(Parte 2 de 3. Parte 1 aqui.)
“O papel-moeda teve o efeito no vosso estado que sempre teria: arruinar o comércio, oprimir os honestos, e abrir a porta a toda a espécie de fraude e injustiça.”
George Washington
Providenciar dinheiro que não pode ser inflacionado/desvalorizado, permitindo poupar para o futuro
Benjamin Franklin proferiu no século XVIII que existem apenas duas certezas na vida: morte e impostos. Não será um escândalo para praticamente ninguém se juntarmos uma nova certeza a esta tão honrosa lista. Os preços de praticamente tudo aquilo que necessitamos para procurarmos a nossa felicidade, (a famosa “pursuit of happiness”, como está descrita na declaração de independência americana) subirem à medida que caminhamos rapidamente para o fim dos nossos dias. A verdade é que a conjunção de subidas de preços e real crescimento económico tem um grau de veracidade inexistente. Não passa de uma truque de magia negra liderado por demais financeiros deste mundo fora. Vamos lá desmascarar esta feitiçaria então.
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Há uns valentes anos atrás tive a oportunidade de trabalhar junto de um familiar que se dedica à produção de viveiros vitícolas. Se beber, ou bebeu um copo de tinto produzido em Portugal hoje, existe uma pequeníssima probabilidade das videiras de onde foram colhidas as uvas, tenham sido enxertada por nós. Como em todas as micro-pequeno-nano empresas por este Portugal fora, esse meu familiar era uma espécie de CEO/engenheiro/comercial/contabilista/secretário, sendo que ainda era brindado com aquilo que, com muitíssima ginástica mental, poderemos apelidar de departamento de Investigação e Desenvolvimento da empresa. Visto que existem variadíssimas formas/estratégias/procedimentos/engenhocas para produzir os viveiros, o objectivo passava por melhorar os seus processos produtivos, de modo a minimizar os custos de produção, mantendo sempre a qualidade do produto final.
Após inúmeras experiências, lá conseguimos perceber uma forma de produzir os viveiros de forma mais eficiente e barata, numa espécie de avanço tecnológico de carácter mais rústico e menos computacional. Significa isto que para o mesmo output com a mesma qualidade, conseguíamos produzir x% mais barato. Ora isto na minha cabeça só podia resultar em 3 cenários: (ou um misto das 3) um maior nível de lucro no final do ano, maior capacidade para pagar salários aos trabalhadores ou descer preços para o consumidor final. Subir preços era uma peça que simplesmente não encaixava neste puzzle. Ora, se vivemos num mundo onde a tecnologia facilita-nos cada vez mais a vida, produzindo de forma cada vez mais eficiente tudo aquilo que precisamos, como é que os anos passam e os preços sobem cada vez mais, obrigando cada vez mais pessoas a trabalharem cada vez mais? Qualquer coisa aqui não bate certo.
