avaliar e reconstruir a lei. Concluímos que todos devem poder fazer o que quiserem, salvo se cometerem um acto evidente de agressão contra a pessoa ou propriedade de outrem. Apenas este acto deve ser ilegal e só deve ser objecto de processo jurídico nos tribunais, ao abrigo do direito de responsabilidade civil (tort law), com a vítima ou os seus herdeiros e cessionários a promoverem o caso contra o alegado agressor. Por conseguinte, nenhuma lei ou regulamento administrativo que crie acções ilegais deve ser permitido. E como qualquer acusação em nome da “sociedade” ou do “Estado” é inadmissível, o direito penal seria integrado num direito civil reconstituído, incorporando punição e parte das normas sobre tentativas.
O infractor ou criminoso deve ser estritamente responsável pela sua agressão, sem que seja permitida qualquer evasão de responsabilidade com base em teorias de “negligência” ou “razoabilidade”. Contudo, a responsabilidade deve ser provada com base numa causalidade estrita das acções do arguido contra o queixoso, e deve ser provada pelo queixoso para além de qualquer dúvida razoável.
O agressor, e apenas o agressor, deve ser responsabilizado, e não o empregador de um agressor, desde que, claro, o acto ilícito não tenha sido cometido por ordem do empregador. O sistema actual de responsabilidade vicária do empregador é um resquício das relações pré-capitalistas de senhor/servo e constitui, essencialmente, um método injusto de encontrar fontes mais abastadas para explorar.
A Política da Liberdade
Estes princípios devem aplicar-se a todas as formas de responsabilidade civil, incluindo a poluição atmosférica. A poluição atmosférica é uma perturbação privada causada pela propriedade de uma pessoa que invade a de outra, sendo uma invasão do espaço aéreo inerente à propriedade e, muitas vezes, da própria pessoa do proprietário. Um conceito básico da teoria libertária dos direitos de propriedade é o da apropriação original, em que o primeiro ocupante e utilizador de um recurso o torna na sua propriedade. Assim, quando um “poluidor” foi o primeiro a poluir e precedeu o proprietário do terreno ao emitir poluição atmosférica ou ruído excessivo sobre um terreno vazio, ele estabeleceu um direito de servidão de poluição ou ruído excessivo. Tal servidão torna-se o seu direito de propriedade legítimo, e não o do proprietário adjacente que veio depois. A poluição atmosférica, portanto, não é uma infracção, mas apenas o direito inelutável do poluidor, desde que ele esteja simplesmente a agir no âmbito de uma servidão adquirida. Mas onde não existe servidão e a poluição atmosférica é evidente aos sentidos, esta constitui uma infracção per se, porque interfere com a posse e o uso do ar de outrem. A travessia de limites — por exemplo, por ondas de rádio ou radiação de baixo nível — não pode ser considerada uma agressão porque não interfere com o uso ou o usufruto da propriedade ou da pessoa pelo proprietário. Só se tal travessia de limites causar dano comprovável — de acordo com os princípios de causalidade estrita e para além de qualquer dúvida razoável — pode ser considerada uma infracção e sujeita a responsabilidade e medida cautelar.
Uma infracção conjunta, em que os arguidos são obrigados a defender-se conjuntamente, só deve ser aplicada se todos tiverem agido em conjunto. Quando as suas acções forem separadas, os processos devem também ser separados, e a responsabilidade repartida de forma individual. Os queixosos só devem poder juntar os seus processos contra um arguido se os seus casos tiverem um elemento comum que predomine sobre os interesses individuais e separados. Os processos colectivos são inadmissíveis para além de uma adesão voluntária dos queixosos, pois presumem agir em nome de e vincular membros da classe que não consentiram em participar no processo.
Por fim, devemos renunciar à prática comum de escritores sobre direito ambiental de actuarem como defensores especiais dos queixosos em casos de poluição atmosférica, lamentando sempre que os queixosos não são autorizados a prevalecer sobre os arguidos. O factor predominante no direito relativo à poluição atmosférica, como em outras áreas do direito, deve ser os princípios libertários e de direitos de propriedade, em vez da conveniência ou interesses especiais de um dos lados em litígio.
Referências:
- 1 Os princípios jurídicos que estabelecem certas acções proibidas como delitos civis ou crimes devem ser distinguidos de estatutos ou decretos administrativos que impõem exigências positivas, tais como “deverás pagar X valor de impostos” ou “deverás apresentar-te para alistamento em tal data.” Em certo sentido, é claro, todas as ordens podem ser redigidas de forma a parecerem negativas, como “não deves recusar pagar X valor de impostos” ou “não deves desobedecer à ordem de apresentação para alistamento.” Porque é que tal reformulação seria inadequada será discutido abaixo. Ver abaixo também a discussão sobre “delitos” em comparação com “crimes.”
