Enquanto que pelo menos existe um pequeno grupo de economistas libertários hoje em dia nos EUA, a situação nas outras disciplinas da acção humana é de facto muito deprimente. A maioria dos outros cientistas políticos, por exemplo, ou estão empenhados na propagação de “modelos” científicos falaciosos ou então na gravação empírica da minutiae dos trabalhos da burocracia governamental. A pequena minoria de filósofos políticos (aqueles que ainda se debatem com questões básicas como a natureza e a verdadeira função do Estado), louvam as alegadas bênçãos da Ordem, Tradição, Comunidade, o “Leap in Being”1, e Boas Maneiras, mas que, no entanto, se mantêm silenciosos sobre a liberdade do indivíduo. Este miasma perverso torna ainda mais bem-vindo a publicação de uma notável colecção de palestras do Professor Bruno Leoni, jurista eminente e cientista político da Universidade de Pavia, em Itália. Aqui encontramos, por fim, um cientista político com fortes inclinações libertárias.
A tese principal do Professor Leoni é a de que até mesmo os economistas mais leais aos mercados livres admitem insensatamente que as leis devem ser criadas através da legislação governamental; Leoni evidencia que esta concessão fornece uma entrada inevitável para a tirania do Estado sobre o indivíduo. O outro lado da moeda da crescente intervenção do governo nos mercados livres tem sido a explosão de legislação, com a coacção inerente da maioria – ou, mais frequentemente, de uma oligarquia de pseudo-representantes de uma maioria – sobre o resto da população. Relacionado com isto, Leoni apresenta uma brilhante crítica de textos recentes de F.A. Hayek sobre a “rule of the law”. Em contraste com Hayek, que apela por regras legislativas gerais, opondo-se às imprecisões da burocracia arbitrária ou da “lei administrativa”, Leoni realça que a ameaça real e oculta à liberdade do indivíduo não é o estatuto administrativo mas sim o estatuto legislativo que torna a lei administrativa possível. Não é suficiente, demonstra Leoni, possuir leis gerais aplicáveis a toda a gente e escritas previamente; pois são estas próprias leis que podem – e fazem-no, em geral – invadir a liberdade.
A grande contribuição de Leoni é o de destacar até mesmo aos nossos mais leais teóricos do laissez-faire uma alternativa à tirania da legislação. Em vez de se aceitar seja a lei administrativa ou a legislação, Leoni apela a um regresso às antigas tradições e princípios da “judge-made law”, como um método para limitar o Estado e assegurar a liberdade. No direito privado Romano, nos Códigos Civis Continentais, no common law (Direito Consuetudinário) Anglo-Saxão, a “lei” não significava aquilo que hoje pensamos: decretos intermináveis de uma legislatura ou de um executivo. A “lei” não era decretada mas instituída ou descoberta; era um corpo de regras consuetudinárias que cresceu de forma espontânea e voluntária entre as pessoas, tal como a linguagem ou os usos e costumes. Estas regras espontâneas constituam “a lei”; e eram as obras dos peritos em leis – os velhos homens da tribo, juízes ou advogados – que determinavam aquilo que era a lei e como se aplicaria aos numerosos casos em disputa que surgem perpetuamente.
Se a legislação toma o lugar desta judge-made law, diz Leoni, a seguridade e a constância (um dos princípios do “rule of law”), será o que encontraremos em vez dos éditos caprichosos e confusos da legislação estatutária. O corpo da judge-made law muda muito lentamente; além disso, como as decisões judiciais apenas podem ser feitas quando as partes se apresentam em tribunal, e como as decisões apenas se aplicam, correctamente, ao caso concreto, a judge-made law – em contraste com a legislação – permite a proliferação de um vasto corpo de regras voluntárias, acordos, e arbitragens livremente adoptadas, conforme a necessidade da sociedade. Leoni demonstra de forma brilhante a analogia entre estas regras livres e acordos, que verdadeiramente expressam a “vontade comum” de todos os participantes, e os acordos e trocas voluntários do mercado livre2. O irmão gémeo da economia dos mercados livres não é a legislatura democrática com sempre novos diktats incomodativos sobre a sociedade, mas sim a proliferação de regras voluntárias interpretadas e aplicadas por peritos em leis.