A verdade é que não são os bens e serviços produzidos na economia que vão ficando cada vez mais caros. É o nosso dinheiro que vai perdendo o seu valor ao longo do tempo. Mas o problema aqui nem passa necessariamente pelo aumento da oferta do dinheiro fiduciário em si que provoca a sua desvalorização, mas sim pelo facto de que o estado confere um estatuto legal privilegiado a esse mesmo dinheiro, através do monopólio de coerção que detém sobre os cidadãos. Se alguém rejeitar ser pago em euros, querendo seguidamente contestar essa dívida em questão no nosso sistema legal, o mesmo se encarregará de referir que a dívida foi paga e que não existe qualquer motivo para que haja um conflito legal entre as partes. Para além deste ponto, todos os impostos têm de ser obrigatoriamente pagos na moeda que o estado controla. São estes os dois principais factores que acabam por dizimar completamente o desenvolvimento de um mercado concorrencial no que diz respeito ao dinheiro. Se respirássemos um mercado livre no que diz respeito a este, os agentes económicos simplesmente escolheriam outro bem enquanto dinheiro e abandonariam aquele que é sistematicamente manipulado e cuja massa monetária é sistematicamente aumentada em proveito de quem a controla. Foi este processo natural de concorrência entre os milhares de bens na economia que fez com que o mercado convergisse no ouro como o dinheiro de eleição na economia. Desta forma, os agentes económicos são obrigados a transaccionar com dinheiro cujo valor é ancorado numa esfera gigante de nada, sendo sistematicamente manipulado pelos doutores lá no bem alto das suas torres de marfim. Tendo em conta que praticamente todos os governos ocidentais (e restantes agentes económicos já agora) estão mergulhados numa piscina de dívida, gastando mais do que aquilo que cobram aos cidadãos de forma directa, a única escapatória para esta espiral de dívida será sempre a impressão de novo dinheiro por parte dos bancos centrais e demais sistema financeiro para continuar este ciclo vicioso, desvalorizando as poupanças de quem por exemplo trabalhou uma vida inteira e não tem qualquer conhecimento/capacidade para investir o seu dinheiro no mercado e conseguir obter uma rentabilidade superior à taxa oficial de inflação que é calculada relativamente a uma realidade económica que de real não tem absolutamente nada. Teremos em mãos uma repressão financeira. Não sou eu que o digo. É o próprio FMI.
Façamos uma ponderação devidamente sensata sobre esta questão. Porque raio um médico, um advogado, um electricista, um agricultor ou outro qualquer membro produtivo da sociedade, depois de trabalhar 40/50/60/70 horas por semana no seu trabalho, tem de procurar tornar-se um Warren Buffet 2.0 ou um dono de uns quantos alojamentos locais para poupar para o futuro? Imaginemos num mundo imaginário quiçá apelidado de Fish Street, que um gestor de um fundo de investimento era obrigado no final de todos os anos a investir o seu tempo e as suas poupanças numa expedição rumo ao alto mar com o objectivo final de pescar a máxima quantidade de peixe possível. Se a expedição fosse bem-sucedida, os bolsos do sujeito em questão ficariam recheadíssimos, sendo que uma parte do peixe reverteria para o estado. Se aparecesse uma baleia à Moby Dick pelo caminho, o desfecho não seria de todo positivo. Lá iam pela goela as poupanças de um ano de trabalho. Alguns dirão que o problema é facilmente resolvido: basta que os gestores de fundos contratem os melhores pescadores para fazer o trabalho duro. No mercado estão disponíveis equipas de pescadores que têm uma taxa de sucesso relativamente decente. Só que existe um ligeiro senão: estas são raras e imensamente custosas. Conclusão: apenas os gestores que já têm os bolsos carregados é que são capazes de ter o apoio destes profissionais do mar e como tal, lá vão conseguindo ter expedições bem-sucedidas. Aqueles que não têm grandes trocos nos bolsos, estão condenados a dois desfechos: ou vão para o alto mar com pouca ou nenhuma experiência e conhecimento enfrentar o mar vadio e todos os riscos inerentes a este, especulando lá pelo meio na melhor forma de apanhar o maior peixe do oceano, ou levam uma penalização anual de x% por serem “cobardes” e não quererem arriscar as suas poupanças na dinamização da indústria da pesca e demais indústrias que são alimentadas por este mesmo sector. Claro que nesta economia de Fish Street, o sector dos peixes acaba por ter uma representação muito superior àquela que seria natural numa economia que não tivesse esta penalização para todos aqueles que quisessem aforrar as suas poupanças para o futuro.
Satoshi resolve este problema através da introdução de um dinheiro que é tecnologicamente superior ao dinheiro fiduciário. Visto que é impossível adulterar a oferta de Bitcoin, (irá convergir para as 21 milhões de unidades no futuro), este está programado para preservar valor, enquanto que como vimos anteriormente, as moedas fiduciárias estão programadas para perdê-lo.