- 2 Ronald Dworkin, no entanto, salientou que mesmo a análise jurídica positiva envolve necessariamente questões morais e padrões morais. Dworkin, Taking Rights Seriously (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1977), caps. 2, 3, 12, 13. Ver também Charles Fried, “The Law of Change: The Cunning of Reason in Moral and Legal History,” Journal of Legal Studies (Março de 1980): 340.
- 3 Os adeptos de Austin, obviamente, também introduzem sub-repticiamente um axioma normativo na sua teoria positiva: A lei deve ser aquilo que o rei diz que é. Este axioma não é analisado nem fundamentado em qualquer conjunto de princípios éticos.
- 4 Novamente, estas variantes modernas e democráticas da teoria jurídica positiva introduzem sub-repticiamente o axioma normativo não fundamentado de que os estatutos devem ser promulgados conforme a vontade dos legisladores ou eleitores.
- 5 Ver o artigo que inaugura esta análise de Ronald H. Coase, “The Problem of Social Cost,” Journal of Law and Economics 3 (Outubro de 1960): 10. Para uma crítica, ver Walter Block, “Coase and Demsetz on Private Property Rights,” Journal of Libertarian Studies (Primavera de 1977): 111-15.
- 6 Actualmente, é ilegal negociar a dispensa de uma injunção com a parte lesada. Nesse caso, naturalmente, a internalização de custos segundo Coase-Demsetz colapsa completamente. Mas mesmo com a negociação permitida, provavelmente não funcionaria. Além disso, pode haver agricultores tão apegados aos seus pomares que nenhum preço os compensaria, caso em que a injunção seria absoluta, e nenhuma negociação segundo Coase-Demsetz poderia anulá-la. Sobre a permissão de negociação para remover injunções, ver Barton H. Thompson, Jr., “Injunction Negotiations: An Economic, Moral and Legal Analysis,” Stanford Law Review 27 (Julho de 1975): 1563-95.
- 7 Sobre a inadmissibilidade do conceito de custo social e a sua aplicação aqui, ver Mario J. Rizzo, “Uncertainty, Subjectivity, and the Economic Analysis of Law,” e Murray N. Rothbard, “Comment: The Myth of Efficiency,” em Time, Uncertainty, and Disequilibrium: Exploration of Austrian Themes, Mario Rizzo, ed. (Lexington, Mass.: Lexington Books, 1979), pp. 71-95. Ver também John B. Egger, “Comment: Efficiency is not a Substitute for Ethics,” em ibid., pp. 117-25.
- 8 A eficiência social é um conceito sem sentido porque a eficiência refere-se à eficácia com que se empregam meios para atingir certos fins. Mas, com mais de um indivíduo, quem determina os fins para os quais os meios devem ser empregados? Os fins de diferentes indivíduos inevitavelmente conflictam, tornando absurda qualquer noção de eficiência social somada ou ponderada. Para mais sobre este tema, ver Rothbard, “Myth of Efficiency,” p. 90.
- 9 Charles Fried observou que a eficiência é, inevitavelmente, um critério moral tentado, ainda que não examinado, errado e incoerente. Fried, “The Law of Change,” p. 341.
- 10 O conceito de riqueza social sofre das mesmas debilidades que Coase-Demsetz, bem como de outros problemas próprios. Para uma crítica devastadora de Posner, ver Ronald M. Dworkin, “Is Wealth a Value?” e Richard A. Epstein, “The Static Conception of the Common Law,” em Journal of Legal Studies (Março de 1980): 191-226, 253-76. Ver também Anthony J. Kronman, “Wealth Maximization as a Normative Principle”; Mario J. Rizzo, “Law Amid Flux: The Economics of Negligence and Strict Liability in Tort”; Fried, “The Law of Change”; e Gerald P. O’Driscoll, Jr., “Justice, Efficiency, and the Economic Analysis of Law: A Comment on Fried,” em ibid.: 227-42, 291-318, 335-54, 355-66.
- 11 Deve ser feita a qualificação de propriedade como “justa.” Suponha, por exemplo, que A rouba o relógio de B e que, vários meses depois, B captura A e recupera o relógio. Caso A processe B por furto do “seu” relógio, seria uma defesa irrefutável de B que o relógio não era realmente nem justamente de A, pois tinha sido roubado anteriormente de B.
- 12 Para mais sobre esta visão libertária ou “neo-lockeana,” ver Murray N. Rothbard, “Justice and Property Rights,” em Property in a Humane Economy, Samuel Blumenfeld, ed. (LaSalle, Ill.: Open Court, 1974), pp. 101-22. Em certo sentido, Percy B. Lehning está certo ao comentar que, em vez de serem dois axiomas independentes, o princípio da apropriação original realmente decorre do único axioma da auto-propriedade. Lehning, “Property Rights, Justice and the Welfare State,” Acta Politica 15 (Roterdão, 1980): 323, 352.
