[Este artigo apareceu na New Individualist Review, Volume 3, Número 3, outono de 1964, pp. 29-36, e é reimpresso aqui como uma visão presciente dos erros da velha crítica conservadora do libertarianismo e da vulnerabilidade do conservadorismo à tentação estatista].
A publicação de um simpósio sobre a questão “O que é o conservadorismo?”1 dá-nos a oportunidade de explorar mais uma vez um conjunto de questões frequentemente levantadas nestas páginas – as que têm a ver com as diferenças entre libertarianismo e conservadorismo. Neste artigo, não tentarei abordar todas as áreas cobertas por essas diferenças, nem os ensaios de todos os doze colaboradores do simpósio de Meyer. Em vez disso, tratarei apenas de alguns aspectos da tentativa de reconciliação das duas filosofias que dá pelo nome de “fusionismo”.
Frank S. Meyer e M. Stanton Evans são os dois expoentes mais notáveis da posição fusionista, e apresentam o seu caso em dois ensaios no presente volume.2 O problema que estão a tentar resolver pode ser enunciado da seguinte forma: o termo “conservador”, quando aplicado a vários escritores na América de hoje (especialmente quando aplicado por escritores social-democratas, que normalmente têm pouca familiaridade com a literatura), parece, numa análise mais atenta, ser um equívoco. Os autores das duas declarações seguintes, por exemplo, embora sejam ambos por vezes considerados “conservadores”, têm claramente abordagens muito divergentes a uma questão tão básica como a natureza do governo:
“Na experiência da humanidade, o governo sempre figurou como uma instituição que representa publicamente percepções partilhadas sobre o significado da vida, Deus, o homem, a natureza, o tempo.3”
“A sociedade não pode existir se a maioria não estiver disposta a impedir, pela aplicação ou ameaça de acção violenta, que as minorias destruam a ordem social. Este poder é conferido ao Estado ou ao governo… O governo é, em última instância, o emprego de homens armados, de polícias, soldados, guardas prisionais e carrascos. A característica essencial do governo é a aplicação dos seus decretos através de espancamento, morte e prisão.4”
Existem, de facto, como Meyer e Evans salientam, dois grupos distintos de escritores que o termo “conservador”, no seu sentido actual, engloba: aqueles cujos antepassados intelectuais se encontram principalmente nas fileiras dos liberais clássicos dos séculos XVIII e XIX (este grupo inclui Hayek, Friedman, von Mises, etc.), e aqueles que remontam as suas ideias principalmente a Burke e aos conservadores do século XIX (Kirk é o representante mais conhecido deste grupo, que também inclui outros associados à National Review e à Modern Age). O primeiro grupo é designado por Meyer por “libertários” e o segundo por “tradicionalistas”. Muitas vezes, os libertários e os tradicionalistas atacam-se vigorosamente uns aos outros, e alguns em cada campo têm mesmo afirmado que os dois pontos de vista estão fundamentalmente em desacordo absoluto.
É verdade que os membros das duas facções têm muitas vezes opiniões semelhantes sobre questões de importância política imediata (o que é uma das principais razões pelas quais são vistos como facções de um movimento), mas qualquer pessoa que tenha lido os trabalhos dos dois grupos está ciente de que existem diferenças significativas a um nível mais básico. Estas têm a ver com questões como o peso dado à tradição, os argumentos usados para a liberdade, a prioridade permitida à liberdade em relação a outros valores (ordem, virtude, etc.), bem como com (como as citações de Niemeyer e von Mises mostram) o que eu temo que tenhamos que chamar de “pressuposições filosóficas” dos dois pontos de vista. A tarefa imponente que os fusionistas empreenderam, então, é resolver as diferenças entre libertários e tradicionalistas – e isso mostrando que ambos têm algo de valor fundamental para contribuir para um “conservadorismo” comum (pois esse é o nome do movimento amalgamado), e que ambos estão igualmente em falta em certos aspectos.
