O dogma fundamental de todas as marcas do socialismo e do comunismo é que a economia de mercado ou o capitalismo é um sistema que fere os interesses vitais da imensa maioria das pessoas para o benefício exclusivo de uma pequena minoria de fortes individualistas. Condena as massas ao empobrecimento progressivo. Provoca a miséria, a escravatura, a opressão, a degradação e a exploração dos trabalhadores, ao mesmo tempo que enriquece uma classe de parasitas ociosos e inúteis.
Esta doutrina não foi obra de Karl Marx. Ela foi desenvolvida muito antes de Marx entrar em cena. Os seus propagadores mais bem-sucedidos não foram os autores Marxianos, mas homens como Carlyle e Ruskin, os Fabianos britânicos, os professores alemães e os Institucionalistas americanos. E é um facto muito significativo que a correcção deste dogma tenha sido contestada apenas por alguns economistas que foram rapidamente silenciados e impedidos de aceder às universidades, à imprensa, à liderança dos partidos políticos e, em primeiro lugar, aos cargos públicos. A opinião pública aceitou, em geral, a condenação do capitalismo sem qualquer reserva.
1. O Socialismo
Mas, claro, as conclusões políticas práticas que as pessoas tiraram deste dogma não foram uniformes. Um grupo declarou que só há uma maneira de eliminar estes males, nomeadamente abolir completamente o capitalismo. Advogam a substituição do controlo privado pelo controlo público dos meios de produção. O seu objectivo é o estabelecimento daquilo a que se chama socialismo, comunismo, planeamento ou capitalismo de estado. Todos estes termos significam a mesma coisa. Já não são os consumidores que, através da sua compra ou abstenção de compra, determinam o que deve ser produzido, em que quantidade e com que qualidade. A partir de agora, só uma autoridade central deve dirigir todas as actividades de produção.
2. O Intervencionismo, Alegadamente uma Política de Meio-Termo
Um segundo grupo parece ser menos radical. Rejeita tanto o socialismo como o capitalismo. Recomendam um terceiro sistema, que, como dizem, está tão longe do capitalismo como do socialismo, que, como terceiro sistema de organização económica da sociedade, se situa a meio caminho entre os dois outros sistemas e, embora mantendo as vantagens de ambos, evita as desvantagens inerentes a cada um. Este terceiro sistema é conhecido como o sistema do intervencionismo. Na terminologia da política americana é muitas vezes referido como a política do meio-termo.
O que torna este terceiro sistema popular entre muitas pessoas é a forma particular como optam por encarar os problemas em causa. Na sua opinião, duas classes, os capitalistas e os empresários, por um lado, e os assalariados, por outro, estão a discutir a distribuição do rendimento do capital e das actividades empresariais. Ambas as partes reclamam para si a totalidade do bolo. Agora, sugerem estes mediadores, vamos fazer as pazes, dividindo o valor em disputa igualmente entre as duas classes. O Estado, como árbitro imparcial, deve interferir, refrear a ganância dos capitalistas e atribuir uma parte dos lucros às classes trabalhadoras. Assim será possível destronar o capitalismo “Moloch”1 sem entronizar o “Moloch” do socialismo totalitário.
No entanto, este modo de julgar a questão é totalmente falacioso. O antagonismo entre o capitalismo e o socialismo não é uma disputa sobre a distribuição do espólio. É uma controvérsia sobre qual dos dois sistemas de organização económica da sociedade, o capitalismo ou o socialismo, é mais conducente à melhor consecução dos fins que todas as pessoas consideram como o objectivo último das actividades comummente chamadas económicas, ou seja, o melhor fornecimento possível de bens e serviços úteis. O capitalismo pretende atingir estes fins através da iniciativa e da iniciativa privada, sob reserva da supremacia da compra pública e da abstenção de compra no mercado. Os socialistas querem substituir o projecto único de uma autoridade central pelos projectos dos diferentes indivíduos. Querem substituir o que Marx chamou de “anarquia da produção” pelo monopólio exclusivo do governo. O antagonismo não se refere ao modo de distribuição de uma quantidade fixa de bens. Refere-se ao modo de produção de todos os bens que as pessoas querem usufruir.
