[Nota do editor: Em 8 de Agosto de 1957, Murray N. Rothbard escreveu a Richard C. Cornuelle, do Volker Fund, recomendando enfaticamente as pesquisas de Emil Kauder sobre os fundamentos aristotélicos da utilidade marginal e a teoria económica austríaca (Rothbard Papers). Num memorando de Fevereiro de 1957, intitulado “Catholicism, Protestantism, and Capitalism” (Catolicismo, Protestantismo e Capitalismo), reproduzido abaixo, Rothbard expôs algumas reflexões sobre esses assuntos. As cartas de Rothbard revelam um interesse precoce e profundo pela história do pensamento económico. Os memorandos que escreveu para o Volker Fund, desde o início dos anos 50 até 1962, sobre uma grande variedade de livros e revistas académicas, demonstram o seu crescente conhecimento sobre o assunto. Além disso, o orientador da dissertação de Rothbard, o professor Joseph Dorfman, era uma autoridade na história do pensamento económico americano, e Rothbard estava muito interessado, entre outros assuntos, nas contribuições americanas para os debates monetários do início do século XIX. Rothbard, tanto historiador quanto economista, estava bem posicionado, não apenas para avaliar livros para o Volker Fund, mas também para compreender e sintetizar doutrinas económicas de forma lógica e numa perspectiva histórica. A sua última grande obra publicada, os dois volumes de History of Economic Thought (1995), é certamente uma prova disso. ~ Joseph Stromberg]
Nos últimos anos, um grupo de estudiosos (a maioria dos quais poderia ser chamado de «católicos de direita») começou a rever a interpretação padrão da ascensão da economia e do capitalismo, que sustenta que tanto pensamento, bem como as políticas económicas laissez-faire, que alimentaram o capitalismo, desenvolveram-se como uma consequência do abandono das amarras católicas medievais. O espírito moderno da investigação científica derrotou o dogmatismo escolástico e permitiu o crescimento de um espírito geralmente individualista e racionalista; o abandono da autoridade da Igreja levou a um individualismo geral em todos os campos; o espírito e a ética calvinistas, enfatizando o valor positivo do trabalho árduo, do aforro e da geração de dinheiro, levaram ao florescimento do capitalismo, em comparação com o efeito da desaprovação católica em relação ao “ganhar dinheiro”; a economia laissez-faire cresceu na atmosfera protestante da Grã-Bretanha (Adam Smith, etc.).
Há, no entanto, outro lado da moeda, e interpretações contrastantes, particularmente nos campos da filosofia política (o efeito da lei natural, por exemplo) e do pensamento económico, surgiram nos últimos dois anos. Para leituras sobre esta Nova Escola, sugiro: Joseph A Schumpeter, History of Economic Analysis (Nova Iorque, 1954), esp. pp. 73–142; Marjorie Grice-Hutchinson, The School of Salamanca (Oxford, 1952); Emil Kauder, “Genesis of the Marginal Utility Theory”, Economic Journal (Setembro de 1953); Kauder, “Retarded Acceptance of the Marginal Utility Theory”, Quarterly Journal of Economics (Novembro de 1953) e “Comment” (Agosto de 1955); e Raymond de Roover, “Scholastic Economics: Survival and Lasting Influence from the 16th Century to Adam Smith”, Quarterly Journal of Economics (Maio de 1955).
Esses revisionistas pouco fizeram directamente sobre um dos pilares da abordagem padrão — a ética protestante de Weber —, mas mais do que isso indirectamente. Recomenda-se a crítica de Weber por H. M. Robertson, Aspects of Economic Individualism (Londres, 1933). Robertson e outros apontaram, por exemplo, que o capitalismo realmente começou a florescer, não na Grã-Bretanha, mas nas cidades italianas do século XIV, ou seja, em áreas decididamente católicas. Na verdade, o ponto principal da crítica revisionista, em todos os campos, é a continuidade — que o capitalismo, o liberalismo, o racionalismo, o pensamento económico, etc., começaram muito antes de Smith et al., e sob os auspícios católicos. E que os desenvolvimentos posteriores se basearam em visões católicas anteriores e, em alguns casos, retrocederam em relação a elas.