O que o libertário (ou liberal clássico) tem para oferecer, defendem os fusionistas, é uma boa compreensão do significado da liberdade, dos perigos que esta enfrenta e, sobretudo, da ligação entre a liberdade económica e as outras formas de liberdade. Mas engana-se ao ignorar o “valor” e a lei moral, e ao não compreender o objectivo e a razão de ser da liberdade, que é a “virtude”.
O tradicionalista, por outro lado, é a figura complementar do libertário, e traz para a síntese um – como diz a frase – profundo compromisso com o valor moral, com a virtude e assim por diante. Além disso, ele compreende o papel que a tradição deve desempenhar na vida da sociedade, enquanto o libertário tipicamente “rejeita a tradição”. Assim, o palco está montado para a síntese, que consistirá numa filosofia política desenvolvida com base na “razão operando dentro da tradição” e defendendo a liberdade como o mais alto fim secular do homem e a virtude como o mais alto fim do homem tout court.
Como se verá, seria impossível fazer aqui uma crítica exaustiva desta tese.5 O que vou tentar fazer, portanto, é simplesmente desbravar terreno, examinando alguns pontos da tese fusionista, com o objectivo de ajudar a fornecer a base para uma discussão mais analítica e menos retórica destas questões do que tem sido por vezes o caso no passado.
Antes de se poder determinar em que medida, se alguma, o liberalismo clássico6 deve ser modificado, é absolutamente crucial, como é óbvio, que se tenha uma concepção correcta do que significa o liberalismo clássico. Parece-me, no entanto, que, a este respeito, os escritores conservadores e fusionistas, embora bastante dogmáticos, estão também bastante enganados. Regra geral, têm o hábito de tratar o liberalismo de uma forma casual e desinteressada, quase nunca apresentando provas concretas para fundamentar as suas afirmações um tanto ou quanto livres. Correndo o risco de parecer injusto com M. Stanton Evans – o que não é certamente a minha intenção – vou submeter a sua concepção do liberalismo clássico, que me parece bastante típica desta visão, a uma análise alargada.
Evans afirma:
“O libertário, ou liberal clássico, tem como característica negar a existência de uma ordem moral centrada em Deus,7 à qual o homem deve subordinar a sua vontade e razão. Alegando a liberdade humana como o único imperativo moral, ele é um relativista, pragmatista e materialista completo. [p. 69]”
Nesta declaração surpreendente, Evans afirma o seguinte sobre o “típico” liberal clássico ou libertário:
- ele nega a existência de uma ordem moral centrada em Deus;8
- ele alega que a liberdade humana é o único imperativo moral;
- além de (2), ele é um completo relativista, pragmatista e materialista.
Vamos lidar com estas alegações em pormenor.
(1) Isto é falso, evidentemente, no que diz respeito aos muitos liberais que eram cristãos (por exemplo, Ricardo, Cobden, Bright, Bastiat, Madame de Stael, Acton, Macaulay, etc.).9 De facto, muitos liberais clássicos (incluindo os actuais) sentiram que a ligação entre as suas opiniões políticas e religiosas e éticas era muito íntima. Frédéric Bastiat, por exemplo, que, devido à sua “superficialidade” e “optimismo superficial”, é por vezes considerado o exemplo paradigmático de um liberal clássico, expressou-se da seguinte forma no final de uma das suas obras mais importantes:
“Há uma ideia principal que percorre toda esta obra, que permeia e anima cada página e cada linha; e essa ideia está incorporada nas palavras iniciais do Credo Cristão – EU ACREDITO EM DEUS.10”
John Bright foi o homem que, com Cobden, e durante vinte anos após a morte de Cobden, foi o líder da Escola de Manchester na política e no pensamento político e económico britânicos – certamente um liberal típico, se é que isso existe. No entanto, a seguinte caracterização de Bright, feita pelo seu biógrafo mais autorizado, dificilmente parece compatível com a descrição de Evan:
“O sentimento religioso, na sua forma mais simples, era a própria base da sua vida. Foi sempre um “Amigo” [i.e., Quaker] antes de tudo; e um servo de Deus; um homem de profunda devoção, embora cada vez mais silenciosa.11”
Embora os cristãos fossem provavelmente, e os teístas certamente, a maioria, é verdade que um certo número de liberais eram ateus ou (muito mais frequentemente) agnósticos: J. S. Mill, Herbert Spencer, John Morley, etc. No entanto, há que salientar o seguinte:
(a) a negação de uma “ordem moral centrada em Deus” não foi mais característica do liberalismo clássico do que a sua afirmação;
(b) mesmo que uma maioria de liberais tivesse sido ateia e agnóstica, a ligação é até agora acidental e historicamente condicionada, e não lógica;
(c) supondo que a maioria dos liberais tenha sido contaminada pela descrença, de uma forma ou de outra, Evans continua a não apresentar razões para rejeitar o liberalismo de escritores cristãos como Bastiat.