- 13 Assim, John Stuart Mill defende a liberdade completa de acção individual “sem impedimento dos nossos semelhantes, desde que o que façamos não os prejudique.” Mill, “On Liberty,” em Utilitarianism, Liberty, and Representative Government (Nova Iorque: E.P. Dutton, 1944), p. 175. Hayek, após definir correctamente liberdade como ausência de coerção, infelizmente não define coerção como invasão física, permitindo assim uma ampla gama de interferências governamentais nos direitos de propriedade. Ver Murray N. Rothbard, “F.A. Hayek and the Concept of Coercion,” Ordo 31 (Estugarda, 1980): 43-50.
- 14 Robert Nozick parece justificar a ilegalidade de todas as trocas voluntárias que ele denomina “não produtivas,” essencialmente definidas como situações em que A estaria melhor sem a existência de B. Para uma crítica a Nozick neste ponto, ver Murray N. Rothbard, “Robert Nozick and the Immaculate Conception of the State,” Journal of Libertarian Studies (Inverno de 1977): 52ff.
- 15 Podemos, portanto, louvar a posição “absolutista” do juiz Black ao defender a eliminação da lei da difamação. A diferença é que Black advogava uma posição absolutista relativamente à Primeira Emenda porque esta faz parte da Constituição, enquanto que nós a defendemos porque a Primeira Emenda incorpora uma parte fundamental da visão libertária. Sobre o enfraquecimento significativo da lei da difamação nas últimas duas décadas, ver Richard A. Epstein, Charles O. Gregory, e Harry Kalven, Jr., Cases and Materials on Torts, 3ª ed. (Boston: Little, Brown, 1977), pp. 977-1129 (doravante citado como Epstein, Cases on Torts).
- 16 Não deve haver reivindicação de um direito à privacidade que não possa ser subsumida sob a protecção de direitos de propriedade ou de defesa contra quebra de contracto. Sobre a privacidade, ver ibid., pp. 1131-90.
- 17 “Apreensão” de uma agressão iminente é um termo mais apropriado do que “medo,” pois enfatiza a consciência de uma agressão iminente e da ação que causa essa consciência pelo agressor, ao invés do estado psicológico subjetivo da vítima. Assim, Dean Prosser: “Apreensão não é o mesmo que medo, e o queixoso não é privado do seu direito apenas porque é demasiado corajoso para se assustar ou intimidar.” William L. Prosser, Handbook of the Law of Torts, 4ª ed. (St. Paul, Minn.: West Publishing, 1971), p. 39.
- 18 É lamentável que, a partir de cerca de 1930, os tribunais tenham cedido à criação de um novo delito, “causação intencional de perturbação mental por conduta extrema e ultrajante.” É claro que a liberdade de expressão e a liberdade pessoal deveriam permitir insultos verbais, por mais ultrajantes que possam ser; além disso, não há critério coerente para demarcar abuso verbal comum do tipo “ultrajante.” A declaração do juiz Magruder é altamente sensata: “Contra grande parte das fricções e irritações e choques de temperamentos incidentes à participação na vida comunitária, uma certa resistência emocional é uma protecção melhor do que a lei jamais poderia ser.” Magruder, “Mental and Emotional Disturbance in the Law of Torts,” Harvard Law Review 40 (1936): 1033, 1035; citado em Prosser, Law of Torts, p. 51. Ver também ibid., pp. 49-62; Epstein, Cases on Torts, pp. 933-52. Em geral, devemos olhar com grande desconfiança para qualquer criação de novos delitos que não sejam meras aplicações de princípios antigos de responsabilidade civil a novas tecnologias. Não há nada de novo ou moderno no abuso verbal.
Parece que tanto o delito de infligir dano quanto o novo delito de invasão de privacidade são exemplos da tendência do século XX de diluir os direitos do arguido em favor de uma protecção excessiva do queixoso — uma discriminação sistemática que ocorreu mais no âmbito da responsabilidade civil do que no âmbito penal. Ver Epstein, “Static Conception of the Common Law,” pp. 253-75. Ver também abaixo. - 19 Prosser, Law of Torts, pp. 39-40.
- 20 Daí a sabedoria da decisão do tribunal no caso South Brilliant Coal Co. v. Williams: “Se Gibbs deu um pontapé no queixoso com o pé, não se pode afirmar, em termos legais, que não houve lesão física. Em sentido jurídico, foi uma lesão física, ainda que possa não ter causado sofrimento físico e que a sensação resultante disso possa ter durado apenas por um momento.” South Brilliant Coal Co. v. Williams, 206 Ala. 637, 638 (1921). Em Prosser, Law of Torts, p. 36. Ver também Epstein, Cases on Torts, pp. 903ff.
- 21 Courvoisier v. Raymond, 23 Colo. 113, 47 Pac. 284 (1896), e discussão por Epstein em Cases on Torts, pp. 21-23; e em Richard A. Epstein, “A Theory of Strict Liability,” Journal of Legal Studies 2 (Janeiro 1973): 173.