Kauder, na verdade, volta a tese de Weber1 contra os seus próprios seguidores, atacando Smith e Ricardo por terem sido influenciados pelo protestantismo para desenvolver a «teoria do valor-trabalho». Schumpeter também se inclinou nessa direcção. O cerne desta importante nova tese é o seguinte: em vez de dizer que Hume e Smith desenvolveram a teoria económica quase do zero, a economia tinha, na verdade, sido desenvolvida de forma lenta mas segura, ao longo dos séculos, pelos escolásticos e pelos católicos italianos e franceses influenciados pelos escolásticos; que a sua economia era geralmente individualista do ponto de vista metodológico e enfatizava a teoria da utilidade, a soberania dos consumidores e os preços de mercado, e que Smith realmente atrasou o pensamento económico ao introduzir a doutrina puramente britânica da teoria do valor-trabalho, desviando assim a economia do caminho certo por cem anos. Aqui, posso acrescentar que a teoria do valor-trabalho teve muitas consequências negativas. É claro que ela abriu caminho, de forma bastante lógica, para Marx. Em segundo lugar, a sua ênfase nos «custos que determinam os preços» incentivou a visão de que os empresários aumentam os preços ou que os sindicatos aumentam os preços, em vez da inflação governamental da oferta monetária. Em terceiro lugar, a sua ênfase no «valor objectivo e inerente» dos bens levou a tentativas «cientificistas» de medir valores, estabilizá-los por meio da manipulação governamental, etc.
Ora a interessante tese de Kauder tem duas partes: primeiro, que o acima exposto foi o curso histórico dos acontecimentos no pensamento económico; e segundo, que a razão para este esquecimento da teoria da utilidade e a sua substituição por uma teoria do custo do trabalho foi a influência do espírito protestante, em oposição ao espírito católico.
Kauder defende, em primeiro lugar, que a teoria da utilidade foi desenvolvida em alto grau por Aristóteles e, depois, pelos escolásticos, particularmente os esquecidos escolásticos espanhóis do final do século XVI e início do século XVII. A maioria dos historiadores ignorou os escolásticos tardios e a sua influência, pelo menos até recentemente. A ideia padrão é que os escolásticos desapareceram com a Idade Média, e o intervalo entre eles foi preenchido apenas pelos mercantilistas. Os mercantilistas, no entanto, eram panfletários pró-estatistas ad hoc e contribuíram menos para a economia e para o liberalismo do que os escolásticos tardios. (Ver DeRoover.)
A ênfase nos valores subjectivos dos indivíduos e na utilidade também foi continuada pelos grandes filósofos políticos protestantes Grotius e Pufendorf, que foram directamente influenciados pelos escolásticos espanhóis (também, como veremos abaixo, no campo do direito natural) e pelos economistas italianos de Volterra (meados do século XVI), Davanzatti (final do século XVI), Montanari (final do século XVII) e especialmente Galiani (por volta de 1750). A teoria foi desenvolvida por Turgot e Condillac, católicos franceses (meados do século XVIII). Na época destes três últimos, de facto, Kauder afirma que o «paradoxo do valor» (ouro vs. ferro) havia sido resolvido pela sua teoria da utilidade, apenas para ser descartado por Smith-Ricardo e restabelecer o problema do paradoxo do valor. (Eu acrescentaria que a abordagem holística resultante de Smith e Ricardo era subtilmente socialista de uma quarta maneira: estabeleceu a moda de separar a distribuição da produção e de falar apenas sobre grupos de factores em vez de factores individuais — trabalho em vez de trabalhadores).