(2) A segunda acusação – de que o liberal clássico ou libertário alega “a liberdade humana como o único imperativo moral” – dificilmente pode ser levada a sério. Será que Evans quer dizer que os liberais caracteristicamente não acreditam que a benevolência, ou mesmo a ausência de malícia, seja moralmente imposta aos homens? Isto não pode ter sido verdade para os muitos liberais cristãos, e também não foi o caso dos não-cristãos, muito menos dos utilitaristas benthamitas entre eles. Evans menciona apenas dois nomes em relação à sua descrição geral: J. S. Mill e Herbert Spencer. Spencer afirma explicitamente que, para além da justiça (respeito pelos direitos dos outros), o código moral impõe tanto a beneficência “negativa” como a “positiva”, sendo esta última a capacidade de receber a felicidade da felicidade dos outros.12 Esta pode não ser uma visão especialmente elevada das nossas obrigações morais, mas é, no entanto, suficiente para contradizer a afirmação de Evans, pelo menos no que diz respeito a um dos dois únicos escritores que menciona pelo nome. Mas a afirmação é ainda mais errónea no que diz respeito aos liberais utilitaristas. J.S. Mill deixa clara a sua posição no seu conhecido ensaio “Utilitarismo”:
“Devo repetir mais uma vez o que os defensores do utilitarismo raramente têm a justiça de reconhecer, que a felicidade que forma o padrão utilitário do que é correcto na conduta não é a felicidade do próprio agente, mas a de todos os envolvidos. Entre a sua própria felicidade e a dos outros, o utilitarismo exige que ele seja um espectador estritamente imparcial, desinteressado e benevolente. Na regra de ouro de Jesus de Nazaré, observamoso espírito completo da ética da utilidade. Fazer o que gostarias que te fizessem e amar o teu próximo como a ti mesmo constituem a perfeição ideal da moral utilitarista.13”
Longe de ser “característica” do liberalismo clássico, (2) é um atributo para o qual duvido que se possa encontrar um único exemplo em toda a história do liberalismo.
(3) Evans não nos dá praticamente nenhuma ideia do que pode querer dizer com estes três termos altamente carregados, “materialista”, “relativista” e “pragmatista”, pelo que teremos de lidar com eles o melhor que pudermos.
“Materialista” pode ter um significado filosófico exacto ou um significado vulgar e solto. Tomada no primeiro sentido, a afirmação seria absurda: se alguma metafísica fosse característica do liberalismo, seria provavelmente o idealismo, de uma forma ou de outra, e não o materialismo. Tomada no sentido vulgar de vício ou de adesão aos prazeres “materiais” (geralmente sensuais), a afirmação também é inválida. De facto, não vale a pena refutá-la, uma vez que, para apoiar esta alegação, Evans apenas apresenta uma declaração de Ernest Renan. No entanto, podemos também salientar que, mesmo ignorando o facto de que “materialista” não é uma descrição justa da forma de hedonismo de Bentham, e certamente não da de J. S. Mill, os liberais alemães do período clássico – por exemplo, von Humboldt e Kant – e os liberais franceses da Restauração – por exemplo, Constant e Madame de Stael – tinham seguramente ideias sobre ética e o destino do homem independentes de qualquer forma de filosofia do prazer.