Leoni é vago e ausente no que toca à estrutura que os seus tribunais teriam, mas pelo menos indica a possibilidade de juízes e tribunais concorrentes privados. À questão, “quem nomearia os juízes?”, Leoni responde com a questão de quem agora “nomeia” os médicos ou os cientistas proeminentes na sociedade? Não são designados, mas ganham aceitação geral e voluntária sobre os seus méritos. Paralelamente, enquanto que em algumas passagens Leoni aceita a ideia de um tribunal supremo governamental, o qual admite que este se torne em si mesmo uma quasi-legislatura3, apela de facto à restauração da prática antiga da separação do governo da função judicial. Se não por qualquer outra razão, a obra do Professor Leoni é extremamente valiosa ao levantar, nesta era do Estado mítico, a possibilidade de uma solução funcional de separação da função judicial do aparelho do Estado.
Uma lacuna grave da tese de Leoni é a ausência de qualquer critério ao conteúdo da judge-made law. É um acidente feliz da história que uma grande parte do direito privado e do common law seja libertário – a de que são elaborados como os meios para a preservação da pessoa e propriedade contra a “invasão” – mas uma grande parte da lei antiga é anti libertária e certamente não podemos sempre confiar que os costumes possam ser consistentes com a liberdade. Os costumes antigos podem ser, afinal, uma defesa frágil de facto; se os costumes são opressivos da liberdade, estes deverão servir ainda como a estrutura legal permanente? Vamos supor que os costumes antigos decretam que virgens deverão ser sacrificadas aos deuses à lua cheia, ou que os ruivos devem ser executados aos demónios? E então? Será que os costumes não deverão ser submetidos a um teste maior – a razão?
O Direito Consuetudinário contém elementos anti libertários tais como a lei da “conspiração”, e a lei da “difamação sediciosa” (que prescrevia proibições de críticas ao governo), largamente injectada pelos reis e os seus subordinados. E talvez o aspecto mais fraco da obra é a veneração pela Lei Romana; se a Lei Romana proporcionasse um paraíso de liberdade, como poderemos explicar a tributação esmagadora, a inflação periódica e a desvalorização corrente, a rede repressiva de controlos e medidas de “assistencialismo”, a autoridade imperial ilimitada do Império Romano?
Leoni oferece diversos e diferentes critérios para o conteúdo da lei, mas nenhum deles tem muito êxito. Um é a unanimidade. Mas embora possa parecer plausível, à primeira vista, até mesmo a unanimidade explícita não é necessariamente libertária; pois vamos supor que não existam Muçulmanos numa nação, e toda a gente decide, de forma unânime, – e é passada como costume – de que todos os Muçulmanos deverão ser mortos. E se, mais tarde, aparecerem Muçulmanos nessa terra? Para mais, como Leoni reconhece, existe o problema do criminoso; certamente que este não se junta para o favorecimento do seu próprio castigo. Aqui Leoni recua para uma construção torturada de uma unanimidade implícita, i.e., a de que, no caso de um homicídio ou roubo, o criminoso aceitaria o castigo se qualquer outro for o criminoso, de forma que este concordará de facto com a justiça de lei. Mas vamos supor que o criminoso, ou outros da comunidade, têm a crença filosófica que certos grupos de pessoas (sejam elas ruivas, Muçulmanos, senhorios, capitalistas, generais, ou seja o que for) merecem ser mortos. Se a vítima é um membro desses grupos proibidos, então nem os criminosos nem os restantes que mantém esta crença concordariam com a justiça ou até mesmo com a lei geral contra o homicídio ou com o castigo de um homicida em particular. Este pressuposto apenas é suficiente para derrubar a teoria da unanimidade-implícita.