Agora, Kauder prossegue apontando que os teóricos italianos e franceses do valor subjectivo e da utilidade eram católicos, enquanto os teóricos do valor-trabalho: Petty, Locke e Smith eram protestantes britânicos. Kauder atribui isso precisamente à ênfase calvinista na divindade do trabalho, em oposição ao pensamento católico, que considerava o trabalho apenas como um meio de ganhar a vida. Os escolásticos, então, eram livres para chegar à conclusão de que o «preço justo» era essencialmente o preço livremente competitivo estabelecido no mercado, enquanto os britânicos influenciados pelos protestantes tinham de dizer que o preço justo é o preço «natural», em que «a quantidade de trabalho trocada em cada bem é a mesma». DeRoover salienta que os escolásticos espanhóis tardios Domingo de Soto e Luis de Molina denunciaram como falaciosa a máxima de Duns Scotus de que o preço justo é igual ao custo de produção mais um lucro razoável. Na verdade, Smith e Locke foram influenciados tanto pela corrente escolástica que adquiriram na sua formação filosófica, como pela ênfase calvinista na divindade do trabalho. É verdade que Smith acreditava que a livre concorrência acabaria por fazer com que os preços de mercado se aproximassem do «preço justo», mas é evidente que foi introduzido um perigo — um perigo que Marx explorou plenamente (e que, na verdade, persiste nas teorias da concorrência imperfeita, que são semelhantes à ênfase num mundo mais justo, onde reinam os preços «naturais» ou «óptimos»). Os tomistas, por outro lado, sempre centraram os seus estudos económicos no consumidor como a «causa final» aristotélica no sistema económico, e os fins do consumidor são a «busca moderada do prazer». No século XIX, diz Kauder, as influências religiosas no pensamento económico não eram importantes. Ele ressalta, no entanto, a importância da sua formação evangélica rigorosa para Alfred Marshall. O pai de Marshall era um evangélico muito rigoroso, e os evangélicos eram rigorosos revivalistas calvinistas. Talvez seja por isso que Marshall resistiu à teoria da utilidade e insistiu em manter grande parte da teoria dos custos de Ricardo, que ainda persiste como resultado.
Gostaria de acrescentar mais um comentário, no entanto. Os laissez-fairistas mais «dogmáticos» do século XIX não eram os britânicos, mas os economistas franceses (católicos). Bastiat, Molinari, etc. eram muito mais rigorosos do que os liberais ingleses, sempre pragmáticos. Além disso, a teoria do laissez faire foi desenvolvida em grande estilo pelos fisiocratas católicos, que foram directamente influenciados pelo pensamento da lei natural e dos direitos naturais.
Isto leva-me à segunda grande influência dos escolásticos católicos: a lei natural e a teoria dos direitos naturais. Certamente, a lei natural foi um grande obstáculo ao absolutismo estatal e teve início no pensamento católico. Schumpeter salienta que o direito divino dos reis era uma teoria protestante. A teoria da lei natural e dos direitos naturais também passou dos escolásticos para os filósofos morais franceses e britânicos. A conexão foi obscurecida pelo facto de muitos dos racionalistas do século XVIII, sendo ferrenhos anticatólicos, recusarem-se a reconhecer a sua dívida intelectual para com os pensadores católicos. Schumpeter, na verdade, afirma que o individualismo teve início no pensamento católico. Assim: «a sociedade era tratada (por Tomás de Aquino) como um assunto puramente humano e, além disso, como uma mera aglomeração de indivíduos reunidos pelas suas necessidades mundanas… o poder do governante derivava do povo… por delegação. O povo é soberano e um governante indigno pode ser deposto. Duns Scotus chegou ainda mais perto de adoptar uma teoria do contrato social do Estado. Este… argumento é notavelmente individualista, utilitarista e racionalista…”.2 History of Economic Analysis (Nova Iorque: Oxford University Press, 1954) pp. 91–92. Schumpeter também enfatiza a defesa da propriedade privada por Tomás de Aquino. Schumpeter menciona particularmente o espírito antiestatista do escolástico Juan de Mariana, 1599. Também trata a sua adopção do preço de mercado como essencialmente o preço justo, a teoria da utilidade, o valor subjectivo, etc. Diz que, enquanto Aristóteles e Scotus acreditavam que o preço competitivo normal era o justo, os escolásticos espanhóis posteriores identificaram o preço de mercado com qualquer preço competitivo, por exemplo, Luis de Molina. Eles também tinham uma teoria do padrão-ouro e também se opunham à desvalorização da moeda. Schumpeter também diz que de Lugo desenvolveu uma teoria do risco dos lucros empresariais, que, é claro, só foi totalmente desenvolvida na virada do século XX e mais tarde.3
Embora a teoria dos direitos naturais do século XVIII fosse muito mais individualista e libertária do que a versão escolástica, também há aqui uma continuidade definitiva. O mesmo se aplica ao racionalismo, sendo a razão o principal instrumento utilizado por Tomás de Aquino e combatida pelos protestantes, que baseiam a sua teologia — e a sua ética — numa Revelação mais emocional ou directa.