Na opinião de Evans, os liberais eram também tipicamente “pragmáticos”. Não é claro se isto quer dizer que eram seguidores de Peirce e William James ou, num sentido mais lato, que acreditavam que a verdade era “o que funciona”. Seria fastidioso tentar salvar esta afirmação emprestando-lhe um significado semi-razoável, e depois mostrar que, mesmo assim, não tinha qualquer fundamento de facto. A refutação da afirmação, portanto, aguardará que lhe seja atribuído algum sentido.
Evans também afirma em (3) que os liberais, para além da sua adesão à liberdade, têm sido completos “relativistas morais”.14 Isto traz à tona uma questão que é frequentemente levantada pelos conservadores: muitas vezes, a essência da “crise moral da nossa era” é vista no declínio da fé em “valores absolutos”. Deveria ser claro que a questão do relativismo moral vs. absolutismo moral não pode sequer ser abordada de forma inteligente até sabermos o que se deve entender por estes termos, mas os conservadores, ao discutirem o assunto, geralmente não indicam o seu significado. Em geral, na discussão filosófica, os sentidos mais importantes do termo “relativismo moral” parecem ser:
(a) a ideia de que as regras morais são derrogáveis, ou seja, não são incondicionalmente válidas; e, mais frequentemente,
(b) a ideia de que “é logicamente possível que duas pessoas aceitem afirmações éticas verbalmente conflituantes sem que pelo menos uma delas esteja errada. ”15
(a) A ideia de que as regras morais devem ser absolutas no sentido de que são vinculativas em todas as condições empiricamente possíveis parece ser um sentido em que os conservadores usam frequentemente o termo. E, no entanto, parece-me uma posição dificilmente defensável. Será, afinal, possível citar uma única injunção moral com conteúdo (não, por exemplo, “É bom fazer a vontade de Deus”) e com aplicação a questões sociais (não, por exemplo, “É bom amar a Deus”) que seja incondicionalmente válida? Seria, por exemplo, inadmissível, em todas as condições possíveis, tirar a vida a um homem que se sabe estar inocente? Parece-me que se podem imaginar circunstâncias em que isso seria a coisa razoável – talvez até moral – a fazer. Independentemente de ser ou não apoiado pelos liberais clássicos, o absolutismo moral neste sentido parece-me ser uma posição insustentável, cuja rejeição não pode ser legitimamente usada como base para censurar alguém.
(b) O sentido mais comum de “relativismo moral” é a posição de que é possível que afirmações éticas aparentemente contraditórias sejam verdadeiras ao mesmo tempo. Um relativista neste sentido pode defender, por exemplo, que as afirmações éticas são simplesmente relatos dos sentimentos subjectivos do orador e, por conseguinte, a afirmação “O homicídio é mau” pode ser verdadeira ou falsa, dependendo dos sentimentos reais da pessoa que a proferiu. Uma outra forma deste segundo sentido seria a de um relativista que poderia defender que é impossível fazer juízos éticos que transcendam os limites das diferentes sociedades e que uma afirmação ética pode ser “verdadeira” numa sociedade e “falsa” noutra. No entanto, neste sentido de relativismo, os utilitaristas (para considerar o grupo que Evans provavelmente tem em mente) eram absolutistas quase paradigmáticos. A razão para isto é óbvia. Para qualquer situação em que se deva fazer um juízo ético, os factos são o que são: uma decisão maximizará a felicidade, enquanto uma decisão diferente não a maximizará.16 Assim, embora possamos estar enganados na nossa decisão, ainda assim, em princípio, há apenas um juízo verdadeiro em cada situação ética.
Assim, dos dois sentidos mais importantes de “absolutismo moral”, um é um sentido em que, independentemente do que os liberais possam ter pensado, não pode ser razoavelmente defendido; o outro é um sentido para o qual se podem encontrar muitos adeptos do absolutismo moral entre os liberais clássicos.
Gastei muito tempo – e provavelmente também a paciência do leitor – a discutir estas duas frases. Mas a minha justificação reside principalmente na circunstância de estas afirmações resumirem bem a concepção incorrecta – “impressão” seria talvez uma palavra melhor – do liberalismo clássico que muitos conservadores têm e propagam. É bem possível que o liberalismo clássico seja superficial, irrealista e obsoleto; aparentemente, os conservadores actuais estão ansiosos por se juntarem à maior parte do resto do século XX para o anunciar.
