O problema central da economia política é como organizar a sociedade de forma a promover a produção de riqueza. O problema central da filosofia política é como organizar a sociedade de forma a alcançar uma ordem social justa.
O primeiro problema prende-se com questões de eficiência: que meios são apropriados para atingir um resultado específico, neste caso, riqueza?
O segundo problema está forma do domínio das ciências positivas. Este questiona se o objectivo que a economia política assume como dado pode ou não ser justificado como objectivo, e se, então, os meios que a economia recomenda podem ser tidos como meios eficientes para fins justos.
O que se segue é uma justificação a priori para a tese que esses meios recomendados pela economia política são, de facto, meios eficientes para fins justos.
Vamos começar por descrever os meios recomendados pela economia política e explicar as razões sistemáticas porque a produção de riqueza atingida ao adoptá-los é maior do que se produzida escolhendo quaisquer outros meios. Visto que a minha tarefa principal é demonstrar a justiça desses meios de produzir riqueza, a minha descrição e explicação sobre eficiência económica será breve.
A economia política começa com o reconhecimento da escassez. É apenas porque não vivemos no Jardim do Éden que o problema da eficiência económica tem importância. De acordo com a economia política, o meio mais eficientes de aliviar, se não superar, a escassez é pela instituição de propriedade privada. As regras subjacentes a esta instituição foram correctamente identificadas na maioria por John Locke e são as seguintes: Cada pessoa é proprietária do próprio corpo assim como de todos os bens escassos a que dá uso antes de qualquer outra pessoa o fazer. Esta propriedade implica o direito da pessoa empregar estes bens escassos como bem desejar, desde que não agrida contra a propriedade de outra pessoa, ou seja, desde que essa pessoa não altere a integridade física da propriedade de outrem, ou limite o controlo sobre essa propriedade, sem autorização do proprietário. Em particular, a partir do momento em que um bem tenha sido apropriado originalmente por alguém que tenha «misturado o seu trabalho com ele» (como Locke o coloca) então a propriedade sobre esse bem só pode ser adquirida por meio de uma transferência contratual do título de propriedade por um prévio para um posterior dono.
A razão pela qual esta instituição leva, mais do que qualquer outra alternativa, à produção de riqueza é simples. Qualquer desvio desta colecção de regras implica, por definição, redistribuir títulos de propriedade (e logo, de rendimento) dos apropriadores originais e produtores e daqueles que os adquiriram por meio contratual para outros que não os apropriaram, produziram ou adquiriram de forma contratual. Como consequência, qualquer desvio implica que haverá relativamente menos apropriação original de recursos escassos, que haverá menos produção de novos bens, menos manutenção de bens já existentes e menos transacções mutuamente benéficas. Isto, naturalmente, implica um nível de riqueza mais baixo em termos de bens e serviços transaccionáveis. Mais: a provisão de que só o primeiro utilizador (não um posterior) de um bem adquire propriedade assegura que os esforços produtivos serão tão altos quanto possível a todos os momentos. E a provisão de que só a integridade física de uma propriedade (não o valor da propriedade) seja protegido garante que todos os proprietários levem a cabo os esforços que produzam o maior valor possível, isto é, esforços que promovam mudanças favoráveis nos valores das propriedades e que previnam ou vão contra qualquer mudança desfavorável nesses mesmos valores (já que estes podem resultar das acções de outra pessoa em relação à sua propriedade). Assim, qualquer desvio destas regras implica também níveis reduzidos de esforços que produzam valor.
Agora, vamos dedicar-nos à nossa principal tarefa: demonstrar que a instituição de propriedade privada tal como foi caracterizada é justa – na verdade, como só esta instituição é justa e como qualquer desvio é, não apenas, ineficiente mas também injusto.
Em primeiro lugar, porém, é necessário clarificar uma semelhança essencial entre o problema tratado pela economia política e o tratado pela filosofia política – uma semelhança que os filósofos políticos na sua ignorância generalizada de economia negligenciam apenas para acabar em intermináveis ad hocs. O reconhecimento da escassez é não apenas o ponto de partida para a economia política; é também o ponto de partida para a filosofia política. Evidentemente, se houvesse uma superabundância de bens não existiria nenhum problema económico. Com uma superabundância de bens tal que o meu uso presente desses bens não afectaria o meu uso futuro desses bens ou o uso presente ou futuro desses bens para outra pessoa, problemas éticos de certo ou errado, justo ou injusto não existiriam, visto que nenhum conflito sobre o uso desses bens poderia surgir. A ética e a economia só são necessárias na medida em que existe escassez. Da mesma forma, tal como a resposta ao problema da economia política tem de ser formulado em termos de regras que limitem os usos possíveis de recursos escassos, a filosofia política tem igualmente de responder em termos de direitos de propriedade. De forma a evitar conflitos, a filosofia política tem de formular determinadas regras que atribuam direitos de controlo exclusivo sobre recursos escassos. (Note-se que mesmo no Jardim do Éden, o corpo de uma pessoa, o espaço ocupado pelo corpo e o tempo seriam, ainda, recursos escassos e, nessa medida, a economia e filosofia política ainda teriam uma tarefa, ainda que limitada, a cumprir).