Podemos resumir os argumentos a favor do catolicismo da seguinte forma: (1) as visões laissez-faire e da lei natural de Smith descendem dos escolásticos tardios e dos fisiocratas católicos; (2) os católicos desenvolveram a utilidade marginal, a economia do valor subjectivo e a ideia de que o preço justo era o preço de mercado, enquanto os protestantes britânicos enxertaram uma teoria do valor do trabalho perigosa e, em última análise, altamente estatista, influenciada pelo calvinismo; (3) alguns dos teóricos mais «dogmáticos» do laissez-faire foram católicos: dos fisiocratas a Bastiat; (4) o capitalismo começou nas cidades católicas italianas do século XIV; (5) os direitos naturais e outras visões racionalistas descendem dos escolásticos.
Também recomendo, como um exemplo arrepiante da influência protestante-calvinista que levou a uma filosofia de socialismo altruísta, a leitura de Melvin Richter, «T. H. Green and His Audience: Liberalism as a Surrogate Faith» (T. H. Green e o Seu Público: o Liberalismo como uma Fé Substituta), Review of Politics (Outubro de 1956).
Embora tangencial a este memorando em particular, também recomendo vivamente Erik von Kuehnelt-Leddihn, Liberty or Equality (Caldwell, Id., 1952), cuja tese principal é que o catolicismo promove um espírito libertário (embora «antidemocrático»), enquanto o protestantismo promove o socialismo, o totalitarismo e um espírito colectivista. Um exemplo é a afirmação de Kuehnelt-Leddihn de que a crença católica na razão e na verdade tende ao «extremismo» e ao «radicalismo», enquanto a ênfase protestante na intuição leva à crença no compromisso, nas pesquisas de opinião, etc.
A opinião do professor von Mises sobre a tese de Max Weber deve ser mencionada aqui: nomeadamente, que Weber inverteu o verdadeiro padrão causal, ou seja, que o capitalismo surgiu primeiro e que os calvinistas adaptaram os seus ensinamentos à influência crescente da burguesia — e não o contrário.
Não estou preparado para dizer que o caso protestante deva ser completamente descartado e a visão católica adoptada na íntegra. Mas parece evidente que a história é muito mais complexa do que a visão habitual acredita. Certamente, os revisionistas fornecem uma excelente correcção.4 Sobre as questões específicas da teoria da utilidade e Adam Smith, posso endossar os revisionistas. Há muito tempo sinto que Adam Smith tem sido consideravelmente sobrestimado como um defensor ferrenho do laissez-faire.
Notas do editor.
- Cf. Randall Collins, um sociólogo weberiano, que também inverteu a tese de Weber ao usar os métodos de reconstrução histórica de Max Weber; ver Collins, WeberianSociologicalTheory (Cambridge, Reino Unido: Cambridge University Press, 1986), onde escreve: «A cristandade foi a principal revolução weberiana, criando as formas institucionais dentro das quais o capitalismo pôde emergir. A Reforma Protestante é apenas uma crise particular no final de um ciclo de longo prazo; ela deu origem a uma segunda decolagem, que erroneamente vemos como a primeira” (p. 76). ↩︎
- Joseph A. Schumpeter, History of Economic Analysis (New York: Oxford University Press, 1954) pp. 91-92. ↩︎
- Ver especialmente, Alejandro A. Chafuen, Faith and Liberty: The Economic Thought of the Late Scholastics (Lanham, MD: Lexington Books, 2003). ↩︎
- Rothbard desenvolveu posteriormente esta linha de ataque em grande detalhe; ver Murray N. Rothbard, Economic Thought Before Adam Smith: An Austrian Perspective on the History of Economic Thought, I (Cheltenham, UK: Edward Elgar, 1995), p. 31-175. ↩︎
Transcrição em inglês disponível no Mises Institute.