Mas antes de podermos aceitar esta avaliação – e com ela a ideia de que o liberalismo tem de ser, pelo menos, substancialmente modificado – temos de estar convencidos, como até agora não estamos, de que foi realmente o liberalismo clássico que foi derrotado, e não um engodo.
Agora quero voltar a minha atenção para um dos principais problemas que o fusionismo de Meyer e Evans deve tentar resolver: o da tradição. O papel da tradição é muitas vezes visto como o ponto crucial da divisão entre as duas alas do que é alegadamente um movimento basicamente único; os tradicionalistas, não por acaso, enfatizam a tradição, enquanto os libertários a rejeitam. Mas o que está aqui em causa seria muito mais claro se, em vez de referências desdenhosas à Revolução Francesa e à “apoteose da razão”, os escritores conservadores e fusionistas tivessem delineado, de uma forma mais ou menos sistemática, o que têm em mente quando falam de “tradição”, o que reivindicam para ela e porquê. Em nenhum lugar a falta de precisão em toda esta área é mais lamentável do que na afirmação repetida de que os liberais clássicos “rejeitam a tradição”. A rejeição da tradição pode significar muitos tipos diferentes de coisas, e dependendo do que se quer dizer, pode ser uma coisa boa ou má.
Se isso significa, por exemplo, que a tradicionalidade de uma ideia não deve ser tomada pelo filósofo político como um argumento para a sua verdade, então a rejeição da tradição, tanto quanto posso ver, é totalmente inaceitável. Porque defender a verdade de uma afirmação com base no facto de ter sido a crença tradicional da nossa sociedade pressupõe que qualquer crença que tenha sido tradicionalmente aceite pela nossa sociedade é muito provável que seja verdadeira. Mas os exemplos contrários são demasiado abundantes para permitir qualquer confiança em tal premissa. Assim, o recurso à tradição numa argumentação abstracta e especulativa é inválido.
Por outro lado, quando dizemos que uma pessoa aceita a tradição, podemos querer dizer que ela acredita que a tradição deve desempenhar um papel importante, não na avaliação de verdades putativas, mas no funcionamento da sociedade, o que é obviamente uma coisa diferente. Neste caso, uma pessoa pode argumentar da seguinte forma: a ciência é uma coisa e a vida é outra. Uma dúvida cartesiana sistemática pode ser útil no empreendimento científico, mas, aplicada à vida social, tornaria a humanidade como uma “coisa de pouca dura”. É necessário para a continuidade da sociedade, poder-se-ia argumentar, que uma boa parte do nosso código moral, por exemplo, seja tomado simplesmente por fé, pelo menos pela grande maioria das pessoas, e provavelmente por toda a gente. Seria intolerável que a existência de uma sociedade organizada dependesse do facto de cada indivíduo chegar às regras morais indispensáveis através do seu próprio raciocínio. Assim, deve haver um meio de vincular as pessoas a essas regras. Um dos meios mais poderosos, continua o argumento, é a tradição. As pessoas que não poderiam seguir os argumentos abstractos para o código moral obedecem-lhe, no entanto, devido ao afecto e à consideração que rodeiam os costumes que foram seguidos durante muito tempo. Ora, este é um argumento plausível, e pode muito bem, estar substancialmente correcto. O que é importante perceber, no entanto, é que envolve algo completamente diferente de manter a verdade de uma dada afirmação com base na sua tradicionalidade.
Agora, a segunda categoria pode ser subdividida: há tradições que são mantidas no sector social (tipicamente o sector da interacção livre entre indivíduos) e há tradições que pertencem ao sector governamental (tipicamente o sector da força ou da ameaça da força). Um exemplo de tradicionalidade no sector social seria a continuação do cristianismo nas suas formas recebidas, como resultado das decisões privadas, hábitos, etc., das pessoas; um exemplo no domínio da actividade governamental é (ou era, há 200 anos) a continuação da perseguição dos “hereges” protestantes em França, Espanha, etc. – ou seja, uma tradição que envolve a interferência violenta nas acções pacíficas dos indivíduos.
