Na ciência da acção humana, os efeitos de noções erradas do processo de mercado, particularmente quando dizem respeito a decisões políticas, não devem ser subestimados. O economista não pode ficar indiferente a estes efeitos numa época em que os apelos do intervencionismo e da expansão governamental cada vez mais têm mais influência no domínio das políticas públicas. Dito de outra forma, não podemos negar como as políticas económicas e sociais enraizadas em visões erradas do processo do mercado afectam as decisões dos consumidores que pretendem utilizar o mercado como meio para a satisfação das suas necessidades mais urgentes. Isto é de importância geral, dado que as políticas, quando inadequadas para os fins escolhidos, resultam principalmente num ou em ambos os seguintes resultados:
(a) Alguns grupos da sociedade ficam em melhor situação em detrimento de outros grupos;
(b) Alguns ganhos são obtidos a curto prazo à custa de uma maior deterioração do bem-estar no futuro.
Praticamente toda política económica é carregada de teoria, e na raiz de cada teoria económica está uma noção fundamental do mercado como um “sistema interdependente de relações logicamente necessárias” ou uma “agregação de eventos autónomos”. Este artigo procura destacar as implicações comparativas destes conceitos de mercado, tal como se manifestam nas escolhas de políticas, que acabam por resultar no aprofundar da cooperação social ou no dificultar da cooperação no mercado.
A Unicidade do Processo de Mercado – Da Avaliação do Consumidor à Satisfação da Necessidade
O mercado é indivisível e logicamente coerente. Isso é facilmente verificado na maneira peculiar como tende a promover a harmonia de interesses correctamente compreendidos de vários participantes, apesar da ausência de um projecto consciente por parte de um planeador.
Digamos que o consumidor está actualmente insatisfeito com as condições presentes de seu bem-estar e deseja remover seu mal-estar, agindo para substituir uma condição mais favorável no futuro pela condição presente. Ele organiza seus valores de acordo com uma escala ordinal de importância; fá-lo preferindo a satisfação de sua necessidade presente à satisfação de necessidades concorrentes. Procura ter à sua disposição quantidades determinadas do bem de primeira ordem1 cujas propriedades o tornam passível de ligação causal com a satisfação dessa necessidade urgente, atribuindo consequentemente um valor mais elevado a esse bem.
O empreendedor, em sua contínua vigilância às oportunidades de obtenção de lucro, descobre a existência da necessidade do consumidor para o bem de primeira ordem em questão, imputando a avaliação do consumidor ao complexo total de bens complementares de ordens superiores que se combinam para produzir o bem de primeira ordem. Ele faz os cálculos económicos necessários e especula sobre o preço futuro pelo qual os consumidores estariam dispostos a pagar pelo produto final. Tendo em conta a preferência temporal, se a soma dos preços dos bens complementares de encomendas superiores for inferior ao preço especulado do produto final, prossegue com o empreendimento; caso contrário, desembarca.
No entanto, se ele considera o empreendimento como potencialmente lucrativo, e dadas as condições inexoráveis de escassez a que os factores produtivos estão sujeitos, surge um estado de coisas em que o empresário compete com outros empresários para se superarem uns aos outros por esses factores produtivos que têm sempre usos alternativos. Assim, os donos desses factores escassos – trabalhadores, latifundiários e capitalistas – entregam voluntariamente os seus recursos ao maior lance, que, por sua vez, os paga de acordo com o limite estabelecido pelo preço antecipado do produto marginal. Se, ao final do dia, os consumidores, de acordo com as suas avaliações iniciais, passarem a pagar o preço antecipado do produto final ou mais, dependendo das circunstâncias únicas que rodeiam a oferta, então a antecipação do empreendedor das condições futuras do mercado é validada. Obtém-se lucro. Por outro lado, se o consumidor se abstiver de comprar, o empreendedor incorre em prejuízos.
Conceptualmente, é possível delinear a cadeia logicamente coerente de relações necessárias – a série de acções e reacções interdependentes – a partir da valorização dos consumidores até a satisfação real de suas necessidades mais urgentes. É claro que isto pode parecer algo simplista, serve apenas para mostrar como as acções dos diferentes participantes no mercado estão logicamente interligadas entre si.
A implicação óbvia a deduzir desta interdependência é que as tentativas de visar um segmento do mercado para intervenções locais seriam arbitrárias e perturbadoras de toda a gama de acção humana que constitui o mercado.
