Um dos principais problemas do pensamento liberal clássico, perpetuado até aos dias de hoje, é a natureza da discussão sobre as legítimas funções do Estado. O liberalismo clássico (e o seu desenvolvimento moderno minarquista) responde a esta questão de forma sucinta: o Estado é a instituição que detém o monopólio territorial de violência, e sendo essa a sua natureza a sua única legítima função é administrar violência aos que quebram a lei. Geralmente, a lei no sentido liberal deve limitar-se a proteger os direitos de propriedade dos cidadãos1.
O liberalismo clássico pretendia, com essa limitação, abolir os privilégios pessoais do antigo regime e atingir uma unidade legal, procurando-a na investigação das legítimas funções do Estado. Mas se um residente dentro da jurisdição do Estado Mínimo é obrigado a pagar os serviços de protecção oferecidos pelo Estado e impedido de criar uma agência que produza esses mesmos serviços, então a lei produzida pelo Estado Mínimo para os residentes no território da sua jurisdição não se aplica ao próprio Estado – e o conjunto de indivíduos que constituem o Estado pode portanto fazer aos indivíduos não pertencentes a essa instituição o que esses indivíduos não podem fazer uns aos outros ou aos agentes do Estado. Esta criação política mantém a existência de classes antagónicas na sociedade tal como no regime monárquico e feudal – a eleição de representantes políticos por sufrágio universal apenas substitui os privilégios pessoais adquiridos por acaso de nascimento por privilégios funcionais adquiridos pelo voto da maioria2. É, pois, uma consequência natural da mera existência de um monopolista de lei e de ordem a existência de duas classes necessariamente antagónicas, e logo o ideal liberal da unidade da lei não é cumprido, dado que o grupo de indivíduos que controlam o aparelho de Estado tem necessariamente de viver da produção do sector privado. E como pode a legítima função do Estado ser a defesa dos direitos de propriedade de forma a abolir as distinções legais entre indivíduos, se para exercer essa função o Estado age sob uma lei diferente daquela aplicável a todas as outras associações e indivíduos na sociedade?
A teoria liberal-libertária moderna e contemporânea na sua vertente anarquística, ao demonstrar como o Estado viola, pela sua simples existência como monopólio e pela sua manutenção por meio de impostos, os próprios direitos de propriedade que é suposto defender, colocou a questão num novo patamar. Por um lado, salienta que antes de procurar legitimidade nas funções do Estado e tentar perceber quais devem ser essas funções, é necessário procurar legitimidade na própria instituição do Estado. Por outro, é necessário demonstrar a singularidade dos serviços que o Estado oferece, de forma a determinar se só uma instituição como o Estado os pode oferecer, ou se – pelo contrário – as mesmas premissas dos economistas clássicos sobre a desejabilidade e superior eficiência da competição livre sobre os monopólios se aplica. E por fim, com estas duas contenções ao liberalismo clássico, tornou verdadeiramente nula a questão da legitimidade das funções do Estado, já que a legitimidade das suas funções depende da legitimidade da sua autoridade sobre os cidadãos, e logo a pergunta prévia necessária é se a subscrição dos serviços do Estado e a subjugação à sua autoridade é voluntária3.
Um exemplo que ajuda a ilustrar a questão: numa sala um sujeito A está amarrado a uma cadeira e a ser chicoteado por outro sujeito B. Podemos, apenas por esta descrição, julgar a legitimidade ou ilegitimidade da situação? Não. Para julgar se o sujeito B está a agredir ou não o sujeito A, é necessário saber se o sujeito A está naquela situação por livre vontade ou não. É bem possível que A tenha sido raptado e esteja a ser torturado por B, e nesse caso os direitos de A foram violados e B é, naturalmente, um criminoso. Mas é também possível que A goste de ser amarrado e chicoteado, e tenha convidado ou até contratado B para o serviço, e nesse caso os direitos de A estão não apenas intactos, mas a ser exercidos – e B não é um criminoso.
Este exemplo é útil por duas razões: primeiro, demonstra como certos actos não podem em si ser avaliados como legítimos sem avaliar o estatuto prévio de quem os comete, sem investigar o carácter histórico da relação entre quem age e quem é afectado pela acção. E segundo, o carácter moralmente duvidoso da segunda hipótese (em que o sujeito A gosta de ser chicoteado e amarrado), ajuda a ilustrar que a ênfase de uma teoria política não deve ser a moralização do indivíduo (tarefa essa que deve ser deixada às religiões, famílias e instituições educativas da sociedade civil e não à lei e ao mecanismo que a administra). Se A tivesse concordado em ser amarrado e chicoteado, então a interrupção forçada da situação por um terceiro elemento C seria uma violação dos direitos de A e B, tal como B amarrar e chicotear A contra a sua vontade seria uma violação dos direitos de A.