Ora, um liberal clássico pode ser ateu, ou pode ser cristão, ou pode ter qualquer outra posição sobre esta questão. Se for ateu, é provável que desaprove pessoalmente a continuação do cristianismo como religião livremente aceite pelos indivíduos; a sua opinião pessoal será provavelmente a de que as pessoas seriam mais felizes, mais racionais, ou o que quer que seja, se abandonassem o cristianismo. Se o liberal clássico é cristão, então presumivelmente ficará satisfeito por ver a continuação da tradição da crença cristã. Assim, sobre esta questão relativa a uma tradição no sector social, os liberais podem ter várias opiniões pessoais, mas o liberalismo em si não tem quaisquer recomendações políticas a fazer; não se preocupa, de facto, com o assunto. Qual é a sua posição em relação ao segundo tipo de acordo tradicional, o que diz respeito ao sector governamental?
Aqui, antes de podermos responder a esta questão, somos obrigados a fazer ainda outra distinção (e, no que diz respeito à controvérsia libertário-conservadora, possivelmente a mais importante a ser feita): há alguns arranjos governamentais tradicionais que envolvem interferência nos direitos básicos do indivíduo – a perseguição dos protestantes em França durante o Antigo Regime, por exemplo. Outras, porém, dizem respeito à estrutura do próprio governo e podem, em primeira instância, não ter nada a ver com os direitos individuais, como, por exemplo, a adesão tradicional ao bicameralismo. No caso do primeiro tipo de arranjo governamental tradicional, o liberal clássico, caracteristicamente e pela lógica dos seus princípios, recomenda a abolição da tradição, ou seja, recomenda que o governo deixe de fazer certas coisas. Relativamente a esta categoria, então, pode dizer-se que o liberal “rejeita a tradição” – isto é, defende que a tradicionalidade do acordo não pode ser um argumento a seu favor. Deve ser testado à luz de certos padrões e, se for considerado deficiente, devem ser tomadas medidas para a sua eliminação.
O caso é diferente com o segundo tipo de acordo governamental tradicional: o que diz respeito à estrutura do próprio governo, como, por exemplo, a extensão e as condições do direito de voto, e a forma do governo (monarquia constitucional, república, etc.).
Estas questões não envolvem direitos individuais básicos, no sentido em que a liberdade religiosa e a liberdade de servidão involuntária são básicas. A sua função, do ponto de vista liberal, é contribuir para a preservação dos direitos fundamentais e, por isso, podem variar muito, consoante os tempos e os lugares. Como disse Edouard Laboulaye, provavelmente o mais importante liberal francês do final do século XIX:
“Qualquer que seja a época ou o país, qualquer que seja a forma de governo ou o grau de civilização, todo o homem tem necessidade de exercer as suas faculdades físicas e espirituais, de pensar e de agir. Russo ou inglês, francês ou turco, todo o homem nasce para dispor da sua pessoa, das suas acções e dos seus bens… Com as liberdades políticas não é a mesma coisa; elas mudam consoante a época e o país. Não são necessárias sempre as mesmas garantias [de liberdade]; assim como varia a forma de ataque, também varia a de defesa.17”
Para resumir a nossa classificação bastante grosseira dos sentidos da tradição (que é oferecida, com algum receio, como uma base provisória para a discussão)
- I. tradição no discurso científico e filosófico: a aceitação tradicional de uma afirmação verdadeira pode ser aduzida como prova em apoio da afirmação;
- II. Tradição no funcionamento da sociedade: a tradicionalidade de um arranjo social pode ser aduzida como uma boa razão para continuar o arranjo. Isto pode aplicar-se a:
- A. ao sector social (não governamental), ou seja, a tradições que não envolvem acção governamental, ou a
- B. ao sector governamental. Neste ponto B, temos
- I. tradições políticas que violam os direitos individuais básicos, e,
- II. tradições políticas (principalmente as que têm a ver com a estrutura do próprio governo) que não violam os direitos individuais básicos.