- 22 Como Epstein coloca: “Sob uma teoria de responsabilidade objectiva, a formulação do caso prima facie é evidente: o arguido disparou contra o queixoso. A única questão difícil diz respeito à existência de uma defesa que toma a forma de ‘o queixoso agrediu o arguido’. Essa questão é uma questão de facto, e o júri decidiu, na prática, que o queixoso não assustou o arguido ao ponto de este disparar contra ele,” ibid.
- 23 Randy E. Barnett, “Restitution: A New Paradigm of Criminal Justice,” em Assessing the Criminal: Restitution, Retribution, and the Legal Process, R. Barnett e J. Hagel, eds. (Cambridge, Mass.: Ballinger, 1977), p. 377. Barnett apontou posteriormente que o seu artigo errou ao mencionar “intenção específica de cometer um crime”; a ênfase importante está na acção que constitui um crime ou um delito, em vez da intenção envolvida.
- 24 Ver Morris v. Platt, 32 Conn. 75 (1864), e a discussão por Epstein em Cases on Torts, pp. 22-23.
- 25 Sobre a relação entre o direito penal e o direito civil, ver a secção intitulada “Colapso do Direito Penal no Direito Civil.”
- 26 Embora o direito moderno discrimine contra o arguido em casos económicos, discrimina fortemente contra a vítima no uso de força pessoal em legítima defesa. Em outras palavras, o Estado pode usar força excessiva através dos tribunais em casos económicos (onde empresas ou pessoas ricas são arguidos), mas as vítimas individuais raramente podem usar força de forma alguma.
- 27 Sobre o estado actual da doutrina jurídica, ver Prosser, Law of Torts, pp. 108-25, 134ff. Como Epstein indica, basear os limites apropriados da legítima defesa no conceito de punição admissível implicaria que, em jurisdições onde a pena de morte foi abolida, ninguém poderia usar força letal, mesmo em legítima defesa contra um ataque mortal. Até agora, os tribunais não estão dispostos a aceitar este reductio ad absurdum da sua própria posição. Epstein, Cases on Torts, p. 30.
- 28 Este é o mesmo conceito com um nome diferente para a frase pioneira de Williamson Evers, “the proper assumption of risk.” A frase actual evita a confusão com o conceito de “assunção de risco” no direito civil, que se refere ao risco assumido voluntariamente por um queixoso e que, portanto, nega as suas tentativas de acção contra um arguido. O “fardo apropriado do risco” está relacionado com o conceito jurídico, mas refere-se ao risco que deve ser assumido por cada pessoa de acordo com a natureza humana e de uma sociedade livre, em vez do risco voluntariamente incorrido por um queixoso. Ver Rothbard, “Nozick and the Immaculate Conception of the State,” pp. 49-50.
- 29 Ou um acto manifesto contra outra pessoa. Se é legítimo que uma pessoa se defenda a si mesma ou à sua propriedade, então é igualmente legítimo que chame outras pessoas ou agências para ajudá-la nessa defesa, ou que pague por esse serviço de defesa.
- 30 Thayer, no seu tratado clássico sobre provas, escreveu: “Há um princípio … uma pressuposição envolvida na própria concepção de um sistema racional de provas que proíbe a recepção de qualquer coisa irrelevante, que não seja logicamente probante,” Thayer, Preliminary Treatise on Evidence (1898), pp. 264ff., citado em McCormick’s Handbook of the Law of Evidence, E. W. Cleary, ed., 2ª ed. (St Paul, Minn.: West Publishing, 1972), p. 433.
- 31 Benjamin R. Tucker, o principal pensador individualista-anarquista do final do século XIX, escreveu: “Nenhum uso de força, excepto contra o invasor; e naqueles casos em que é difícil dizer se o alegado infractor é ou não um invasor, ainda assim nenhum uso de força excepto quando a necessidade de uma solução imediata é tão imperativa que temos de usá-la para nos salvarmos.” Benjamin R. Tucker, Instead of a Book (New York: B.R. Tucker, 1893), p. 98. Ver também ibid., pp. 74-75.
- 32 Cleary expõe bem o ponto, embora infelizmente o aplique apenas a casos criminais: “A sociedade julgou que é significativamente pior para um homem inocente ser considerado culpado de um crime do que para um homem culpado ser libertado… Portanto, conforme afirmado pelo Supremo Tribunal ao reconhecer a inevitabilidade do erro em casos criminais… esta margem de erro é reduzida para ele [o arguido] pelo processo de colocar sobre a outra parte o encargo… de convencer o julgador, no final do julgamento, da sua culpa além de qualquer dúvida razoável. Ao fazê-lo, os tribunais têm… o nobre objectivo de diminuir o número de um tipo de erro — a condenação de inocentes.” McCormick’s Handbook of Evidence, pp. 798-99.