O conflito entre os dois princípios é irreconciliável e não permite qualquer compromisso. O controlo é indivisível. Ou a procura dos consumidores, tal como se manifesta no mercado, decide para que fins e de que forma os factores de produção devem ser utilizados, ou é o governo que se encarrega destas questões. Não há nada que possa atenuar a oposição entre estes dois princípios contraditórios. Eles excluem-se mutuamente. O intervencionismo não é um meio-termo entre o capitalismo e o socialismo. É a concepção de um terceiro sistema de organização económica da sociedade e deve ser apreciado como tal.
3. Como Funciona o Intervencionismo
O objectivo do debate de hoje não é levantar questões sobre os méritos do capitalismo ou do socialismo. Hoje, estou a tratar apenas do intervencionismo. E não tenciono entrar numa avaliação arbitrária do intervencionismo a partir de qualquer ponto de vista preconcebido. A minha única preocupação é mostrar como funciona o intervencionismo e se ele pode ou não ser considerado como padrão de um sistema permanente de organização económica da sociedade.
Os intervencionistas sublinham que tencionam manter a propriedade privada dos meios de produção, o espírito empresarial e as trocas no mercado. Mas, prosseguem, é peremptório impedir que essas instituições capitalistas espalhem o caos e explorem injustamente a maioria das pessoas. É dever do governo restringir, através de ordens e proibições, a ganância das classes proprietárias, para que a sua capacidade de aquisição não prejudique as classes mais pobres. O capitalismo desenfreado ou laissez-faire é um mal. Mas, para eliminar os seus males, não é necessário abolir totalmente o capitalismo. É possível melhorar o sistema capitalista através da interferência do governo nas acções dos capitalistas e dos empresários. Essa regulação e regulamentação governamental dos negócios é o único método para evitar o socialismo totalitário e para salvar as características do capitalismo que valem a pena ser preservadas. Com base nesta filosofia, os intervencionistas defendem uma galáxia de várias medidas. Escolhamos uma delas, o muito popular esquema de controlo de preços.
4. Como o Controlo de Preços Conduz ao Socialismo
O governo considera que o preço de um determinado produto, por exemplo, o leite, é demasiado elevado. Quer tornar possível que os pobres dêem mais leite aos seus filhos. Assim, recorre a um preço máximo e fixa o preço do leite a uma taxa mais baixa do que a que prevalece no mercado livre. O resultado é que os produtores marginais de leite, aqueles que produzem a custos mais elevados, passam a registar perdas. Como nenhum agricultor ou empresário pode continuar a produzir com prejuízo, estes produtores marginais deixam de produzir e vender leite no mercado. Utilizarão as suas vacas e as suas capacidades para outros fins mais rentáveis. Produzirão, por exemplo, manteiga, queijo ou carne. Haverá menos leite disponível para os consumidores, e não mais. Isto, evidentemente, é contrário às intenções do governo. O Governo queria facilitar a compra de mais leite por algumas pessoas. Mas, como resultado da sua interferência, a oferta disponível diminui. A medida revela-se abortiva do ponto de vista do próprio governo e dos grupos que este pretendia favorecer. A medida cria uma situação que – também do ponto de vista do governo – é ainda menos desejável do que a situação anterior que se pretendia melhorar.
