O termo “liberalismo” é vítima daquilo a que o historiador Ralph Raico chamou de “caos conceptual”.
Da sua utilização original para descrever a ideologia da propriedade privada e da liberdade dos indivíduos, o termo acabou por passar a descrever ideologias de um tipo completamente diferente. Em meados do século XX, o termo “liberal” utilizava-se para descrever uma grande variedade de social-democratas e outros apoiantes de economias geridas e planeadas pelo governo.
Segundo Raico, o liberalismo propriamente dito é:
A ideologia que sustenta que a sociedade civil — entendida como sociedade sem o Estado — em geral desenvolve-se a si mesmo dentro dos limites do princípio da propriedade privada.
“A sociedade sem o Estado”, é claro, não é uma questão simples. É um conjunto complexo de instituições civis, religiosas, sociais, familiares e de mercado. E, de acordo com os liberais, estas instituições, se organizadas segundo os princípios respeitadores do princípio da propriedade privada, poderiam funcionar, sobretudo num estado de paz cooperativa.
Nesta visão, porém, o Estado é uma instituição separada das outras porque depende da coerção e da tributação, ao contrário das instituições voluntárias que compõem a sociedade.
A economia política destes liberais passou, portanto, a reflectir um cepticismo em relação ao Estado e uma preferência por uma sociedade dominada por instituições não estatais, como os mercados, as famílias e as igrejas. Os liberais procuraram minimizar o poder do Estado e criar instituições políticas que pudessem limitar o seu abuso.
Historicamente falando, esta visão do liberalismo descreve bem os teóricos comummente considerados liberais ao longo dos séculos XVIII e XIX, e até mesmo no século XX.
Teóricos liberais como Lord Acton, Gustave de Molinari, Frédéric Bastiat, Herbert Spencer, Benjamin Constant, Richard Cobden, Ludwig von Mises, F.A. Hayek, Adam Smith e o marquês de Condorcet, entre outros, enquadram-se certamente nesta descrição geral dos liberais.
Certamente, estes teóricos divergiram muitas vezes quanto à extensão do seu radicalismo. Mas o facto de estes teóricos variarem no seu radicalismo apenas mostra a grande amplitude histórica, geográfica e intelectual do liberalismo à medida que este foi ganhando influência em grande parte da Europa Ocidental e nas Américas.
Mas havia limites. Afastado do compromisso fundamental com a propriedade privada e a liberdade económica, o liberalismo deixa de ser liberalismo. Por exemplo, em épocas posteriores, observa Raico, o termo “liberalismo” sofreu à medida que os historiadores tentaram colocar cada vez mais teóricos de visões amplamente diversas sob a sua bandeira; teóricos como John Rawls, Karl Popper, John Maynard Keynes e John Stuart Mill.
Mas, se teóricos como estes são liberais para colocar ao lado de homens como Molinari, então o termo “liberalismo” deixa de ter qualquer significado útil.
Grande parte da confusão decorre do facto de os historiadores tentarem frequentemente classificar os liberais com base nas suas opiniões relativamente a assuntos fora da economia política. É certo que os liberais como Mill e Keynes eram a favor da liberdade quando a ideia promovia a expressão pessoal através de determinadas práticas religiosas ou sexuais. Mas Mill e Keynes eram notavelmente menos liberais quando se tratava de questões maiores de tributação, comércio, guerra e questões laborais. Da mesma forma, os historiadores tentaram classificar o liberalismo com base em critérios completamente separados da liberdade económica e pessoal. Em vez disso, concedem o título de liberais àqueles que mantêm certas visões sobre o sentido da vida ou sobre a ética utilitarista. O resultado foi muitas vezes uma definição de “liberal” que nada tinha a ver com a economia política orientada para a propriedade privada que dominou o liberalismo desde o seu início.
Por outras palavras, pode ser fácil argumentar que, digamos, tanto o historiador liberal Augustin Thierry como o social-democrata John Maynard Keynes eram cépticos em relação à ideia de religião organizada. Concluir que ambos eram necessariamente liberais, no entanto, exige ignorar a prevalência da propriedade privada nas visões de liberais influentes como Bastiat e Cobden ao longo do século XIX e posteriormente.