Um segundo critério proposto para o conteúdo da lei é o negativo da Regra de Ouro: “Não faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti”. Mas este também não é satisfatório. Para já, alguns actos geralmente considerados criminosos passariam o teste do negativo da Regra de Ouro: assim, um sadomasoquista pode torturar outra pessoa, pois como ele teria prazer em ser torturado, o seu acto, sob o negativo da Regra de ouro, não pode ser considerado criminoso. Por outro lado, o critério é muito largo; muitos actos seriam considerados criminosos que certamente não o deveriam ser. Assim, a Regra determina que os homens não devem mentir (um homem não gostaria que lhe mentissem) e contudo poucos apelariam para que todas as mentiras deveriam ser proibidas. E também, a Regra de Ouro decretaria que nenhum homem pudesse ignorar um pedinte, pois não quereria que o pedinte o ignorasse se trocassem de lugares – e contudo dificilmente será libertário proibir a entrega de esmolas a pedintes.4
Leoni aponta um critério muito mais promissor: a de que a liberdade deverá ser definida como a ausência de restrições ou coacção – excepto contra os coarctadores. Neste caso, a iniciação de coacção é proibida, e a função “governamental” torna-se estritamente a coacção dos coarctadores. Infelizmente, Leoni cai na mesma armadilha de Hayek quando este escreveu na sua Constitution of Liberty: “coacção” ou “restrição” não é definida de forma correcta ou convincente5. Ao princípio, Leoni dá-nos uma promessa de um entendimento correcto da coacção quando diz que não se pode dizer que um homem “restringe” outro homem quando este recusa comprar bens ou serviços deste, ou quando se recusa a salvar um homem de afogamento. Mas a seguir, no infeliz capítulo 8, Leoni concede que a restrição pode ocorrer quando uma pessoa religiosamente devota se sente “restrita” quando outra não observa as suas práticas religiosas. E estes sentimentos de restrição podem ser a justificação de invasões à liberdade como as leis Sunday Blue6. Mais uma vez, Leoni erra ao colocar o seu teste de restrição ou coacção não nos actos objectivos dos réus, mas nos sentimentos subjectivos dos queixosos. Esta é certamente uma auto-estrada muito larga para a tirania!
Além disso, Leoni aparentemente não se apercebe que a tributação é um exemplo fundamental de coacção, e que será dificilmente compatível com a sua imagem de sociedade livre. Pois se a coacção deverá ser confinada aos coarctadores, então certamente que a tributação é uma extracção injusta coactiva da propriedade de um vasto número de cidadão não coarctadores. Como poderá isto ser justificado? Leoni, ainda no capítulo 8, concede também a existência de alguma legislação na sua sociedade ideal, incluindo, mirabile dictum, algumas indústrias nacionalizadas!7 Uma nacionalização específica patrocinada por Leoni é a indústria dos faróis. O seu argumento é o de que um farol não pode cobrar aos consumidores individuais pelo seu serviço, e assim este serviço terá que ser fornecido pelo governo.
A resposta básica a este argumento é tripla:
- A tributação aos faróis impõe coacção e é assim uma invasão da liberdade.
- Mesmo que os faróis não pudessem cobrar aos indivíduos, o que impede as companhias de navegação de construir ou subsidiar os seus próprios faróis? A resposta habitual é a de que nessa altura haveria “free riders” que beneficiariam do serviço sem pagar. Mas isto é universalmente verdadeiro para qualquer sociedade. Se eu me torno uma pessoa melhor, ou se trato bem do meu jardim, acrescento benefícios desfrutados por outros. Estarei eu habilitado a tributá-los por causa desta feliz ocorrência?
- De facto, os faróis podem facilmente cobrar aos navios pelos seus serviços, se a estes lhes fosse permitido possuir aquelas superfícies do mar que transformam pela sua iluminação. Um homem que toma propriedade de uma terra desconhecida e a transforma em usos produtivos tem prontamente garantida a propriedade dessa terra, a qual pode ser assim ser usada economicamente; porque é que não deverá ser aplicada a mesma regra a outro recurso natural, o mar? Se fosse garantida ao dono do farol a propriedade da área do mar que ilumina, este poderia cobrar a cada barco que por lá passasse. A deficiência aqui não é uma falha de mercado, mas do governo e da sociedade ao não garantir a propriedade ao dono devido de um recurso.
Sobre a necessidade da tributação para faróis governamentais e outros serviços, Leoni acrescenta um comentário surpreendente, o de que “nestes casos o princípio da livre escolha nas actividades económicas não é abandonado ou até mesmo posto em dúvida”. Porquê? Porque “se admite” que as pessoas estariam dispostas a pagar por estes serviços de qualquer maneira, se estivessem disponíveis no mercado. Mas quem é que o admite, e em que medida’? E quem pagaria?