Agora, para provar a tese de que entre todas as formas possíveis de atribuir direitos de controlo exclusivo só as previamente descritas regras de propriedade privada são justificáveis, irei apresentar o meu argumento passo a passo:
(1) Primeiro, embora a escassez seja uma condição necessária para o surgimento de um problema de filosofia política, não é suficiente. Já que, evidentemente, poderiam haver conflitos em relação ao uso de recursos escassos com, por exemplo, um elefante ou um mosquito. Porém, não consideraríamos possível resolver estes conflitos ao propor normas de propriedade. Em tais casos, evitar possíveis conflitos é meramente uma questão tecnológica e prática, não um problema ético. Para se tornar um problema ético, é igualmente necessário que os sujeitos em conflito sejam capazes, em princípio, de argumentação. Na verdade, é inegavelmente assim porque também aqui estamos a recorrer à argumentação. Negar que a filosofia política pressupõe argumentação é contraditório, já que a própria negação seria uma forma de argumentação. Apenas com argumentação surge a ideia de validade e verdade e de forma alguma apenas a ideia de verdade em assuntos éticos mas de verdade em geral. Apenas em argumentação pode ser postulada uma verdade, e é apenas no curso de uma argumentação que pode ser decidido se algo é ou não verdade. Esta proposição é também inegavelmente verdade: não é possível argumentar que não é possível argumentar, e não é possível disputar o facto de que se sabe o que é postular uma verdade sem implicitamente postular que pelo menos a negação desta proposição é verdade. O meu primeiro passo neste raciocínio foi chamado de «o a priori da argumentação» pelos filósofos Jürgen Habermas e K. O. Apel 1.
(2) Da mesma forma que é inegavelmente verdade que a ética requer argumentação, é igualmente inegavelmente verdade que qualquer argumento requer uma pessoa que argumente. A argumentação não consiste em proposições flutuantes. É uma actividade. Se, então, à parte do que quer que seja dito no seu decorrer, a argumentação é também uma questão prática e se a argumentação é a pressuposição de que é possível postular verdades e possivelmente proposições verdadeiras, então é necessário que existam normas com significado entre sujeitos – nomeadamente aquelas que designam uma determinada acção como argumentação – que têm de ter um estatuto cognitivo especial na medida em que são as condições práticas prévias da verdade. Uma vez mais, isto é verdade a priori, de forma a que alguém, como um empirista-positivista-emotivista, que negue a possibilidade de uma ética racional e declarasse a aceitação ou rejeição de normas como algo arbitrário seria apanhado invariavelmente numa contradição prática. Já que, ao contrário do essa pessoa diria, estaria na verdade a pressupor certas normas que permitem qualquer argumentação como válidas simplesmente de forma a poder dizê-lo.
(3) Neste passo perco a companhia, de uma vez por todas, de filósofos como Habermas e Apel 2. No entanto, como irá ficar claro imediatamente, o meu argumento está directamente implicado no passo anterior. Que Habermas e Apel sejam incapazes de dar este passo é, a meu ver, dado ao facto de que, também eles sofrem, tal como muitos outros filósofos, de uma completa ignorância de economia e de uma correspondente cegueira em relação à evidência da escassez. O passo é simplesmente este: reconhecer que a argumentação é uma forma de acção e não consiste em sons flutuantes independentes de quem argumenta implica o reconhecimento do facto de que toda a argumentação requer que a pessoa que argumenta tenha controlo exclusivo sobre o recurso escasso que é o seu corpo. Enquanto houver argumentação, há o reconhecimento mútuo do direito de propriedade de cada um dos intervenientes nos seus próprios corpos. É este reconhecimento do controlo exclusivo sobre o próprio corpo, pressuposto pela argumentação, que explica a característica única da comunicação verbal: que embora seja possível discordar do que foi dito, é ainda e pelo menos possível concordar sobre o facto de que existe uma discórdia. Uma vez mais, tal direito de propriedade sobre o próprio corpo é justificado a priori, já que qualquer pessoa que tente justificar qualquer norma possível tem de pressupor à partida o controlo exclusivo sobre o seu corpo como uma norma válida simplesmente de forma a poder dizê-lo. Além disso, qualquer pessoa que tentasse disputar o direito de propriedade sobre o seu próprio corpo seria apanhado numa contradição prática já que argumentar desta forma pressuporia já a aceitação dessa mesma norma que se estaria a disputar. Se tivesse razão, essa pessoa nem sequer abriria a boca.
