[O seguinte corresponde ao Capítulo 44 de The Irrepressible Rothbard. O artigo foi publicado originalmente em Setembro de 1993.]
Como pode alguém, encontrando-se rodeado por uma vaga crescente de mal, deixar de fazer o máximo para lutar contra ela? No nosso século, temos sido inundados por uma torrente de mal, na forma de colectivismo, socialismo, igualitarismo e niilismo. Sempre me foi perfeitamente claro que temos uma imperiosa obrigação moral, em benefício de nós mesmos, dos nossos entes queridos, da nossa posteridade, dos nossos amigos, dos nossos vizinhos e do nosso país, de combater esse mal.
Tem-me sido, por isso, um mistério ver como gente que viu e identificou esse mal e que, por isso, entrou na liça contra ele, abandona essa luta, ora gradualmente, ora subitamente. Como é possível ver a verdade, compreender o próprio dever imperioso e depois, simplesmente, desistir e até trair a causa e os seus camaradas? E, no entanto, nos dois movimentos e nas suas variações com que me tenho associado — o libertário e o conservador — isto acontece a toda a hora.
O conservadorismo e o libertarianismo são, afinal, movimentos “radicais”; isto é, são radical e fortemente opostos às tendências existentes de estatismo e imoralidade. Como, então, pode alguém que aderiu a tal movimento, como ideólogo, activista ou benfeitor financeiro, simplesmente abandonar a luta? Recentemente perguntei a um amigo perspicaz como fulano pôde largar a luta. Ele respondeu que “é do tipo que quer uma vida sossegada, que quer sentar-se em frente à televisão e não quer ouvir falar de problemas”. Mas então, disse eu em angústia, “por que razão essas pessoas se tornam ‘radicais’ em primeiro lugar? Por que se intitulam orgulhosamente ‘conservadores’ ou ‘libertários’?” Infelizmente, nenhuma resposta foi apresentada.
Por vezes as pessoas desistem da luta porque dizem que a causa é desesperada. Perdemos, dizem. A derrota é inevitável. O grande economista Joseph Schumpeter escreveu, em 1942, que o socialismo é inevitável, que o capitalismo está condenado não pelas suas falhas, mas pelos seus próprios êxitos, os quais haviam dado origem a um grupo de intelectuais invejosos e malévolos que subverteriam e destruiriam o capitalismo a partir do interior. Os seus críticos acusaram Schumpeter de aconselhar o derrotismo aos defensores do capitalismo. Schumpeter retorquiu que, se alguém aponta que um batel está inevitavelmente a afundar-se, será isso o mesmo que dizer: não façam o possível para escorar o batel?
No mesmo sentido, suponhamos por um minuto que a luta contra o mal estatista é uma causa perdida — por que razão isso há-de implicar o abandono da batalha? Em primeiro lugar, por mais negro que o panorama pareça, o inevitável pode ser adiável por algum tempo. Por que não vale a pena? Não é preferível perder daqui a trinta anos do que perder agora? Em segundo lugar, na pior das hipóteses, é muito divertido irritar, aborrecer e zangar o inimigo, vingar-se do monstro. Isto por si só vale a pena. Não se deve encarar o processo de lutar contra o inimigo como um funesto desgosto e miséria. Pelo contrário, é altamente inspirador e vivificante pegar em armas contra um mar de males, em vez de os enfrentar com resignada submissão; e, ao opormo-nos, talvez pôr-lhe fim, e se não, pelo menos tentar com afinco, e acertar uns quantos golpes.
E, finalmente, que raio, se se luta contra o inimigo, pode-se vencer! Pensem nos bravos combatentes contra o comunismo na Polónia e na União Soviética que nunca desistiram, que lutaram contra probabilidades aparentemente impossíveis, e então, bingo, um dia o comunismo ruiu. Certamente, as probabilidades de vitória são muito maiores se se enfrenta a luta do que se se a abandona simplesmente.