A Heurística Analítica da Economia Teórica e o Efeito Potencial da Hiper-Especialização na Ciência da Economia
Para fins de exposição teórica, os economistas recorrem frequentemente à heurística analítica de classificar várias instâncias da acção humana, no contexto do mercado, em categorias distintas. Para a mente destreinada, não acostumada às cadeias de raciocínio peculiares à compreensão do processo de mercado, as várias categorias económicas são autónomas e, portanto, potencialmente sujeitas a intervenções isoladas que nunca redundam no resto do sistema. Mas esta é uma visão equivocada do processo do mercado. Como Mises observa em Acção Humana,
O processo de mercado é coerente e indivisível. É um entrelaçamento indissolúvel de acções e reacções, de movimentos e contra-movimentos. Mas a insuficiência de nossas habilidades mentais impõe-nos a necessidade de dividi-la em partes e analisar cada uma dessas partes separadamente.
Os economistas muitas vezes contribuem para a disseminação da visão errada da compartimentação do mercado em sua divisão arbitrária da ciência em sub-disciplinas do conhecimento especializado. Joseph T. Salerno, ao criticar a nova ortodoxia da “síntese neoclássica” que se abateu sobre a economia após a Segunda Guerra Mundial, coloca o seguinte na sua introdução à segunda edição do clássico Homem, Economia e Estado de Murray Rothbard:
Esta nova ortodoxia promoveu também a hiper-especialização e a correspondente desintegração da ciência económica num amontoado de sub-disciplinas compartimentadas. Mesmo o núcleo teórico da economia estava agora dividido em “microeconomia” e “macroeconomia”, que aparentemente tinham muito pouca ligação entre si.
Esta desintegração arbitrária da economia em sub-disciplinas autónomas não está isenta de consequências práticas para a elaboração de potenciais políticas. Pois tem o efeito potencial de deixar o decisor político não-iniciado com uma visão das coisas que reflectem estas subdivisões arbitrárias.
A Falsa Desconexão da Produtividade e Distribuição de Rendimento no Mercado
O tema da distribuição de rendimento dentro da economia de mercado é geralmente carregado de conotações de injustiça, exploração, roubo, parasitismo e assim por diante. É um tema que facilmente convida ao preconceito e a juízos de valor arbitrários. No entanto, tudo isso pode ser atribuído à falsa desconexão muitas vezes feita entre a produtividade dos factores de input e a distribuição de rendimento aos respectivos proprietários desses recursos produtivos.
A enormidade de importância atribuída à preservação dessa desconexão distorcida pelos pensadores socialistas não é surpreendente, pelo simples facto de que o socialismo é essencialmente apresentado como um sistema de distribuição “justa” em oposição aos critérios distributivos supostamente “injustos” do capitalismo. Um decisor político não iniciado em economia sólida e para quem o mercado aparece como um conjunto de acontecimentos autónomos cairia facilmente neste erro, prosseguindo consequentemente políticas desastrosas que visam a igualdade forçada e a redistribuição arbitrária do rendimento, prejudicando assim a produtividade económica. De facto, na raiz da maioria das políticas de redistribuição hoje aclamadas como “progressistas” está esta falsa desconexão, que de resto é uma arma operativa na série de incursões socialistas no quadro de distribuição de rendimentos do mercado.
Ao contrário das implicações erróneas deduzidas desta falsa desconexão, a nossa descrição do processo de mercado acima mostrou facilmente que cada participante no processo de produção é recompensado de acordo com o valor atribuído pelo consumidor à sua contribuição para o produto marginal. Por exemplo, a taxa salarial é definida de acordo com o valor marginal descontado da produtividade do trabalho — isto é, o valor presente da contribuição de uma unidade extra de trabalho para a unidade extra do produto futuro. Tentativas de reimaginar este estado de coisas aludindo a noções de desigualdade ou injustiça apenas levariam à visão equivocada do mercado como um sistema injusto de exploração em oposição ao seu papel social como mecanismo de cooperação.
Os resultados das políticas enraizadas em falsas noções de mercado tendem a ser qualitativamente diferentes daqueles enraizados num conceito coerente de mercado. O formulador de políticas não é geralmente indiferente à sua visão fundamental da estrutura do mercado como um sistema de relações logicamente necessárias ou um sistema fragmentado de eventos isolados – na maioria das vezes, as suas decisões sobre políticas relativas ao processo de mercado tendem a seguir esta visão fundamental.
- “Bens de primeira ordem” são, segundo a definição de Carl Menger, bens que podem satisfazer as nossas necessidades imediatamente, ou seja, bens de consumo imediato (N. do T.) ↩︎
Artigo publicado originalmente no Mises Institute.