Em 1776, a Declaração de Independência deixou claro que na América, “Os governos são instituídos entre os homens, derivando os seus justos poderes do consentimento dos governados, e que sempre que qualquer forma de governo se torna destrutiva…, é direito do povo alterá-la ou aboli-la,…” A teoria do consentimento estabelecida pela Declaração é padrão na política americana. A Declaração, no entanto, não abordou uma questão muito importante: como é que os indivíduos expressam a sua desaprovação de um regime político e/ou retiram o seu consentimento de um governo que consideram “destrutivo”?
Existem vários métodos que os americanos utilizaram para demonstrar a sua falta de consentimento. Uma forma é renunciar à fidelidade a uma ordem política existente. Os colonos da América do Norte separaram-se do Império Britânico travando com sucesso a Guerra da Independência. Por outro lado, os onze estados confederados retiraram-se da união federal de 1861 a 1865, antes de serem reintegrados à força nos Estados Unidos.[1]
Uma segunda forma de alguém expressar a falta de consentimento é mudar-se para um país diferente. É o que vários comentadores chamaram de “opção de saída”[2]. A história ensina-nos que o último recurso do indivíduo contra a tirania é escapar à sua jurisdição. Os judeus abandonaram o Egipto; os separatistas fugiram de Inglaterra. A história está repleta de exemplos de pessoas que “votaram com os pés”.
Uma terceira forma pela qual as pessoas manifestam a falta de consentimento é não votar. Embora os analistas políticos possam não chamar a isto uma retirada de consentimento, o facto é que milhões e milhões de americanos demonstram o seu descontentamento com o seu governo ao não se registarem e/ou votarem em eleições políticas. Não votar representa uma saída da sociedade política. É uma forma silenciosa de “poder social” que diz muito. Optar por não votar pode ser uma forma de apatia, mas é simultaneamente uma expressão de “o que entendo ser melhor para mim”.
Por outras palavras, milhões de não eleitores estão implicitamente a afirmar que votar é uma actividade sem sentido e sem importância, no que se refere a eles e aos seus entes queridos nas suas próprias vidas. Afinal, os programas governamentais, as despesas e as políticas fiscais continuarão independentemente da forma como cada um votar. Além disso, para aqueles indivíduos bem pensantes que compreendem que o governo deve “fazer com que as pessoas votem”, a escolha de não votar é uma forma de capacitação pessoal e um acto de afirmação psicológica da vida.[3] Os homens e as mulheres que conscientemente optam por não participar na política expõem a mentira por detrás do mito do “governo por consentimento”. Não consentiram em nada. Por outras palavras, a decisão de não votar é uma forma de secessão pessoal — a forma de secessão que está mais prontamente disponível para eles.[4]
Esta escolha é exercida por muitos milhões de americanos porque compreendem que as eleições não são mais do que um jogo da corda entre democratas medíocres e republicanos medíocres. Ambos os partidos procuram o manto do poder para impor as suas agendas à sociedade. Os políticos de todos os partidos políticos querem continuar o fluxo de dinheiro dos impostos para o governo e aprovar leis que lhe permitam invadir cada vez mais as esferas sociais da vida quotidiana. Como observou um dia o comentador social, antigo candidato político e autor Gore Vidal: na verdade, só existe um partido político neste país, e tem dois ramos incestuosamente relacionados.[5]
Seja com base na intuição ou na compreensão prática, os não eleitores percebem que têm apenas um papel subordinado na estrutura política descrita por Vidal. Sem dinheiro, posição ou ligações, são impedidos de ter qualquer influência significativa no impacto do governo nas suas vidas. No entanto, apesar desta desvantagem, optar por não votar pode ter um efeito dramático e positivo na sociedade. Isto porque a sobrevivência de um governo depende de ter um número suficiente de pessoas que lhe dêem a aparência de legitimidade para agir e obter obediência.[6]
Quer se trate de uma intenção explícita ou de um resultado implícito, a decisão de não votar é uma forma de diminuir a legitimidade governativa. Como disse Vladimir Bukovsky, o dissidente russo:
“O poder não se baseia em nada além do consentimento das pessoas em se submeterem, e cada pessoa que se recusa a submeter-se à tirania reduzi-lo-à em um para duzentos e cinquenta milésimos, enquanto cada um que se compromete [com o poder] apenas o aumenta.”[7]
Finalmente, chega-se a um ponto em que um governo já não tem consenso suficiente para agir sob qualquer autoridade que não seja o exercício do poder puro e simples. Uma vez que a miragem da legitimidade desaparece, um governo deve tornar-se abertamente despótico para se manter no poder. Isto, por sua vez, tende a afastar ainda mais pessoas do seu apoio e pode colocar a sua existência em dúvida.