Nos movimentos conservador e libertário verificaram-se duas grandes formas de rendição, de abandono da causa. A mais comum e mais ostensiva é aquela que todos conhecemos bem: a venda da alma. O jovem libertário ou conservador chega a Washington, a algum think-tank, ao Congresso ou como assessor administrativo, pronto e ávido para a batalha, para reduzir o estado em serviço da sua preciosa causa radical. E depois sucede algo: às vezes gradualmente, outras com espantosa rapidez. Vai a algumas recepções; o Inimigo aparenta ser muito agradável; começa a enredar-se nas minúcias do circuito político; e depressa atribui a máxima importância a alguma votação de comité trivial, ou a alguma insignificante diminuição de impostos ou emenda, e, por fim, está disposto a abandonar a batalha por um contrato confortável ou por um plumoso emprego governamental. E à medida que esse processo de venda avança, verifica-se que a maior fonte de irritação já não é o inimigo estatista, mas os agitadores no terreno que vivem a ladrar sobre princípios e até o acusam de vender a causa. Muito depressa, o seu rosto torna-se indistinguível do rosto do Inimigo.
Estamos demasiado familiarizados com essa via da venda e é fácil e justo revoltar-se contra essa traição moral a uma causa justa, contra a luta contra o mal e contra os antigos camaradas. Mas há outra forma de abandono que não é tão evidente e é mais insidiosa — e não me refiro simplesmente à perda de energia ou interesse. Nesta forma, comum no movimento libertário mas igualmente presente em sectores do conservadorismo, o militante decide que a causa é desesperada e desiste optando por abandonar o mundo corrupto e podre, retirando-se de algum modo para uma comunidade pura e nobre própria. Para os randianos, é “a Ravina de Galt”, no romance de Rand, Atlas Shrugged. Outros libertários procuram formar alguma comunidade clandestina, “capturar” uma pequena cidade do Oeste, ir “para a clandestinidade” na floresta, ou mesmo construir um novo país libertário numa ilha, nas serras, ou o que for. Os conservadores têm as suas próprias formas de retirismo1. Em cada caso surge o apelo de abandonar o mundo impuro e formar alguma pequena comunidade alternativa num refúgio remoto. Há muito rotulei essa visão de “retirismo”. Poder-se-ia chamar a essa estratégia “neo-amish”, salvo que os Amish são agricultores produtivos, e esses grupos, receio, nunca chegam a isso.
O racional do retirismo vem sempre revestido de termos de “alta moral” e de pseudo-psicologia. Esses “puristas”, por exemplo, afirmam que eles, ao contrário de nós, combatentes desacreditados, estão a “viver a liberdade”, que se focam no “positivo” em vez de se concentrarem no “negativo”, que vivem uma “vida puramente libertária”, enquanto nós, almas sujas, ainda vivemos no mundo real corrupto e contaminado. Durante anos tenho-lhes respondido que o mundo real, afinal, é bom; que nós, libertários, podemos ser anti-estado, mas não somos enfaticamente anti-sociedade nem avessos ao mundo real, por mais contaminado que este seja. Propomos continuar a lutar para salvar os valores, os princípios e as pessoas que estimamos, mesmo que o campo de batalha se ensope de lama. Citaria também o grande libertário Randolph Bourne, que proclamou que somos patriotas americanos, não no sentido de adesão patriótica ao estado, mas à pátria, à nação, às nossas gloriosas tradições e cultura que estão sob grave ataque.
A nossa atitude deve ser, nas famosas palavras de Dos Passos — ainda que as tenha proferido como marxista — “tudo bem, somos duas nações.” A “América” tal como existe hoje é duas nações; uma é a deles, a nação do inimigo corrupto, de Washington, D.C., do seu sistema escolar de lavagem cerebral, das suas burocracias, dos seus meios de comunicação, e a outra é a nossa, muito maior, nação, a nação mais nobre que representa a América mais antiga e mais verdadeira. Somos a nação que vai vencer, que vai reconquistar a América, não importa quanto tempo leve. É, de facto, um pecado grave abandonar essa nação e essa América antes da vitória.