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Poupar com moedas fiduciárias acaba por ser bastante semelhante a utilizar cubos de gelo como veículo de poupança para o futuro. Mais tarde ou mais cedo, estes acabam por derreter, perdendo o seu valor nesse mesmo processo. Existem vários tipos de gelo com diversas velocidades de derretimento. Devido àquilo que se apelida de sample bias, as pessoas assumem que o mundo em geral funciona como aquilo que se passa à sua volta. Assumem que se têm acesso a uma conta bancária, o resto do mundo também o terá. Assumem que se têm acesso a moedas relativamente estáveis no curto-prazo como dólares, ienes, euros e francos suíços, o resto do mundo também o terá. A realidade é pintada de tons mais complexos do que os que imaginamos. Apenas 13% da população mundial tem acesso a estes cubos de gelo que derretem devagarinho. Mais de mil milhões de pessoas vivem em regimes económicos com taxas de inflação nos 2 ou 3 dígitos. Está na altura de reconhecermos o nosso privilégio financeiro.
“Todas as moedas fiat são cubos de gelo a derreter. A Bitcoin é um teste de QI em gestão de risco.”
Greg Foss
Num padrão bitcoin nadamos à boleia da corrente do progresso económico. Num padrão euro/dólar/iene chocamos de frente contra ela. Trabalhamos cada vez mais por um dinheiro que vale cada vez menos. É por isso que nadamos todos os dias no nosso trabalho mais do que o que o Michael Phelps nadou em toda a sua carreira, e não conseguimos sair do mesmo sítio. Satoshi deu-nos a oportunidade de nadar a favor da corrente sem morrermos afogados. Se quer chegar ao outro lado do rio, nade a favor da corrente, não contra ela.
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O “aniversário de Satoshi” e o Mecanismo de Ajuste da Dificuldade dos blocos
Se é verdade que com o ouro também podemos de certa forma nadar a favor da corrente do progresso económico, o risco de afogamento devido a um estrangulamento provocado pelos governos é bastante significativo. De acordo com o seu perfil no fórum bitcointalk, Satoshi terá colocado oxigénio nos seus pulmões pela primeira vez há sensivelmente 48 anos no dia 5 de Abril de 1975. Assim de repente, parece um aniversário como todos os outros dos comuns mortais. Porém, tem um significado bastante simbólico.
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No dia 5 de Abril de 1933, o governo dos Estados Unidos da América liderado por Franklin Roosevelt, lançou um dos maiores ataques da mais recente história ao direito fundamental da propriedade privada. Graças aos poderes concedidos ao governo americano pelo Enemy Act de 1917 e pelo Emergency Banking Act de 1933, e apegando-se à narrativa keynesiana de que a acumulação de ouro por parte dos agentes económicos (aka poupar em demasia) estava a travar a recuperação económica dos EUA após a grande depressão, o governo americano obrigou todos os cidadãos da terra de Uncle Sam a vender praticamente a totalidade do seu ouro ao próprio governo, ao preço de 20.67 dólares americanos. Quem não acatasse com a nova legislação, era penalizado com uma multa de 10 mil dólares (mais de 300 mil dólares a preços de hoje), ou brindado com 10 anos de prisão numa masmorra de uma prisão americana. Com uma pintinha de sorte, ficava com os dois prémios. Apenas um ano depois, o presidente Roosevelt assinou o Gold Reserve Act, que permitiu a reavaliação do preço do ouro dos 20.67 dólares, preço a que o ouro foi adquirido aos contribuintes americanos, para 35 dólares, desvalorizando o dólar americano em sensivelmente 58% num dia.
Agora que já sabemos qualquer coisa sobre o simbolismo da data do 5 de Abril, porque raio Satoshi decidiu colocar 1975 como ano de nascimento? Só 41 anos depois da ordem de Roosevelt é que os cidadãos americanos puderam acumular novamente poupança no metal amarelo-alaranjado. Em 1974, a ordem executiva 11825 assinada por Gerald Ford, 38º presidente dos Estados Unidos, reverteu a famosa ordem executiva 6102, repondo o direito dos americanos de deter ouro sem qualquer tipo de limitação ou restrição. A lei entrou em vigor no dia 31 de Dezembro de 1974. Em 1975 portanto.