Agora, o Governo vê-se confrontado com uma alternativa. Pode revogar o seu decreto e abster-se de quaisquer outros esforços para controlar o preço do leite. Mas se insistir na sua intenção de manter o preço do leite abaixo da taxa que o mercado livre teria determinado e quiser, no entanto, evitar uma queda na oferta de leite, deve tentar eliminar as causas que tornam a actividade dos produtores marginais pouco remuneratória. Deve acrescentar ao primeiro decreto relativo apenas ao preço do leite um segundo decreto que fixe os preços dos factores de produção necessários para a produção de leite a um nível tão baixo que os produtores marginais de leite deixem de sofrer perdas e, por conseguinte, se abstenham de restringir a produção. Mas depois a mesma história repete-se num plano mais remoto. A oferta dos factores de produção necessários para a produção de leite diminui, e o governo volta ao ponto de partida. Se não quer admitir a derrota e abster-se de qualquer interferência nos preços, tem de ir mais longe e fixar os preços dos factores de produção necessários para a produção dos factores necessários para a produção de leite. Assim, o governo é forçado a ir cada vez mais longe, fixando passo a passo os preços de todos os bens de consumo e de todos os factores de produção – tanto humanos, isto é, trabalho, como materiais – e a ordenar a cada empresário e a cada trabalhador que continue a trabalhar a esses preços e salários. Nenhum ramo da indústria pode ser omitido desta fixação geral de preços e salários e desta obrigação de produzir as quantidades que o governo quer ver produzidas. Se alguns ramos fossem deixados livres pelo facto de produzirem apenas bens qualificados como não vitais ou mesmo como luxuosos, o capital e o trabalho tenderiam a fluir para eles e o resultado seria uma queda na oferta desses bens, cujos preços o governo fixou precisamente porque os considera indispensáveis para a satisfação das necessidades das massas.
Mas quando se atinge este estado de controlo geral das empresas, deixa de ser possível falar de economia de mercado. Já não são os cidadãos que, através das suas compras e abstenções, determinam o que deve ser produzido e como. O poder de decidir estas questões foi transferido para o governo. Já não se trata de capitalismo, mas sim de um planeamento global por parte do Estado, ou seja, de socialismo.
5. O Socialismo de Tipo Zwangswirtschaft
É verdade, naturalmente, que este tipo de socialismo preserva alguns dos rótulos e a aparência externa do capitalismo. Mantém, aparente e nominalmente, a propriedade privada dos meios de produção, dos preços, dos salários, das taxas de juro e dos lucros. Na verdade, porém, nada conta, a não ser a autocracia irrestrita do governo. O governo diz aos empresários e capitalistas o que produzir e em que quantidade e qualidade, a que preços comprar e a quem, a que preços vender e a quem. Decreta a que salários e onde os trabalhadores devem trabalhar. O mercado de trocas não passa de uma farsa. Todos os preços, salários e taxas de juro são determinados pela autoridade. São preços, salários e taxas de juro apenas na aparência; de facto, são meras relações de quantidade nas ordens do governo. O governo, e não os consumidores, dirige a produção. O governo determina o rendimento de cada cidadão, atribui a cada um a posição em que tem de trabalhar. Isto é socialismo sob o disfarce exterior de capitalismo. É a Zwangswirtschaft2 do Reich alemão de Hitler e a economia planeada da Grã-Bretanha.
6. A Experiência Alemã e Britânica
O esquema de transformação social que descrevi não é apenas uma construção teórica. É um retrato realista da sucessão de eventos que levaram ao socialismo na Alemanha, na Grã-Bretanha e em alguns outros países.
Os alemães, na Primeira Guerra Mundial, começaram por fixar preços máximos para um pequeno grupo de bens de consumo considerados de necessidade vital. Foi o inevitável fracasso destas medidas que os impeliu a ir cada vez mais longe até que, no segundo período da guerra, conceberam o plano Hindenburg. No âmbito do plano Hindenburg, não foi deixado qualquer espaço para a livre escolha dos consumidores e para a iniciativa das empresas. Todas as actividades económicas estavam incondicionalmente subordinadas à jurisdição exclusiva das autoridades. A derrota total do Kaiser fez desaparecer todo o aparelho administrativo imperial e, com ele, também o plano grandioso. Mas quando, em 1931, o Chanceler Brüning voltou a enveredar por uma política de controlo dos preços e os seus sucessores, em primeiro lugar Hitler, se agarraram obstinadamente a ela, a mesma história repetiu-se.
A Grã-Bretanha e todos os outros países que, na Primeira Guerra Mundial, adoptaram medidas de controlo dos preços, experimentaram o mesmo fracasso. Também eles foram levados cada vez mais longe nas suas tentativas de fazer funcionar os decretos iniciais. Mas ainda se encontravam numa fase rudimentar deste desenvolvimento quando a vitória e a oposição do público afastaram todos os esquemas de controlo de preços.