Assim sendo, e embora sejam economicamente contraprodutivas, muitas intervenções no mercado levadas a cabo pelo Estado não podem ser necessariamente consideradas ilegítimas, a não ser pelo facto de ser o Estado a administrá-las, já que a subjugação do indivíduo ao Estado não é voluntária, mas obrigatória. A grande maioria das intervenções austísticas e triangulares no mercado4, podem pois ser legítimas desde que a autoridade que as administra não seja usurpada como no caso estatal, mas contratualmente concedida. Por exemplo, é perfeitamente possível e plausível que, numa sociedade de comunidades voluntariamente constituídas, comunidades mais conservadoras proíbam certas formas de licenciosidade e depravação (por exemplo, prostituição, drogas, jogo, etc.); e é perfeitamente possível que outras comunidades as permitam ou até encorajem. E embora a legitimidade moral dessas actividades ou da proibição das mesmas possa, e deva, ser discutida, uma tal discussão é separada e distinta, e não deve ser confundida com a discussão de filosofia política, em que, como os liberais clássicos notaram mas não aplicaram, o tema central e a ênfase deve cair nos direitos de propriedade, não na conduta individual. Porém, ao colocar a ênfase na questão das legítimas funções do Estado em vez de na legitimidade do mesmo, os liberais clássicos deixaram de discutir uma questão política, e passaram a discutir uma questão moral.
E igualmente, funções estatais consideradas como legítimas não podem ser avaliadas como tal ou como o seu contrário sem averiguar previamente o estatuto da autoridade sob a qual elas são praticadas. E embora possamos individualmente preferir que o Estado providencie serviços policiais e judiciais do que não os providencie de todo sem permitir que outros o façam, essa preferência é totalmente alheia à consideração da legitimidade do Estado para o fazer já que nessa circunstância, ao preferir que o Estado o faça, estamos numa situação de escolha forçada – entre usufruir da divisão do trabalho e da especialização oferecida por uma agência que exclui todas as outras do sector ou não usufruir de todo – uma situação em que a escolha fundamental nos é vedada. Deduzir que o monopólio factual e histórico de certas actividades (policiamento e tribunais) torna legítima a providência pública desses serviços – que é, em geral, a resposta do liberalismo clássico – é assumir à partida exactamente aquilo que se pretende provar: que o Estado tem uma base contratual que lhe concede autoridade para o efeito. Nenhum liberal clássico ou moderno conseguiu prová-lo, porém. Todas as teorias contratuais do Estado estão, de resto, repletas de misticismos e non sequiturs, de forma a evitar a admissão de que nenhum Estado foi jamais o produto de uma relação contratual com os seus sujeitos e de que a própria ideia de um monopolista territorial compulsório de protecção da propriedade privada exclui a possibilidade de contrato, pelo menos com as novas gerações que nascem já sob a sua autoridade e dentro do território monopolizado.
A partir do momento em que a participação e usufruto de uma comunidade é contratualmente estabelecida, a possibilidade do término do contrato é necessariamente uma pré-condição. Essa garantia fundamental da liberdade de escolha do indivíduo em relação à sua propriedade justamente adquirida é o que está em falta nas relações do indivíduo com o Estado, mesmo com um Estado que se limite a fornecer policiamento e tribunais. E nenhuma das suas funções pode ser considerada ultimamente legítima, se essa garantia não existir. Enquanto a autoridade do Estado não for contratualmente concedida5 então as suas acções, mesmo limitadas ao mínimo, não podem ser justificadas com recurso à ideia de propriedade privada, pois o simples facto de serem levadas a cabo por uma agência como o Estado contradiz o princípio que é suposto defender.
Notas e referências:
- Como se determinam esses direitos é, claro, uma discussão distinta – e os liberais, como outros movimentos políticos, dividem-se nesta questão fundamentalmente entre os jusnaturalistas e os utilitários. ↩︎
- «In a democracy no personal privileges or privileged persons exist. However, functional privileges and privileged functions exist. As long as they act in official capacity, public officials are governed and protected by public law and occupy thereby a privileged position vis-à-vis persons acting under the mere authority of private law (most fundamentally in being permitted to support their own activities by taxes imposed on private law subjects).» Hans-Hermann Hoppe, Democracy – The God that Failed: The Economics and Politics of Monarchy, Democracy, and Natural Order, Transaction Publishers, 2002, p.233 ↩︎
- Não é um acaso que mesmo os liberais clássicos aderiram quase sempre a uma teoria contratual para a existência do Estado, pois só ela permite a pergunta subsequente das funções legítimas da instituição. A equiparação do Estado a uma qualquer outra empresa e dos serviços do Estado a serviços oferecidos no sector privado é, no entanto, totalmente errónea – facto reconhecido por vários liberais clássicos sem no entanto retirarem a conclusão natural desse facto: de que o Estado não tem, nem pode ter, uma origem contratual. ↩︎
- Para uma análise praxeológica das intervenções austísticas, binárias e triangulares no mercado ver Murray Rothbard, Power and Market – capítulos 2, 3, 4 e 5. ↩︎
- Os autores anarco-capitalistas da tradição jusnaturalista (Rothbard – For a New Liberty, The Ethics of Liberty – e Hoppe – Democracy – the God that Failed; Economics and Ethics of Private Property) explicam que definindo-se o Estado como um monopolista territorial de lei e de financiamento compulsório, não é possível legitimar contratualmente esse tipo de autoridade. Ou seja, é impossível a uma agência privada obter essa posição sem violar os direitos dos indivíduos vivendo no território monopolizado. Robert Nozick discorda (Anarchy, State and Utopia, Blackwell Publishers, 1999, p. 15 -17). Já os autores anarco-capitalistas utilitários não se dedicam à questão, limitando-se a salientar as vantagens utilitárias de um sistema competitivo sobre o monopólio estatal. Mas essa é uma discussão distinta. ↩︎