O nosso problema pode ser resolvido, contudo; existe de facto um critério convincente no conteúdo da lei libertária. Esse critério define a coacção ou a restrição simplesmente como a iniciação de violência, ou a ameaça desta, contra outra pessoa. Torna-se assim claro que o uso da coacção (a violência), deverá estar confinado à coacção dos iniciadores de violência contra os seus semelhantes. Uma das razões para dirigir a nossa atenção à violência é que a única arma usada pelo governo (ou de qualquer outra agência de combate ao crime), é precisamente a ameaça da violência. “Proibir” qualquer acção é precisamente ameaçar o uso de violência contra qualquer um que a cometa. Porque não então usar a violência apenas para inibir aqueles que iniciam a violência, e não contra qualquer outra acção ou não acção que alguém possa considerar para definir como “coacção” ou “restrição”?
E contudo o enigma trágico é que tantos pensadores quasi-libertários falharam na adopção desta definição de restrição ou falharam na limitação da violência à contrariação da violência, e em vez disso abriram a porta ao estatismo pelo uso de conceitos tão vagos e confusos como “dano”, “interferência”, “sentimentos de restrição”, etc. Decrete-se que não poderá existir violência contra outros homens, e toda as lacunas para a tirania, que até mesmo Leoni concede – blue laws, faróis costeiros governamentais, tributação, etc – tudo isso desapareceria.
Em resumo, existe de facto outra alternativa para a lei em sociedade, uma alternativa não apenas ao decreto administrativo ou legislação estatutária, mas até mesmo ao judge-made law. A alternativa é a lei libertária, baseada no critério de que a violência apenas pode ser usada contra aqueles que iniciam a violência, é assim baseada na inviolabilidade da pessoa e propriedade de cada indivíduo da “invasão” pela violência. Na prática, significa tomar no direito consuetudinário largamente libertário, e corrigi-lo através da razão humana, antes de o estabelecer através de um código libertário permanente ou uma constituição. E isto significa a contínua interpretação e aplicação deste código da lei libertária através de peritos e juízes em tribunais privados concorrentes.
O Prof. Leoni conclui o seu livro altamente estimulante e importante ao dizer que “a feitura da lei é muito mais um processo teórico do que um acto de vontade.” Mas certamente um “processo teórico” implica o uso da razão humana para o estabelecimento de um código de leis que seja uma fortaleza sem brechas e sem lacunas na defesa da liberdade humana.
Este ensaio é uma resenha do livro “Freedom and the Law” de Bruno Leoni. Foi publicado inicialmente na revista “New Individualist Review”, editada por Ralph Raico
- Termo popularizado por Eric Voegelin (N. do T.). ↩︎
- Isto contrasta com a afirmação falsa das legislaturas “democráticas” – que impõem coercivamente as suas regras aos dissidentes – de serem expressões da “vontade comum”. Para ser “comum”, salienta Leoni, a vontade comum deve ser unânime. ↩︎
- A certa altura, Leoni parece acreditar que a exigência de unanimidade no Supremo Tribunal para qualquer mudança em decisões anteriores estabeleceria aproximadamente o “modelo Leoni” na cena americana. Mas aqui tudo depende do “ponto zero” em que é introduzido o requisito de unanimidade. No actual mundo fortemente dominado pelo Estado, um requisito de unanimidade para a mudança tenderia a fixar permanentemente as nossas regulamentações estatistas na sociedade. ↩︎
- Um erro crítico – neste e noutros lugares – é a tendência de Leoni de fazer do teste da criminalidade os sentimentos subjectivos dos participantes, em vez das suas acções objectivas. ↩︎
- Para uma excelente crítica da concepção de coerção de Hayek, ver Ronald Hamowy, “Hayek’s Concept of Freedom: A Critique”, New Individualist Review, (Abril de 1961), pp. 28-31 ↩︎
- Leis que proíbem certas actividades ou a venda de certos bens ou serviços em dias específicos (geralmente Domingos) (N. do T.). ↩︎
- Assim, Leoni afirma que, naqueles casos confusos em que a criminalidade ou a coerção não podem ser determinadas objectivamente, existe espaço para legislação coercitiva sobre o assunto. Mas certamente a regra adequada – e libertária – é que os casos confusos sejam decididos em favor do “laissez-faire” – de deixar a actividade prosseguir. ↩︎