(4) O argumento final adiciona a ideia da propriedade privada como justificada, e justificada a priori, a partir do protótipo de um recurso escasso (o próprio corpo) para outros bens e consiste em duas partes. Primeiro demonstro que a argumentação, e a justificação argumentativa de qualquer coisa, pressupõe não só o direito ao controlo exclusivo sobre o próprio corpo mas o direito a controlar também outros bens escassos, já que se ninguém tivesse o direito de controlar nada a não ser o próprio corpo, todos deixaríamos de existir e o problema de justificar normas – tal como todos os outros problemas humanos – simplesmente não existiriam. Já que não podemos viver apenas de ar, o simples facto de estar vivo pressupõe o direito de propriedade sobre outros bens que não o próprio corpo como válido. Ninguém vivo pode disputar este facto.
A segunda parte do argumento demonstra que só a ideia de Locke de estabelecer direitos de propriedade por apropriação original é um princípio justo de aquisição de propriedade. A prova emprega um simples argumentum a contrario: Se uma pessoa não adquirisse o direito de controlo exclusivo sobre outros bens presentes na natureza pelo seu próprio trabalho, isto é, se outras pessoas, que não tivessem previamente usado esses bens, tivessem o direito de disputar a reivindicação de propriedade por parte do apropriador original, então isto seria possível apenas se se adquirisse propriedade não pelo trabalho, isto é, pelo estabelecer de alguma ligação objectiva entre uma pessoa particular e um particular recurso escasso, mas simplesmente por meio de declaração verbal. Esta solução – à parte o facto óbvio de que nem sequer seria uma verdadeira solução no sentido prático em que não providencia uma base para decidir entre reivindicações verbais opostas – é incompatível com o acima justificado princípio de propriedade sobre o próprio corpo. Porque se fosse possível de facto apropriar propriedade por decreto, isto implicaria que também seria possível simplesmente declarar o corpo de outra pessoa como propriedade própria. No entanto, como já vimos, afirmar que a propriedade é adquirida não por apropriação original mas por declaração envolve uma contradição prática: ninguém pode dizer e declarar nada, a não ser que o direito ao uso do seu corpo seja previamente assumido como válido devido ao facto de que, seja o que for que diga, foi essa pessoa, e mais ninguém, que apropriou originalmente esse corpo como instrumento para dizer seja o que for.
Com isto, a minha justificação a priori da instituição da propriedade privada está essencialmente completa. Apenas dois argumentos suplementares são necessários para salientar o porquê de todas as outras propostas éticas (chamemos-lhe socialistas) são argumentativamente indefensáveis.
(1) Segundo a ética de propriedade privada, recursos escassos que estão sob o controlo exclusivo dos seus proprietários são definidos em termos físicos e, mutatis mutandis, agressão é definida como uma invasão da integridade física da propriedade de outrem. Como indicado, o efeito económico desta provisão é maximizar os esforços que produzam o maior valor possível. Um desvio popular desta regra é, ao invés, definir agressão como uma invasão do valor ou da integridade psíquica da propriedade outrem. Esta ideia subjaz ao «difference principle» de John Rawls, o princípio de que todas as desigualdades devem ser para o benefício de todos, seja qual for a forma como essas desigualdades surgiram 3, subjaz também à afirmação de Robert Nozick de que uma «agência de protecção dominante» tem o direito de ilegalizar concorrentes sejam quais forem as suas acções, e também à sua afirmação relacionada de que «trocas não-produtivas», em que uma das partes estaria melhor se o outra não existisse, deveria ser ilegalizada, mais uma vez quer a troca envolvesse ou não agressão física 4.