Mas estaremos a enfatizar então “o negativo”? Em certo sentido, sim, mas que mais haveremos de salientar quando os nossos valores, os nossos princípios, o nosso próprio ser estão a ser atacados por um inimigo implacável? Temos, porém, de perceber primeiro que no próprio acto de acentuar o negativo também salientamos o positivo. Por que razão combatemos, e até odiamos, o mal? Só porque amamos o bem, e o nosso realce do “negativo” é apenas o reverso da moeda, a consequência lógica da nossa devoção ao bem, aos valores e princípios positivos que estimamos. Não há razão para não podermos salientar e difundir os nossos valores positivos ao mesmo tempo que batalhamos contra os seus inimigos. As duas coisas andam, na verdade, de mãos dadas.
Entre conservadores e alguns libertários, esses retiros por vezes tomaram a forma de esconder-se na mata ou numa gruta, amontoando um ano de provisões de pêssegos enlatados e armas e munições, esperando resolutamente proteger os pêssegos e a gruta da explosão nuclear ou do exército comunista. Este nunca veio; e as próprias latas de pêssegos já devem estar apodrecidas. O retiro foi inútil. Mas agora, em 1993, emerge o perigo inverso: isto é, os grupos retiristas enfrentam a terrível ameaça de serem cercados e massacrados pelas intrépidas forças do Bureau of Alcohol, Tobacco, and Firearms na sua incessante busca por espingardas um milímetro mais curtas do que certas portarias regulatórias, ou por suposto abuso infantil. O retirismo começa a aparecer como um caminho rápido para o desastre.
Claro que, em última análise, nenhum destes retiros, geralmente anunciados com grande pompa como o caminho para a pureza (se não for para a vitória), chegou a valer um tostão furado; são simplesmente uma racionalização, uma paragem a meio caminho, para o abandono total da causa e para o desaparecimento do palco da história. O ponto fascinante e crucial a notar é que estas duas vias — embora aparentemente diametralmente opostas — conduzem inexoravelmente ao mesmo lugar. O vendedor da causa abandona-a e trai os seus camaradas, por dinheiro, estatuto ou poder; o retirista, que detesta os vendidos, conclui que o mundo real é impuro e retira-se dele; em ambos os casos, seja em nome do “pragmatismo” ou em nome da “pureza”, a causa, a luta contra o mal no mundo real, fica abandonada. Evidentemente, há uma vastíssima diferença moral entre as duas condutas. O vendedor da causa é moralmente perverso; o retirista é, por contraste, para dizer as coisas de forma branda, terrivelmente desorientado. Os vendidos, não vale a pena falar com eles; os retirista devem perceber que não é uma traição à causa, longe disso, combater o mal; e que não se trata de abandonar o mundo real.
O retirista torna-se indiferente ao poder e à opressão, gosta de relaxar e dizer que pouco importa a opressão material quando a alma interior está livre. Pois claro, é bom ter liberdade da alma interior. Conheço as velhas fórmulas sobre como o pensamento é livre e como o prisioneiro é livre no seu íntimo. Mas chamem-me materialista de baixa estirpe, se quiserem, eu acredito — e pensei que todos os libertários e conservadores no fundo acreditassem — que o homem merece mais do que isso, que não nos contentamos com a liberdade interior do prisioneiro na sua cela, que entoamos o bom e velho grito de “Liberdade e Propriedade”, que exigimos liberdade no nosso mundo exterior, real, de espaço e dimensão. Pensava eu que era disso que se tratava a luta.
Digamos assim: não devemos abandonar as nossas vidas, as nossas propriedades, a nossa América, o mundo real, aos bárbaros. Nunca. Ajamos no espírito daquele magnífico hino que James Russell Lowell pôs a uma formosa melodia galesa:
A cada homem e nação
Chega o instante de escolher,
Na luta da Verdade contra a Mentira,
Pelo lado do bem ou do mal;
Alguma grande causa,
O novo Messias de Deus,
Oferece a cada um a flor ou a peçonha,
E a escolha passa eternamente
Entre essa treva e essa luz.
Ainda que a causa do mal prospere,
Só a verdade é forte;
Ainda que sua parte seja o patíbulo,
E no trono reine o erro,
Ainda assim o patíbulo balança o futuro,
E, por trás do escuro desconhecido,
Está Deus na sombra,
Vigiando sobre os seus.
- Do inglês “retreatism”. Não existe tradução literal em português. Optou-se por “retirismo” em vez de “retraimento”, por veicular melhor a ideia de isolamento e refúgio social voluntário. ↩︎