Ainda que já dê para ter um cheirinho do simbolismo por detrás da data de nascimento de Satoshi Nakamoto, temos de falar daquela que é uma das mais importantes características tecnológicas do protocolo de bitcoin: o mecanismo de ajuste da dificuldade dos blocos, de modo a perceber a mensagem escondida de Satoshi na sua totalidade. Visto que bitcoin é um livro de registos partilhado por centenas de milhares de computadores, foi necessário desenvolver um método que permitisse a que todos os membros da rede cheguem a um consenso relativamente à forma de como actualizar esse mesmo livros de registos. Esse mecanismo apelida-se de prova de trabalho, proof-of-work em inglês, que consiste na simples premissa de que para alguém ter o direito de publicar o próximo bloco de transacções nesse mesmo livro, ele tem de demonstrar a todos os outros membros da rede, que trabalhou para carago. Como recompensa desse mesmo trabalho, os mineradores (como costumam ser apelidados) recebem uma espécie de bilhetes para uma lotaria, onde a quantidade de bilhetes que recebem é proporcional ao trabalho realizado. Em média, a cada 10 minutos sai um bilhete dourado que concede o direito de publicação do seguinte bloco ao detentor desse mesmo bilhete. O prémio consiste num subsídio pago pela rede, juntamente com as tarifas das transacções incluídas nesse bloco. Esse mesmo subsídio é cortado para metade de 4 em 4 anos, fazendo com que a oferta de bitcoin convirja (à velocidade de caracol) para o seu tecto final: 21 milhões de unidades.
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Só que temos um ligeiro problema em mãos. Se houver mais mineradores a trabalhar, mais bilhetes dourados serão encontrados pelos mineradores, o que significa que mais subsídios terão de ser emitidos, no mesmo período de tempo. Consequentemente, haverá um aumento de oferta superior ao que estava inicialmente previsto. Satoshi resolveu este problema, ajustando a dificuldade com que se encontram os bilhetes dourados. A cada 14 dias, a dificuldade é ajustada de modo que um bilhete dourado continue a ser encontrado em média a cada 10 minutos. Se houver mais mineradores na rede, torna-se mais difícil encontrar a galinha dos ovos de ouro. No cenário oposto, torna-se mais fácil. Desta forma, a oferta emitida de bitcoin é completamente independente do trabalho dos mineradores. Bitcoin é o único activo no planeta cuja oferta simplesmente não pode ser manipulada por ninguém. Fazendo rapidamente as contas, 6 blocos por hora * 24 horas por dia * 7 dias * 2 semanas = 2016 blocos. Ora, 2016 é precisamente o inverso de 6102. Para quem não está recordado, 6102 é o número da ordem executiva assinada por Roosevelt em 1933 que permitiu a expropriação do ouro detido pela população americana por parte do governo americano. Se ainda houver dúvidas sobre o objectivo de Satoshi, elas ficaram desfeitas. Reverter/inverter a tendência de maior abuso por parte do estado no que diz respeito ao direito da propriedade privada dos seus cidadãos. Desde o dia 3 de Janeiro de 2009 que é possível poupar os frutos do nosso trabalho para o futuro, sem ter de confiar em ninguém para o efeito, seja o estado, um banqueiro ou qualquer banqueiro central. Com apenas 12 palavras no nosso córtex cerebral, conseguimos transportar o nosso património para qualquer lado do mundo. À primeira impressão, poderá parecer que esta maior portabilidade de bitcoin face a outros activos não tem grande proposta de valor. Que estará à procura de um problema para resolver. Se nos colocarmos na situação de um refugiado de guerra, alguém que viva num regime político instável (a grande maioria da população mundial), ou de um retornado das antigas colónias portuguesas que tiveram de deixar tudo para trás, rapidamente percebemos que deter património que não tem qualquer portabilidade, como terra e imobiliário, acaba por comportar outro tipo de riscos que acabam sempre por passar despercebidos.