Tais propostas são absurdas tal como são indefensáveis. Embora qualquer pessoa tenha o controlo sobre se as suas acções alteram a integridade física de algo, o controlo sobre se as próprias acções afectam o valor da propriedade de outrem pertence a outras pessoas e às suas avaliações. Seria necessário interrogar e chegar a um acordo com o mundo inteiro para ter a certeza que as acções planeadas não alterariam as avaliações de outra pessoa em relação à sua propriedade. Toda a gente estaria morta antes que isto pudesse ser conseguido. Além disso, a ideia de que o valor de uma propriedade deve ser protegida é argumentativamente indefensável, já que de forma a que se possa argumentar, tem de ser pressuposto que as acções devem ser permitidas antes de qualquer acordo porque, caso não fossem, não seria possível argumentá-lo. No entanto, se é possível, então isto é possível devido às fronteiras objectivas de propriedade, isto é, fronteiras que qualquer pessoa pode reconhecer como tal por si mesmo, sem ter de concordar primeiro com todas as outras pessoas em relação ao próprio sistema de valores e avaliações. Rawls e Nozick não poderiam sequer abrir as suas bocas se assim não fosse. O próprio facto de que as abrem prova, pois, que o que dizem está errado.
(2) O segundo desvio popular, igualmente absurdo e indefensável, é este: em vez de reconhecer a importância vital da distinção entre antes e depois na decisão de reivindicações de propriedade opostas – como a ética de propriedade privada faz, assegurando assim que os esforços que produzem valor sejam tão abundantes quanto possível – afirma-se que, essencialmente, que o facto de ter «chegado primeiro» é irrelevante e que quem chegou posteriormente tem igualmente direitos de propriedade. Mais uma vez, com esta crença nos direitos das gerações futuras, taxas de poupança «justas» e que tais, Rawls pode ser citado como exemplo. No entanto, se quem «chegou depois» de facto tivesse uma reivindicação de propriedade legítima aos recursos, então literalmente ninguém poderia fazer nada com nada na medida em que seria necessário o consentimento de todos os que «chegaram depois» antes de poder fazer o que quer que seja que se pretende fazer. Nem nós, nem os nossos antepassados, nem os nossos descendentes poderiam sobreviver se esta regra fosse seguida. No entanto, de forma a que qualquer pessoa – passada, presente ou futura – possa argumentar seja o que for tem de ser possível sobreviver, antes e agora. E além disso, para que seja possível fazer isso mesmo – e mesmo pessoas atrás do «véu de ignorância» Rawlsiano teriam de poder sobreviver – os direitos de propriedade não podem ser concebidos como se não tivessem carácter temporal e fossem independentes do número de pessoas envolvidas. Ao invés, os direitos de propriedade têm de ser pensados necessariamente como originados por acção em pontos temporais específicos por pessoas específicas. De outra forma, seria impossível para qualquer pessoa poder primeiro dizer algo num ponto temporal definido e para outra poder responder. Dizer simplesmente que a distinção entre antes e depois pode ser ignorada implica uma contradição, já que a possibilidade de se poder dizê-lo tem de pressupor a própria existência como uma unidade decisória independente num determinado ponto temporal.
Assim, concluo que qualquer ética socialista é um falhanço completo. Só a instituição de propriedade privada, que assegura também a maior produção de riqueza possível, pode ser argumentativamente justificada, já que é a condição necessária da própria argumentação.
- K.O. Apel, «Das Apriori der Kommunikationsgemeinschaft und die Grundlagen der Ethik», em idem, Transformation der Philosophie (Frankfurt/M., 1973), vol. II; Jürgen Habermas, Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln (Frankfurt/M. 1983) ↩︎
- Apel e Habermas ficam essencialmente silenciosos na questão decisiva sobre que prescrição ética de facto segue do reconhecimento do «a priori da argumentação». No entanto, existem afirmações que indicam que ambos parecem acreditar que alguma forma de social-democracia participativa está implícita neste a priori. O que se segue explica como nada poderia estar mais longe da verdade. ↩︎
- John Rawls, A Theory of Justice (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1971), p. 60, pp. 75f., 83. ↩︎
- Robert Nozick, Anarchy, State, and Utopia (New York: Basic Books, 1974), pp. 55f., 83–86. ↩︎
Sobre o artigo
Este texto constitui a primeira exposição da teoria ética apriorística de Hoppe e é um marco histórico e teórico na relação, até aí por fazer, entre o libertarianismo como teoria normativa e a praxeologia como teoria positiva. Foi publicado originalmente em 1988, com o título «The Justice of Economic Efficiency», no número 2 do volume 9 da Austrian Economics Newsletter. A versão inglesa pode ser encontrada no Mises Daily ou nos arquivos do Ludwig von Mises Institute.
Tradução de Rui Botelho Rodrigues.