A situação foi diferente na Segunda Guerra Mundial. Nessa altura, a Grã-Bretanha recorreu novamente a limites máximos de preços para alguns produtos vitais e teve de avançar cada vez mais até ter substituído a liberdade económica por uma planificação global de toda a economia do país. Quando a guerra chegou ao fim, a Grã-Bretanha era uma “Commonwealth” socialista.
É importante lembrar que o socialismo britânico não foi uma conquista do governo trabalhista do Sr. Attlee, mas do gabinete de guerra do Sr. Winston Churchill. O que o Partido Trabalhista (Labour Party [N. do T.]) fez não foi o estabelecimento do socialismo num país livre, mas a manutenção do socialismo tal como se tinha desenvolvido durante a guerra e no período pós-guerra. Este facto tem sido obscurecido pela grande sensação causada pela nacionalização do Banco de Inglaterra, das minas de carvão e de outros ramos de negócio. No entanto, a Grã-Bretanha deve ser chamada de socialista não porque certas empresas tenham sido formalmente expropriadas e nacionalizadas, mas porque todas as actividades económicas de todos os cidadãos estão sujeitas ao controlo total do governo e das suas agências. As autoridades dirigem a afectação de capital e de mão de obra aos vários ramos de actividade. Determinam o que deve ser produzido. A supremacia em todas as actividades económicas é atribuída exclusivamente ao governo. As pessoas são reduzidas ao estatuto de guardas, incondicionalmente obrigadas a obedecer a ordens. Aos empresários, os antigos empreendedores, são deixadas funções meramente acessórias. Tudo o que podem fazer é aplicar, dentro de um campo restrito e quase circunscrito, as decisões dos departamentos governamentais.
O que temos de perceber é que os limites máximos de preços que afectam apenas alguns produtos não atingem os objectivos pretendidos. Pelo contrário. Produzem efeitos que, do ponto de vista do governo, são ainda piores do que a situação anterior que o governo queria alterar. Se o governo, para eliminar estas consequências inevitáveis, mas indesejáveis, prossegue o seu caminho cada vez mais longe, acaba por transformar o sistema de capitalismo e livre iniciativa num socialismo do tipo Hindenburg.
7. Crises e Desemprego
O mesmo se aplica a todos os outros tipos de interferência nos fenómenos de mercado. As taxas de salário mínimo, decretadas e aplicadas pelo governo ou pela pressão e violência dos sindicatos, resultam em desemprego em massa prolongado ano após ano, assim que tentam aumentar as taxas salariais acima do nível do mercado livre. As tentativas de baixar as taxas de juro através da expansão do crédito geram, é verdade, um período de expansão dos negócios. Mas a prosperidade assim criada não passa de um produto artificial de aquecimento e tem de conduzir inexoravelmente à recessão e à depressão. As pessoas têm de pagar caro a orgia do dinheiro fácil de alguns anos de expansão do crédito e de inflação.
A repetição de períodos de depressão e de desemprego em massa desacreditou o capitalismo na opinião de pessoas incautas. No entanto, estes acontecimentos não são o resultado do funcionamento do mercado livre. São, pelo contrário, o resultado de uma interferência governamental bem-intencionada, mas mal aconselhada, no mercado. Não há nenhum meio pelo qual o nível das taxas salariais e o padrão de vida geral possam ser aumentados, a não ser acelerando o aumento do capital em comparação com a população. O único meio de aumentar permanentemente as taxas salariais para todos os que procuram emprego e estão ansiosos por ganhar salários é aumentar a produtividade do esforço industrial, aumentando a quota de capital investido por cabeça. O que faz com que as taxas salariais americanas excedam de longe as taxas salariais da Europa e da Ásia é o facto de o trabalho árduo do trabalhador americano ser ajudado por mais e melhores ferramentas. Tudo o que um bom governo pode fazer para melhorar o bem-estar material do povo é estabelecer e preservar uma ordem institucional em que não haja obstáculos à acumulação progressiva de novo capital necessário para a melhoria dos métodos tecnológicos de produção. Foi isso que o capitalismo conseguiu no passado e conseguirá também no futuro, se não for sabotado por uma má política.