Ao considerar as diferenças entre o libertarianismo e o fusionismo (bem como o conservadorismo), eu situaria o desacordo significativo e desafiador em relação à tradição principalmente em II A. Isto é, enquanto o liberalismo clássico se limita, em regra, a tentar assegurar os direitos individuais operando no sector governamental (e neste esforço pode muito bem fazer uso de elementos políticos tradicionais), os escritores fusionistas e conservadores afirmam que certas tradições no sector social devem ser frequentemente consideradas como condições necessárias para a preservação da liberdade e devem ser activamente cultivadas e promovidas por todos os defensores de uma sociedade livre. Isto é especialmente verdade, na sua opinião, no que respeita à religião. A ideia é por vezes sugerida por Meyer e Evans, e é colocada de forma sucinta por Stephen Tonsor, no seu interessante ensaio “The Conservative Search for Identity”, no presente volume:
A religião é importante para o Estado democrático, não só porque preserva o tecido da sociedade, mas também porque actua como o poder mais importante para controlar as tendências agressivas, centralizadoras e totalitárias do Estado moderno. Sem uma religião forte, que se mantenha à margem e independente do poder do Estado, a liberdade civil é impensável. O poder do Estado é, em parte, equilibrado e neutralizado pelo poder da Igreja. A liberdade do indivíduo é mais segura naquele domínio que nem a igreja nem o estado podem ocupar e dominar com sucesso. [p. 1501]
Isto representa, evidentemente, uma hipótese histórica e sociológica relativa a uma alegada ligação causal entre religião e liberdade. Se for verdadeira, poderia indicar que certas recomendações políticas poderiam ser feitas e que o libertarianismo tenderia a desaprovar (o próprio Tonsor defende que o dinheiro dos impostos deve ser usado para apoiar as escolas da igreja). Em todo o caso, é uma tese que deveria, penso eu, ser elaborada e examinada de forma crítica e desapaixonada, pois parece-me ser a mais interessante e a mais plausível das afirmações fusionistas.
Esta é apenas uma de uma série de questões importantes levantadas pelo fusionismo que é impossível abordar aqui. A afirmação de que os libertários acreditam na “bondade inata do homem” e erram ao ignorar a realidade do “pecado original” (o que quer que estas duas noções signifiquem) também deveria ser submetida a um exame crítico, quanto mais não seja pelo facto de ser frequentemente avançada. Mais importante seria provavelmente uma discussão do objectivo principal do fusionismo: em vez do nosso apoio a uma sociedade livre para todos os nossos vários fins (ou simplesmente para si mesma), substituí-lo pelo apoio a ela porque é um meio para um fim particular, nomeadamente a “virtude”, seja qual for o sentido que Meyer e Evans atribuem ao termo.
Por último, deve ser evidente que nada do que aqui foi dito deve ser entendido como uma indicação de hostilidade ou rancor para com os autores cujos escritos foram discutidos. Ao contrário de alguns conservadores, a preocupação real de Meyer e Evans com a liberdade é óbvia. E que as suas intenções são boas é evidenciado pela declaração de Meyer:
…o desenvolvimento de uma doutrina conservadora comum, compreendendo ambas as ênfases (tradicionalista e libertária), não pode ser alcançado de forma superficial, apagando as diferenças ou obscurecendo as distinções intelectuais com fraseologia grandiosa. [p. 18, ênfase acrescentado].
Sem dúvida, um juízo verdadeiro e importante. É lamentável que, no calor da batalha, seja demasiadas vezes esquecido.