- 33 O ónus da prova também recai sobre o queixoso no direito contemporâneo. Cleary escreve: “Os ónus de alegação e prova em relação à maioria dos factos têm sido e devem ser atribuídos ao queixoso, que geralmente procura mudar o estado actual das coisas e que, portanto, deve naturalmente ser esperado para suportar o risco de falha na prova ou persuasão.” Ibid., p. 786. Cleary também fala da “tendência natural de colocar os ónus sobre a parte que deseja a mudança.” Ibid., pp. 788-89.
- 34 Ver a secção intitulada “Colapso do Direito Penal no Direito Civil.”
- 35 Ver McCormick’s Handbook of Evidence, pp. 794ff.
- 36 Ibid., p. 796. Aqui devemos saudar os juízes de primeira instância ridicularizados em Molyneux v. Twin Falls Canal Co., 54 Idaho 619, 35 P. 2d 651, 94 A.L.R. 1264 (1934), e Williams v. Blue Ridge Building & Loan Assn., 207 N.C. 362, 177 S.E. 176 (1934).
- 37 C. Shiveley, ed., The Collected Works of Lysander Spooner (Weston, Mass.: M. and S. Press, 1971), 2, pp. 208-9. É importante apontar que Spooner também não fez distinção entre casos civis e criminais neste aspecto. Estou em dívida para com Williamson Evers por esta referência.
- 38 St. Louis Union Co. v. Busch, 36 Mo. 1237, 145 S.W. 2d 426, 430 (1940); Ward v. Lyman, 108 Vt 464, 188 A. 892, 893 (1937). McCormick’s Handbook of Evidence, pp. 797, 802.
- 39 Segundo Epstein: “Uma vez decidido que o termo causalidade não possui um conteúdo rígido, os tribunais ficam livres para decidir processos específicos com base em princípios de ‘política social’, sob o disfarce da doutrina de causa próxima.” Epstein, A Theory of Strict Liability, p. 163. Conceitos vagos e impraticáveis, como “fator substancial” em danos ou “razoavelmente previsível”, têm oferecido pouca ajuda na orientação de decisões sobre “causa próxima”. Para uma crítica excelente aos testes de “causa de facto” na teoria da negligência, bem como à tentativa dos teóricos de Chicago-Posner de eliminar completamente o conceito de causa no direito da responsabilidade civil, ver ibid., pp. 160-62, 163-66.
- 40 Se um fumador de longa data que desenvolve cancro do pulmão processa uma empresa de tabaco, surgem ainda mais problemas. Não menos importante é o facto de que o fumador assumiu voluntariamente o risco, de modo que esta situação dificilmente poderia ser considerada uma agressão ou delito. Como escreve Epstein: “Suponha que o autor tenha fumado diferentes marcas de cigarros ao longo da vida? Ou que tenha vivido sempre numa cidade poluída? E, se o autor superar o obstáculo da causalidade, será que conseguirá superar a defesa de assunção do risco?” Epstein, Cases on Torts, p. 257. Ver também Richard A. Wegman, “Cigarettes and Health: A Legal Analysis,” Cornell Law Quarterly 51 (Verão 1966): 696-724.
Um caso particularmente interessante sobre responsabilidade no âmbito do cancro, que é instrutivo quanto à questão da causalidade estricta, é Kramer Service Inc. v. Wilkins, 184 Miss. 483, 186 So. 625 (1939), em Epstein, Cases on Torts, p. 256. O tribunal resumiu a posição adequada da evidência médica causal em Daly v. Bergstedt (1964), 267 Minn. 244, 126 N.W. 2d 242. Em Epstein, Cases on Torts, p. 257. Ver também a discussão excelente de Epstein, ibid., sobre DeVere v. Parten (1946), onde a tentativa absurda da queixosa de responsabilizar o arguido foi correctamente rejeitada. - 41 Milton Katz, “The Function of Tort Liability in Technology Assessment,” Cincinnati Law Review 38 (Outono 1969): 620.
- 42-46 Ver Prosser, Law of Torts, pp. 458-464.
- 47-49 Nos artigos da Harvard Law Review sobre “Agência,” 1891. Ver Epstein, Cases on Torts, pp. 705-707.
- 50 Kerlin v. Southern Telephone & Telegraph Co. (Ga.), 191 Ga. 663, 13 S.E. 2d 790 (1941); Ballard v. Dyson (1808) 1 Taunt. 279, 127 Eng. Rep. 841. Em William E. Burby, Handbook of the Law of Real Property, 3.ª ed. (St. Paul, Minn.: West Publishing, 1965), pp. 84-85.
- 51 Prosser, Law of Torts, pp. 600-601. Ver também Burby, Law of Real Property, p. 78; Sturges v. Bridgman (1879), 11 Ch. Div. 852.