Afinal, se um liberal é definido principalmente pela hostilidade ao cristianismo tradicional, então como classificar um católico praticante e liberal como Lord Acton? Uma estratégia utilizada foi reclassificar arbitrariamente homens como Acton como conservadores. Outra estratégia tem sido simplesmente redefinir a posição pró-propriedade privada como “conservadora”, como Raico observou num caso especialmente flagrante:
Hélio Jaguaribe, evidentemente uma estrela da ciência política brasileira, descreve Hayek, Milton Friedman e Ludwig von Mises… como “extremamente conservadores”. David Spitz também se refere aos três pensadores como “conservadores”, embora o que conseguiu compreender das suas opiniões não seja claro, tendo em conta que acredita que Herbert Spencer era o seu “santo padroeiro”.[1]
A piada aqui é que, por praticamente qualquer medida, Herbert Spencer era tão anti-conservador que a sugestão de que ele era a principal influência intelectual sobre teóricos supostamente “extremamente conservadores” como Mises e Hayek, torna a afirmação um tanto absurda.
A Relação Entre Libertarianismo e Liberalismo
Se utilizarmos o princípio da propriedade privada como princípio central do liberalismo, como sugere Raico, então encontraremos uma base bastante plausível para classificar os liberais de forma adequada.
Não é de estranhar, então, que Raico considere aquilo a que hoje chamamos “libertarianismo” nada mais do que liberalismo. Mark Thornton recorda uma conversa com Raico sobre o assunto:
Ralph deu um passo em frente e começou a explicar… que a palavra libertário era relativamente nova. Disse que o termo liberalismo clássico também era utilizado para descrever o libertarianismo. No entanto, explicou, a expressão liberalismo clássico foi também uma invenção moderna. E depois passou a explicar porque deveríamos usar a palavra liberalismo para descrever a verdadeira filosofia do individualismo.
Para Raico, não existia uma distinção clara entre liberalismo e libertarianismo. O facto de o libertarianismo denotar uma vertente mais radical do liberalismo também não o torna, de alguma forma, não liberal. Afinal, para os padrões actuais, o pensamento de Herbert Spencer e Gustave de Molinari era bastante radical. No entanto, poucos contestam que ambos eram liberais.
Alguns historiadores tentaram diferenciar os libertários dos liberais com base em pequenas diferenças políticas, mas estas tentativas falharam. Raico observa, por exemplo:
Lidar com esta questão faz com que até um historiador de ideias tão talentoso como Alan Ryan [autor de “The Making of Modern Liberalism“ ] falhe. Ryan concede um lugar a Hayek dentro da categoria dos liberais contemporâneos, mas nega que o libertarianismo possa ser uma variedade de liberalismo, alegando que mesmo os liberais clássicos não eram a favor da descriminalização dos crimes sem vítimas. Mas esta posição libertária não está apenas claramente implícita, por exemplo, na Lei da Igualdade de Liberdade de Herbert Spencer; é também a visão declarada de Ludwig von Mises.[2]
Por seu lado, Murray Rothbard considerava o libertarianismo apenas uma variedade do liberalismo e que a história desta ideologia remontava, pelo menos, ao século XVII. Em Por uma Nova Liberdade, escreve:
O objectivo dos liberais clássicos era promover a liberdade individual em todos os seus aspectos inter-relacionados. Na economia, os impostos seriam drasticamente reduzidos, os controlos e as regulamentações eliminados, e a energia humana, a iniciativa e os mercados seriam libertados para criar e produzir em trocas que beneficiariam todos e a massa de consumidores.
Os primeiros teóricos do liberalismo clássico libertário foram os Levelers durante a Revolução Inglesa e o filósofo John Locke no final do século XVII, seguidos pelo “True Whig” ou oposição libertária radical ao “Whig Settlement” — o regime da Grã-Bretanha do século XVIII.
Além disso, Rothbard considerou a Revolução Americana uma revolução completamente libertária e um resultado de movimentos políticos e intelectuais liberais anteriores. Tal como no liberalismo em geral, no centro do conflito estava a questão da propriedade privada:
[N]ão há necessidade de haver dicotomia entre liberdade e propriedade, entre a defesa dos direitos de propriedade sobre a própria pessoa e sobre os próprios bens materiais. A defesa dos direitos é logicamente unitária em todas as esferas de acção. E mais, os revolucionários americanos agiram certamente com base nestes mesmos pressupostos, como revela a sua adesão essencial ao pensamento libertário, aos direitos políticos e económicos, e sempre à “Liberdade e Propriedade”. Os homens do século XVIII não viam dicotomia entre liberdade pessoal e económica, entre direitos à liberdade e à propriedade; estas distinções artificiais foram deixadas para serem construídas em épocas posteriores.
Também ilustrativo da convergência liberal-libertária é o caso de Ludwig von Mises. Mises sempre se auto-identificou como liberal, e era claramente um liberal dentro do seu próprio meio social e político na Áustria. Não era socialista e não era, certamente, adepto do conservadorismo, que na Áustria do século XIX era, como Ronald Hamowy disse incisivamente, a ideologia “do potro, dos anjinhos, do chicote e do pelotão de fuzilamento”. De facto, as opiniões de Mises, descritas em pormenor no seu livro Liberalismo, de 1927, apoiavam a liberdade política e o laissez-faire quase completo, tanto nos mercados domésticos como no comércio internacional. Opôs-se à guerra, apoiou a livre migração e pressionou pela descentralização política.