8. Duas Vias para o Socialismo
O intervencionismo não pode ser considerado como um sistema económico destinado a permanecer. É um método para a transformação do capitalismo em socialismo através de uma série de passos sucessivos. Como tal, é diferente dos esforços dos comunistas para realizar o socialismo de uma só vez. A diferença não se refere ao fim último do movimento político; refere-se principalmente às tácticas a utilizar para atingir um fim que ambos os grupos têm em vista.
Karl Marx e Friedrich Engels recomendaram sucessivamente cada uma destas duas vias para a realização do socialismo. Em 1848, no “Manifesto Comunista”, traçaram um plano para a transformação gradual do capitalismo em socialismo. O proletariado deveria ser elevado à posição de classe dominante e usar sua supremacia política “para arrancar, gradualmente, todo o capital da burguesia”. Isto, declaram eles, “não pode ser efectuado a não ser por meio de incursões despóticas nos direitos de propriedade e nas condições de produção burguesa; por meio de medidas, portanto, que parecem economicamente insuficientes e insustentáveis, mas que no curso do movimento superam a si mesmas, necessitam de mais incursões na velha ordem social, e são inevitáveis como um meio de revolucionar inteiramente o modo de produção”. Neste sentido, enumeram, a título de exemplo, dez medidas.
Nos anos seguintes, Marx e Engels mudaram de opinião. No seu principal tratado, “O Capital”, publicado pela primeira vez em 1867, Marx vê as coisas de uma forma diferente. O socialismo está destinado a surgir “com a inexorabilidade de uma lei da natureza”. Mas não pode surgir antes do capitalismo ter atingido a sua plena maturidade. Só há um caminho para o colapso do capitalismo, nomeadamente a evolução progressiva do próprio capitalismo. Só então a grande revolta final da classe operária lhe dará o golpe final e inaugurará a eterna era da abundância.
Do ponto de vista desta última doutrina, Marx e a escola do marxismo ortodoxo rejeitam todas as políticas que pretendem restringir, regular e melhorar o capitalismo. Tais políticas, declaram eles, não são apenas fúteis, mas completamente prejudiciais. Porque atrasam a maioridade do capitalismo, a sua maturidade e, por conseguinte, também o seu colapso. Não são, portanto, progressistas, mas reaccionárias. Foi esta ideia que levou o partido social-democrata alemão a votar contra a legislação de segurança social de Bismarck e a frustrar o plano de Bismarck de nacionalizar a indústria tabaqueira alemã. Do ponto de vista da mesma doutrina, os comunistas classificaram o New Deal americano como um plano reaccionário extremamente prejudicial aos verdadeiros interesses do povo trabalhador.
O que temos de perceber é que o antagonismo entre os intervencionistas e os comunistas é uma manifestação do conflito entre as duas doutrinas do marxismo inicial e do marxismo tardio. É o conflito entre o Marx de 1848, o autor do “Manifesto Comunista”, e o Marx de 1867, o autor de “O Capital”. E é paradoxal, de facto, que o documento em que Marx subscreveu as políticas dos actuais autodenominados anticomunistas se chame “Manifesto Comunista”.
Há dois métodos disponíveis para a transformação do capitalismo em socialismo. Um é expropriar todas as quintas, fábricas e lojas e operá-las por um aparato burocrático como departamentos do governo. Toda a sociedade, diz Lenine, torna-se “um escritório e uma fábrica, com trabalho igual e salário igual”, toda a economia será organizada “como o sistema postal”3. O segundo método é o método do plano Hindenburg4, o padrão originalmente alemão do estado social e do planeamento. Obriga todas as empresas e todos os indivíduos a cumprirem rigorosamente as ordens emitidas pelo conselho central de gestão da produção do governo. Era essa a intenção do National Industrial Recovery Act de 1933, que a resistência das empresas frustrou e o Supremo Tribunal declarou inconstitucional. Esta é a ideia implícita nos esforços para substituir a iniciativa privada pelo planeamento.