- 52 Prosser, Law of Torts, p. 611.
- 53 Bove v. Donner-Hanna Coke Corp., 236 App. Div. 37, 258 N.Y.S. 229 (1932), citado em Epstein, Cases on Torts, p. 535. Contrariamente a Epstein, no entanto, o “chegar ao incómodo” não é simplesmente uma assunção de risco por parte do queixoso. Trata-se de uma defesa mais robusta, pois repousa sobre uma atribuição efetiva de direito de propriedade na atividade criadora do “incómodo”, que, portanto, é absoluta, preponderante e incontestável. Cf. Richard A. Epstein, “Defenses and Subsequent Pleas in a System of Strict Liability,” Journal of Legal Studies 3 (1974): 197-201.
- 54-56 “Note: Deposit of Gaseous and Invisible Solid Industrial Wastes Held to Constitute Trespass,” Columbia Law Review 60 (1960): 879-880. Ver também Glen Edward Clover, “Torts: Trespass, Nuisance and E=mc2,” Oklahoma Law Review 11 (1966): 118ff; Prosser, Law of Torts, pp. 591-595.
- 57 Prosser, Law of Torts, p. 595. Uma perturbação geralmente emana da terra de A para a terra de B; em resumo, origina-se fora da própria terra de B. A tentativa de Prosser de refutar este ponto (o cão do réu a ladrar sob a janela do autor ou o gado do réu a invadir os campos de outro) falha em compreender a essência do argumento. Os animais ofensores, como cães e gado, vagaram sobre a terra de A, o arguido, e, sendo domesticados, as suas acções são da responsabilidade dos seus proprietários. Sobre animais, ver ibid., pp. 496-503.
- 58-60 Ibid., pp. 66, 880-881. Ver também Clover, “Torts: Trespass, Nuisance and E=mc2,” p. 119.
- 61 Durante a década de 1920, os tribunais estavam a desenvolver precisamente tal sistema de direitos de propriedade privada sobre frequências de ondas de rádio. Foi porque tal estrutura de propriedade estava a evoluir que o Secretário do Comércio Hoover promulgou o Radio Act de 1927, nacionalizando a propriedade das ondas de rádio. Ver Ronald H. Coase, “The Federal Communications Commission,” Journal of Law and Economics 2 (Outubro 1959): 1-40. Para um estudo moderno sobre como essas frequências poderiam ser alocadas, ver A. De Vany, et al., A Property System Approach to the Electromagnetic Spectrum (São Francisco: Cato Institute, 1980).
- 62 Sobre direitos prescritos, tangibilidade e o conceito de “chegar ao delito” em relação à poluição do ar, ver William C. Porter, “The Role of Private Nuisance Law in the Control of Air Pollution,” Arizona Law Review 10 (1968): 107-119; e Julian C. Juergensmeyer, “Control of Air Pollution Through the Assertion of Private Rights,” Duke Law Journal (1967): 1126-1155.
- 63 Terry James Yamada, “Urban Noise: Abatement, Not Adaptation,” Environmental Law 6 (Outono 1975): 64. Infelizmente, como a maioria dos autores que escrevem sobre direito ambiental, Yamada escreve como um fervoroso defensor dos queixosos ambientais, em vez de como um buscador da objectividade jurídica.
- 64 Idem: 63. Note-se, contudo, que, na nossa opinião, o requisito de “razoabilidade” para um prejuízo ou desconforto efetivo é correcto no caso de ruído, mas não, por exemplo, no caso de fumo visível ou odores nocivos, salvo se “desconforto” for interpretado de forma ampla, abrangendo toda e qualquer interferência no uso.
- 65 Ver a discussão sobre várias teorias de propriedade de terras e espaço aéreo em Prosser, Law of Torts, pp. 70-73.
- 66 Em Hinman v. Pacific Air Transport, 9 Cir. (1936), 84 F.2d 755, cert. negado 300 U.S. 654. Em Idem, p. 71.
- 67 Idem, p. 70.
- 68 Idem, pp. 70-71. Ver Smith v. New England Aircraft Co., (193?), 270 Mass. 511, 170 N.E. 385. Ver também Prosser, Law of Torts, pp. 514-15.
- 69 Thornburg v. Port of Portland (1962), 233 Ore. 178, 376 P.2d 103. Citado em Clover, “Torts: Trespass, Nuisance and E=mc2”, p. 121. A visão anterior baseava-se em United States v. Causby (1946). Ver também Prosser, Law of Torts, pp. 72-73.
- 70 Holman v. Athens Empire Laundry Co., 149 G. 345, 350, 100 S.E. 207, 210 (1919). Citado em Jack L. Landau, “Who Owns the Air? The Emission Offset Concept and Its Implications,” Environmental Law 9 (1979): 589.
- 71 Prosser, Law of Torts, p. 354.