Estas visões são o que poderíamos chamar de “liberalismo de cartilha”, e o aluno de Mises, Hayek, tinha visões semelhantes, embora num grau muito mais brando. Notavelmente, tanto Mises como Hayek são hoje rotineiramente chamados de liberais e libertários.
O Legado do Liberalismo
Dizer que o efeito do liberalismo no mundo foi profundo seria um eufemismo.
Nos países de língua inglesa, é claro, os movimentos políticos liberais impulsionaram rapidamente a política numa direcção liberal ao longo do século XIX e, então, serviram como um travão muito necessário aos movimentos social-democratas no século XX.
Em França e noutros pontos da Europa, o liberalismo serviu de contrapeso crucial à marcha dos socialistas e dos totalitários. Embora o liberalismo nunca tenha dominado a política francesa, por exemplo, o sucesso que os liberais aí tiveram não foi isento de efeitos. Sem os liberais, a França poderia muito bem ter sucumbido ao socialismo absoluto no século XIX ou XX.
Nos últimos duzentos anos, activistas liberais como Cobden e intelectuais liberais como Ludwig von Mises permaneceram a voz da razão perante a competição implacável de socialistas, mercantilistas, fascistas e belicistas de todos os tipos.
Alguns críticos do liberalismo queixam-se frequentemente de que o liberalismo (isto é, o libertarianismo) é irrelevante porque os socialistas e os social-democratas continuam a ser populares em vários momentos e lugares.
No entanto, como Lew Rockwell, nos lembra, as coisas poderiam ser muito piores se não fossem os esforços de um punhado relativo de intelectuais que lutaram contra a teoria socialista durante mais de um século.
Além disso, o sucesso do liberalismo é demonstrado pelo facto de os não liberais há muito tentarem roubar o manto do liberalismo para si próprios. No mundo anglófono, não é um mero acidente histórico que os social-democratas e outros grupos não liberais insistam frequentemente em se auto-intitularem liberais. O esforço para expropriar o termo “liberal” no século XX foi uma questão de conveniência política. O liberalismo foi uma ideologia popular e influente ao longo do século XIX e início do século XX. Assim, fazia sentido tentar aplicar o termo a ideologias não liberais e aproveitar o sucesso passado do liberalismo.[3]
Hoje, continuamos a ver o legado do liberalismo em todo o mundo nas discussões sobre os direitos humanos, nos esforços para aumentar a liberdade no comércio e uma maior autonomia da intervenção estatal. O facto de os socialistas e outro tipo de intervencionistas obterem vitórias não prova nada sobre a irrelevância do liberalismo. Apenas nos recordam o quanto as coisas seriam piores se não fossem os ocasionais sucessos do liberalismo. Além disso, são esperados esforços dos governos para cooptar o vocabulário liberal com o propósito de construir o poder do Estado. Vemos isto frequentemente no apelo por esforços de “direitos humanos” geridos pelo governo e nos apelos por “livre comércio” gerido a nível global. Estas medidas não são liberais, mas os governos sabem que dizer coisas liberais e professar que perseguem objectivos liberais gera óptimas relações públicas.
Entretanto, a resposta aos ganhos obtidos pelos social-democratas e socialistas está no fortalecimento do movimento intelectual que é o liberalismo, o que, com o tempo, se traduz em acção política. Se o liberalismo é hoje eclipsado por outras ideologias, a culpa é nossa, que fizemos muito pouco, e dos derrotistas que declaram que as lutas intelectuais são irrelevantes para a vida real ou que não valem a pena.
O liberalismo — isto é, o libertarianismo — tem uma história longa e impressionante que é frequentemente negligenciada. Mas é, como afirmou Raico, uma parte indispensável da “nossa própria civilização”. Faríamos bem em saber mais sobre a sua história.
- Raico, Ralph, Classical Liberalism and the Austrian School (Ludwig von Mises Institute, Auburn AL, 2012) p. 72. ↩︎
- Ibid. p. 75. ↩︎
- Raico observa ainda que, em alguns casos, os partidos políticos liberais simplesmente abandonaram o liberalismo em resposta à competição entre grupos democráticos. À falta de melhor termo, os políticos liberais descobriram que precisavam de “comprar votos” e agiram em conformidade. Veja a sua palestra na Universidade Mises de 2008: https://mises.org/podcasts/mises-u-2008/liberalism ↩︎
Artigo publicado originalmente no Mises Institute.