9. Controlo Cambial
O principal veículo para a realização deste segundo tipo de socialismo em países industrializados como a Alemanha e a Grã-Bretanha é o controlo cambial (“Forex” [N. do T.].). Esses países não podem alimentar e vestir seu povo com recursos internos. Têm de importar grandes quantidades de alimentos e matérias-primas. Para pagar estas importações tão necessárias, têm de exportar produtos manufacturados, a maioria dos quais produzidos a partir de matérias-primas importadas. Nestes países, quase todas as transacções comerciais são directa ou indirectamente condicionadas pela exportação ou pela importação, ou pela exportação e pela importação. Por conseguinte, o monopólio governamental da compra e venda de divisas estrangeiras faz com que todo o tipo de actividade comercial dependa da discrição do organismo responsável pelo controlo das divisas. Neste país (EUA [N. do T.].), as coisas são diferentes. O volume do comércio externo é bastante pequeno quando comparado com o volume total do comércio da nação. O controlo cambial afectaria apenas ligeiramente a maior parte do comércio americano. Esta é a razão pela qual, nos esquemas dos nossos planeadores, quase não se coloca a questão do controlo cambial. Os seus objectivos são dirigidos para o controlo dos preços, salários e taxas de juro, para o controlo do investimento e para a limitação dos lucros e rendimentos.
10. Tributação Progressiva
Olhando para trás, para a evolução das taxas de imposto sobre o rendimento desde o início do imposto federal sobre o rendimento5 em 1913 até aos dias de hoje, dificilmente se pode esperar que o imposto não venha um dia a absorver 100 por cento de todo o excedente acima do rendimento do eleitor médio. É isso que Marx e Engels tinham em mente quando, no “Manifesto Comunista”, recomendaram “um pesado imposto sobre o rendimento, progressivo ou graduado”.
Outra das sugestões do “Manifesto Comunista” foi a “abolição de todo o direito de herança”. Por agora, nem na Grã-Bretanha nem neste país as leis chegaram a este ponto. Mas, mais uma vez, olhando para trás, para a história passada dos impostos sobre a propriedade, temos de perceber que cada vez mais se aproximaram do objectivo estabelecido por Marx. Os impostos sobre a propriedade da altura que já atingiram para os escalões superiores, já não podem ser qualificados como impostos. São medidas de expropriação.
A filosofia subjacente ao sistema de tributação progressiva é que o rendimento e a riqueza das classes abastadas podem ser explorados livremente. O que os defensores destas taxas de imposto não percebem é que a maior parte do rendimento tributado não teria sido consumido, mas sim poupado e investido. De facto, esta política fiscal não se limita a impedir a acumulação de novos capitais. Provoca a delapidação de capital. Esta é certamente a situação actual na Grã-Bretanha.
11. A Tendência para o Socialismo
O curso dos acontecimentos nos últimos trinta anos mostra um progresso contínuo, embora por vezes interrompido, em direcção ao estabelecimento neste país do socialismo de modelo britânico e alemão. Os Estados Unidos embarcaram mais tarde do que estes dois outros países neste declínio e estão hoje ainda mais longe do seu fim. Mas se a tendência desta política não mudar, o resultado final diferirá apenas em pontos acidentais e insignificantes do que aconteceu na Inglaterra de Attlee e na Alemanha de Hitler. A política do meio-termo não é um sistema económico que possa durar. É um método para a realização do socialismo por parcelas.
12. Capitalismo de Lacunas
Muitas pessoas objectam. Sublinham o facto de que a maioria das leis que visam a planificação ou a expropriação através da tributação progressiva deixaram algumas lacunas6 que oferecem à iniciativa privada uma margem dentro da qual ela pode prosseguir. Que essas lacunas ainda existam e que, graças a elas, este país ainda seja um país livre, é certamente verdade. Mas este “capitalismo de lacunas” não é um sistema duradouro. É uma pausa. Há forças poderosas a trabalhar para colmatar estas lacunas. De dia para dia, o campo em que a iniciativa privada é livre de actuar é reduzido.