Isto não é especulação de gabinete. A história regista que variações deste cenário ocorreram inúmeras vezes.[8] Quem poderia prever que o regime de Ferdinando Marcos cairia do poder nas Filipinas? Quem imaginaria que o governo comunista na Polónia seria sucedido pelo Solidariedade? Quem imaginaria que a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas se iria “desintegrar” num ápice? No entanto, é normalmente uma surpresa para os “especialistas” quando isso acontece, porque ocorre rapidamente e numa altura em que um Estado parece, visto de fora, estar no auge do seu poder.
Este fenómeno de mudança social aparentemente súbita é explicado pela teoria da criticalidade auto-organizada do físico Per Bak.[9] Esta teoria, por exemplo, explica como milhões de grãos de areia podem ser metodicamente adicionados a uma pilha de areia aparentemente estável até que um “ponto crítico” seja atingido. Nesta altura, adicionar apenas mais um grão de areia desencadeará uma avalanche. A teoria do Professor Bak tem sido utilizada para ajudar a compreender coisas tão diversas como o fluxo de tráfego e a negociação de acções. É igualmente aplicável ao impacto deslegitimador que qualquer pessoa que não vote pode ter num regime político.
É possível que algum dia a ilegitimidade do governo dos EUA atinja o ponto crítico. O que aconteceria se os não eleitores veementes utilizassem os muitos métodos de comunicação modernos para expressar as suas ideias e insatisfações aos outros? À primeira vista, pode parecer absurdo considerar seriamente que o governo dos Estados Unidos possa perder a legitimidade. Não é. Como observou o sociólogo Sebastian Scheerer:
“[N]unca houve uma grande transformação social na história da humanidade que não tenha sido vista como irrealista, idiota ou utópica pela grande maioria dos especialistas, mesmo alguns anos antes de o impensável se tornar realidade.”[10]
Por uma série de razões que o autor francês Jacques Ellul descreveu no seu livro The Political Illusion, os não-eleitores optam por dissipar o mito de que os eleitores controlam o processo político.[11] Em vez de se rebaixarem e dignificarem as eleições que não têm impacto positivo nas suas vidas, mais de cem milhões de americanos optam regularmente por se distanciar do processo de votação e do regime político por ele legitimado. Fazem-no seleccionando a opção de não votar. Os que não votaram têm razão e estão a ganhar todas as eleições realizadas nos Estados Unidos.
- De notar que os Estados Confederados se separaram com sucesso e que cada estado teve de voltar a solicitar a admissão nos Estados Unidos. Os estados foram ocupados por tropas federais para os coagir a cumprir estas condições. Se o uso da coerção para obter o seu “consentimento” fosse ilegal e imoral (como seria obter uma assinatura num contrato comum), então o que é que isso diz sobre o estatuto destes estados hoje? ↩︎
- Ver Albert O. Hirschman, Exit, Voice, and Loyalty: Responses to Decline in Firms, Organizations, and States, Cambridge: Harvard University Press, 1970. ↩︎
- Ver “Remarks on the Psychological Aspects of Totalitarianism,” in Bruno Bettelheim, Surviving and Other Essays, New York: Vintage Books, 1980, pp.317-332 ↩︎
- Carl Watner, editor da antologia de não-voto, Dissenting Electorate, foi o primeiro a sugerir-me este conceito. ↩︎
- Ver Homage to Daniel Shays”, in Gore Vidal, Homage to Daniel Shays: Collected Essays 1952-1972, New York: Random House, 1972, pp.434-449. ↩︎
- Herbert C. Kelman and V. Lee Hamilton, Crimes of Obedience: Toward a Social Psychology of Authority and Responsibility, New Haven: Yale University Press, 1999, p.116. ↩︎
- Vladimir Bulovsky, To Build a Castle – My Life as a Dissenter, New York: The Viking Press, 1977, p.240. ↩︎
- Ver Kenneth Boulding, “The Impact of the Draft on the Legitimacy of the National State,” in Sol Tax (ed.), The Draft, Chicago: University of Chicago Press, 1967, pp.191-196. Ver também Joseph A. Tainter, The Collapse of Complex Societies, Cambridge: Cambridge University Press, 1997 (edição reimpressa). ↩︎
- Per Bak, How Nature Works: The Science of Self-Organized Criticality, New York: Springer-Verlag, 1996 ↩︎
- Sebastian Scheerer, “Towards Abolitionism,” in Contemporary Crises, Vol. 10, p.7; citado em Thomas Mathiesen, Prison on Trial: A Critical Assessment, Thousand Oaks: SAGE Publications, 1990, p.156. ↩︎
- Jacques Ellul, traduzido por Konrad Kellen, The Political Illusion, New York: Alfred Knopf, 1967. ↩︎
Artigo publicado originalmente em Voluntariyst.com