- 72 Paul B. Downing, “An Introduction to the Problem of Air Quality,” em Air Pollution and the Social Sciences, Downing, ed. (Nova Iorque: Praeger, 1971), p. 13.
- 73 James E. Krier, “Air Pollution and Legal Institutions: An Overview,” em Idem, Air Pollution and the Social Sciences, pp. 107-8.
- 74 Ver a secção intitulada “Actos Ilícitos Conjuntos e Vítimas Conjuntas” para uma discussão sobre coautores de actos ilícitos, múltiplos actos ilícitos e processos colectivos.
- 75 Jeffrey C. Bodie, “The Irradiated Plaintiff: Tory Recovery Outside Price-Anderson,” Environmental Law 6 (Primavera de 1976): 868.
- 76 Relativamente às regulamentacções sobre poluição do ar, ver Landau, “Who Owns the Air?”, pp. 575-600.
- 77 Para uma excelente discussão sobre soluções jurídicas em oposição às soluções legislativas ou administrativas para adulteração de produtos, ver Wordsworth Donisthorpe, Law in a Free Society (Londres: Macmillan, 1895), pp. 132-58.
- 78 Os criminosos deveriam ter o direito de negociar a extinção de um processo ou execução pela vítima, tal como deveriam poder negociar uma injunção emitida contra si. Para um excelente artigo sobre esta questão, ver Thompson, “Injunction Negotiations,” pp. 1563-95.
- 79 Ver a secção intitulada “Actos Ilícitos Conjuntos e Vítimas Conjuntas”.
- 80 Para relatos críticos sobre privity e uma discussão sobre garantia implícita, ver Richard A. Epstein, Modern Products Liability Law (Westport, Conn.: Quorum Books, 1980), pp. 9-34; e Prosser, Law of Torts, pp. 641ff.
- 81 Algumas das dificuldades práticas envolvidas em tais processos poderiam ser superadas através da junção de vários queixosos. Ver a secção intitulada “Actos Ilícitos Conjuntos e Vítimas Conjuntas”.
- 82 Sobre a “tragédia dos comuns” e a propriedade privada, ver, por exemplo, Garrett Hardin, “The Tragedy of the Commons,” Science 162 (1968): 1243-48; Robert J. Smith, “Resolving the Tragedy of the Commons by Creating Private Property Rights in Wildlife,” Cato Journal 1 (Outono de 1981): 439-68.
- 83 Nota Prosser: “Um crime é uma ofensa contra o público em geral, pela qual o Estado, enquanto representante do público, instaurará um processo sob a forma de uma acusação penal. O objectivo de tal processo é proteger e vindicar os interesses do público como um todo… Um processo penal não se preocupa, de forma alguma, com a compensação do indivíduo lesado contra quem o crime foi cometido,” Prosser, Law of Torts, p. 7.
- 84 Para uma discussão esclarecedora sobre as raízes da divisão moderna entre direito penal e direito dos actos ilícitos, sendo o primeiro voltado para crimes contra a “paz do rei,” ver Barnett, “Restitution: A New Paradigm of Criminal Justice,” pp. 350-54.
- 85 Sobre danos punitivos no direito dos actos ilícitos, ver Prosser, Law of Torts, pp. 9ff. Este não é o lugar para apresentar uma teoria da punição. As teorias da punição entre filósofos e juristas libertários variam desde evitar quaisquer sanções coercivas até apenas restituição, restituição mais punição proporcional, e permitir punições ilimitadas para quaisquer crimes.
Para a minha própria visão sobre punição proporcional, ver Murray N. Rothbard, “Punishment and Proportionality,” em Barnett e Hagel, Assessing the Criminal, pp. 259-70. Sobre o conceito de transporte de criminosos, ver Leonard P. Liggio, “The Transportation of Criminals: A Brief Politico-Economic History,” em Idem, pp. 273-94. - 86 Idem, p. 11. Ver também Epstein, Cases on Torts, p. 906.
- 87 Tal como o privilégio contra a autoincriminação. Na verdade, a proibição de testemunhos compulsórios não deveria apenas ser alargada aos casos de actos ilícitos, mas também a todos os testemunhos compulsórios, contra outros ou contra si mesmo.
- 88 Richard A. Epstein, “Crime and Tort: Old Wine in Old Bottles,” em Barnett e Hagel, Assessing the Criminal, pp. 231-57.
- 89 Barnett, “Restitution: A New Paradigm of Criminal Justice,” p. 376. Barnett acrescenta: “Dessa forma, a lei da tentativa é, na verdade, uma forma de contagem dupla cuja principal função é permitir que a polícia e o procurador superdimensionem um crime para fins de uma negociação de declaração de culpa futura. Além disso, algumas categorias de tentativa, como as leis de conspiração e leis possessórias — por exemplo, posse de instrumentos de arrombamento — são atalhos para procuradores incapazes ou relutantes em provar o crime efectivo e são uma fonte constante de perseguições repressivas selectivas.” Idem. Podemos acrescentar que estas seriam sempre ilegítimas sob o direito libertário.