- Frank S. Meyer, ed., What is Conservatism? (New York: Holt, Rinehart and Winston, 1964). 242 pp. ↩︎
- Meyer, “Freedom, Tradition, Conservatism”; Evans, “A Conservative Case for Freedom.” ↩︎
- Gerhart Niemeyer, “Risk or Betrayal? The Crossroads of Western Policy,” Modern Age, Spring, 1960, p. 124. O contexto deixa claro que o Prof. Niemeyer lamenta o desaparecimento desta concepção de governo. ↩︎
- Ludwig von Mises, Human Action (New Haven: Yale University, 1949, pp. 149, 715.) ↩︎
- Para uma discussão mais alargada da posição fusionista, ver o artigo de Ronald Hamowy, Modern Age: “Classical Liberalism and Neo-Conservatism: Is a Synthesis Possible?” ↩︎
- No que se segue, utilizarei os termos “liberalismo clássico”, “liberalismo” e “libertarianismo” indistintamente. ↩︎
- Numa nota de rodapé do seu ensaio (p. 232), Evans afirma que está a usar “libertário” para significar “a forma quimicamente pura do liberalismo clássico”, incluindo a “aceitação de [uma] filosofia anti-religiosa”. Presumivelmente, ele abandonou esta terminologia na passagem aqui citada. Porque se não o fez, então a afirmação da anti-religiosidade do libertário seria meramente uma tautologia desinteressante, implicada pela terminologia pessoal de Evans, e, além disso, a passagem teria então de ser lida: “O libertário, ou liberal clássico, nega necessariamente…” ↩︎
- É difícil perceber porque é que Evans modifica a expressão “ordem moral centrada em Deus” com a cláusula “à qual o homem deve subordinar a sua vontade e razão”. Presumivelmente, a afirmação da existência de qualquer ordem moral implica que se deve subordinar a vontade a ela. Quanto à subordinação da razão a esta ordem, considero que isto implica que a ordem moral de Deus não é conhecível apenas pela razão. É impossível dizer por que razão uma tal visão, mesmo supondo que o libertário típico a defendesse, deveria ser considerada associada ao livre-pensamento e ao ateísmo. Pois parece ser precisamente a posição da Igreja Católica: “Enquanto, portanto, o católico acredita que a lei moral é conhecível ao homem por pura razão e experiência, sendo a lei da própria natureza do homem, ele acredita que o cumprimento ou não cumprimento dela tem implicações mais do que naturais.” Thomas Corbishley, S. J., Roman Catholicism (Londres: Hutchin’s University Library, 1950), p. 57 (itálico acrescentado). Como não vejo que esta cláusula possa levar a outra coisa senão a uma confusão da questão, sinto-me justificado em ignorá-la. ↩︎
- Embora seja logicamente possível ser cristão e, ao mesmo tempo, ter outro “centro” que não Deus para o seu sistema moral, a regra tem sido que aqueles que professam o cristianismo atribuem a Deus o papel central nos seus sistemas éticos. Por conseguinte, considero a fé cristã de um liberal clássico como uma refutação prima facie da afirmação de Evans. ↩︎
- Harmonies of Political Economy (Edinburgh: Oliver and Boyd, 1870). Part 11, p. 150. Ênfase no texto. ↩︎
- G. M. Trevelyan, The Life of John Bright (Boston: Houghton Mifflin, 1914, p. 104) ↩︎
- Social Statics (New York: Appleton, 1880, pp. 83–84.) ↩︎
- Utilitarianism On Liberty and Representative Government (New York: Dutton, 1950, p. 16.) ↩︎
- Às vezes Evans insinua que, não só os libertários são relativistas morais, mas que, em consequência disso, eles nem sequer defendem que algo é imoral! Por exemplo, (dirigindo-se aos libertários): “Se não houvesse padrões objectivos de certo e errado, porquê opor-se à tirania? Se o assassínio e o roubo não são imorais, porquê opor-se a eles, quer individualmente, quer em massa?” (p. 72: itálico no texto). No entanto, vamos ocupar-nos apenas da primeira afirmação. ↩︎
- Richard B. Brandt, Ethical Theory (Engelwood Cliffs, N. J.: Prentice Hall, 1959, pp. 271, 154.) ↩︎
- Estou a ignorar os raríssimos casos em que a utilidade líquida de dois cursos de acção diferentes será exatamente a mesma. ↩︎
- Edouard Laboulaye, Le Parti Liberal: son Programme et son Avenir (Paris, 1871, pp. 121–25.) ↩︎
Artigo republicado originalmente no Mises Institute.