13. A Chegada do Socialismo Não é Inevitável
É claro que este resultado não é inevitável. A tendência pode ser invertida, como foi o caso de muitas outras tendências na história. O dogma marxiano segundo o qual o socialismo está destinado a chegar “com a inexorabilidade de uma lei da natureza” é apenas uma suposição arbitrária desprovida de qualquer prova.
Mas o prestígio de que este vago prognóstico goza não só junto dos marxianos, mas também junto de muitos autodenominados não marxianos, é o principal instrumento do progresso do socialismo. Ele espalha o derrotismo entre aqueles que, de outra forma, lutariam galhardamente contra a ameaça socialista. O aliado mais poderoso da Rússia Soviética é a doutrina de que a “onda do futuro” nos leva em direcção ao socialismo e que, portanto, é “progressista” simpatizar com todas as medidas que restringem cada vez mais o funcionamento da economia de mercado.
Mesmo neste país, que deve a um século de “individualismo robusto” o mais alto nível de vida jamais alcançado por qualquer nação, a opinião pública condena o laissez-faire. Nos últimos cinquenta anos, milhares de livros foram publicados para acusar o capitalismo e para defender o intervencionismo radical, o estado de bem-estar e o socialismo. Os poucos livros que tentaram explicar adequadamente o funcionamento da economia de mercado-livre quase não foram notados pelo público. Os seus autores permaneceram obscuros, enquanto autores como Veblen, Commons, John Dewey e Laski foram exuberantemente elogiados. É um facto bem conhecido que o “palco legítimo”7, bem como a indústria de Hollywood, não são menos radicalmente críticos da livre iniciativa do que muitos romances. Existem neste país muitos periódicos que em cada edição atacam furiosamente a liberdade económica. Não há praticamente nenhuma revista de opinião que defenda o sistema que fornece à imensa maioria das pessoas boa comida e abrigo, carros, frigoríficos, aparelhos de rádio e outras coisas a que os cidadãos de outros países chamam luxos.
O impacto deste estado de coisas é que praticamente muito pouco é feito para preservar o sistema da iniciativa privada. Há apenas intermediários que pensam que foram bem-sucedidos quando adiaram por algum tempo uma medida especialmente ruinosa. Estão sempre a recuar. Hoje, suportam medidas que há apenas dez ou vinte anos teriam considerado indiscutíveis. Dentro de alguns anos, aceitarão outras medidas que hoje consideram simplesmente fora de questão. O que pode impedir a chegada do socialismo totalitário é apenas uma mudança profunda nas ideologias.
O que precisamos não é de anti-socialismo nem de anti-comunismo, mas de um apoio positivo e aberto a esse sistema ao qual devemos toda a riqueza que distingue a nossa época das condições comparativamente apertadas de épocas passadas.
[Este discurso foi proferido perante o University Club de Nova Iorque, a 18 de Abril de 1950. Impresso pela primeira vez pelo Commercial and Financial Chronicle, a 4 de Maio de 1950; reimpresso como um capítulo em “Planning for Freedom“].
- Referência ao poema de Allen Ginsberg, em que o capitalismo é metaforizado na figura de Moloch (Moloque), o deus bíblico ao qual os amonitas sacrificavam crianças [N. do T.]. ↩︎
- Alemão para “Economia planeada”, modelo económico do regime nazi [N. do T.]. ↩︎
- Cf. V.I. Lenin, State and Revolution (Little Lenin Library No. 14, New York, 1932), p. 84. ↩︎
- Ibid., p. 44. ↩︎
- Correspondente ao IRS português [N. do T.]. ↩︎
- Em inglês “loopholes” [N. do T.]. ↩︎
- Expressão que denomina o “teatro”, de discurso e movimento natural e de qualidade em oposição ao vaudeville, burlesco ou musical [N. do T.]. ↩︎