- 90 Segundo Barnett: “O único tipo de tentativa mal-sucedida que escaparia à responsabilidade [sob o direito dos actos ilícitos] seria o caso de alguém que tentasse cometer um crime sem violar os direitos de outrem e sem que ninguém tomasse conhecimento disso… Em qualquer caso, nenhum sistema governado por qualquer princípio pode processar actos de que ninguém tem conhecimento.” Idem, pp. 376-77. Deve também ser mencionado o contributo significativo do Professor Ronald Hamowy, da Universidade de Alberta, para esta solução do problema.
- 91 Pode concordar-se com Barnett neste ponto sem adotar a sua variante de direito dos actos ilícitos baseada exclusivamente em restituição, sem punição. Na nossa opinião, elementos do direito penal, como a punição, poderiam ser facilmente incorporados num direito dos actos ilícitos reconstruído.
- 92 Prosser, Law of Torts, p. 291. Ver também Idem, pp. 293ff.
- 93 Nesta situação, a junção é obrigatória para os arguidos, mesmo que os queixosos possam optar entre a junção e processos separados.
- 94 Prosser, Law of Torts, pp. 317-18.
- 95 Ver Katz, “Function of Tort Liability,” pp. 619-20.
- 96 Contudo, uma solução melhor seria exigir que interesses comuns prevalecessem sobre interesses individuais separados, como actualmente é requerido em processos colectivos. Ver a discussão sobre City of San Jose v. Superior Court abaixo.
- 97 O tipo de processo colectivo outrora conhecido como “processo colectivo espúrio”, em que a decisão vincula apenas os membros efectivamente presentes em tribunal, não era, de facto, um processo colectivo, mas sim um mecanismo de junção facultativa. Fed. R. Civ. P. 23 (1938).
- 98 As Regras de 1938 previam que, em alguns casos, qualquer processo colectivo teria de ser do tipo espúrio mencionado na nota anterior. As Regras revistas de 1966 tornaram todos os processos colectivos vinculativos, eliminando a categoria de processo espúrio. Ver Fed. R. Civ. P. 23 (1966).
- 99 Fed. R. Civ. P. 23(a) (1966). Sobre a questão de saber se a notificação individual aos membros da classe é ou não obrigatória, ver Fed. R. Civ. P. 23(d)(2), Fed. R. Civ. P. 23(e), Mattern v. Weinberger, 519 F.2d 150 (3d Cir.1975), Eisen v. Carlisle & Jacquelin, 417 U.S. 156 (1974), Cooper v. American Savings & Loan Association, 55 Cal. App. 3d 274 (1976).
- 100 O caso foi Diamond v. General Motors Corp., 20 Cal. App. 2d 374 (1971). Por outro lado, algumas decisões dos tribunais federados, como na Califórnia, foram altamente favoráveis aos processos colectivos. O tribunal da Califórnia permitiu, de facto, um processo colectivo de um único indivíduo contra uma empresa de táxis por alegadas cobranças excessivas, em nome de si próprio e de vários milhares de clientes não identificáveis da empresa. Dear v. Yellow Cab Co., 67 Cal. 2d 695 (1967).
- 101 City of San Jose v. Superior Court, 12 Cal. 3d 447 (1974).
- 102 Epstein fornece uma nota interessante sobre formas pelas quais os queixosos, de maneira puramente libertária, conseguiram superar o facto de que nem a junção nem o processo colectivo eram permitidos devido à extensão e diversidade dos interesses individuais envolvidos. O medicamento MER/29 foi retirado do mercado em 1962, após o que cerca de 1.500 processos jurídicos foram movidos contra a empresa farmacêutica por danos. Embora o arguido tenha objectado com sucesso a uma junção voluntária, a maioria dos advogados coordenou voluntariamente as suas atividades através de um comité central de intercâmbio de informações, com honorários pelos serviços avaliados para todos os advogados do grupo. Epstein relata que os advogados que participaram no grupo geralmente obtiveram mais sucesso nos respectivos processos do que aqueles que não participaram. Epstein, Cases on Torts, p. 274.
- 103 Em Synder v. Harris, 394 U.S. 332 (1970). Krier, “Air Pollution and Legal Institutions.”
- 104 Em resumo, o que aconteceria se apresentassem uma processo colectivo contra a poluição e ninguém comparecesse? Krier cita o caso de Riter v. Keokuk Electro-Metals Co., 248 Iowa 710, 82 N. W. 2d 151 (1957). Krier, “Air Pollution and Legal Institutions,” p. 217. Ver também John Esposito, “Air and Water Pollution: What to Do While Waiting for Washington,” Harvard Civil Rights/Civil Liberties Law Review (Janeiro de 1970): 36.