Os mercados fazem o que o planeamento não é capaz: permitem-nos descobrir a melhor forma de combinar os vários bens de capital na economia para servir os desejos humanos.
No início dos meus cursos de Economia Comparada, digo aos alunos que vou tentar evitar usar as palavras “capitalismo” e “socialismo” durante o semestre. É uma promessa que obviamente não posso cumprir, mas faço essa afirmação com um objectivo específico. Estas duas palavras causam uma série de mal-entendidos nas conversas sobre sistemas económicos. Uma das razões é que ambos os termos foram cunhados pelos críticos do capitalismo. Como resultado, as próprias palavras podem trazer um certo preconceito para a conversa. As duas expressões implicam uma história sobre o que está no centro de cada sistema e quem são os principais beneficiários de cada um deles. A palavra “capitalismo” sugere um sistema em que o poder reside no capital e em que os proprietários do capital são os principais beneficiários. “Socialismo”, por outro lado, sugere um sistema em que o poder recai sobre a sociedade como um todo, sendo que todos os seus membros são os primeiros beneficiários. A atracção que o socialismo exerce sobre muitos jovens de hoje e a sua aversão à palavra capitalismo podem estar relacionadas com a retórica implícita nesses termos.
Deixemos de lado, por enquanto, a realidade histórica de que os beneficiários implícitos de cada sistema foram, de facto, precisamente o oposto do que os nomes sugerem: o capitalismo beneficiou a sociedade como um todo de maneira incrível e o socialismo existente acabou por beneficiar principalmente alguns poucos seleccionados que tinham acesso ao poder político. Quando ensino este tema, digo aos alunos que prefiro usar os termos “mercado” e “planeamento” porque parecem ideologicamente menos marcados e porque descrevem os processos institucionais reais em acção em cada sistema. E já argumentei noutro lugar que os libertários deverão considerar seriamente abandonar a palavra “capitalismo” por estas e outras razões. Dito isto, neste ensaio quero apresentar o que considero ser o melhor argumento para justificar por que motivo a palavra “capitalismo” pode ser a palavra correta para descrever a economia de mercado liberal. Esse argumento tem tudo a ver com o papel do capital na resolução dos problemas económicos que todas as sociedades têm de enfrentar.
Uma forma de enquadrar o problema que a utilização do capital na sociedade levanta é a seguinte. Qualquer bem ou serviço que as pessoas desejem consumir pode ser produzido utilizando uma variedade de combinações de factores de produção. Existem múltiplas “ fórmulas ” para produzir um determinado bem ou serviço. Além disso, cada factor de produção de que dispomos pode ser utilizado para fabricar vários bens e serviços diferentes. O problema da utilização do capital na sociedade é como decidir qual a fórmula a utilizar para um determinado produto e como decidir que produção(ões) realizar a partir de um determinado recurso. Mesmo que saiba que quer construir uma ponte, deve construí-la em madeira, aço ou betão, ou que combinação de ambos? E se tiver um monte de aço à sua frente, deve utilizá-lo para construir uma ponte, um arranha-céus ou um estádio de futebol? Repare que não se trata de problemas de “engenharia” ou “tecnologia”. A resposta a estas perguntas tem de confrontar a ideia de valor. Que forma de construir uma ponte utiliza os recursos de menor valor (repare que o “ouro” não estava na lista) e que utilização do aço representa o maior valor criado para a sociedade? A melhor forma de conceber o problema económico é descobrir qual das formas tecnologicamente possíveis de produzir coisas é a mais eficiente do ponto de vista económico, ou seja, a que utiliza os recursos de menor valor. Por outras palavras, temos de decidir e voltar a decidir constantemente como utilizar o capital na sociedade.
A palavra “capital” é um dos termos mais contestados na história da economia. Em geral, refere-se aos inputs que utilizamos para criar outputs. O termo mais exacto seria “bens de capital”, em que “bens” inclui o que os economistas chamam “capital humano” ou as capacidades produtivas do trabalho. Como argumentei anteriormente, todas as sociedades têm de ter um processo através do qual decidem não só o que fazer mas também como o fazer. Ou seja, tem de ter um processo para determinar a utilização do capital. Se os bens de capital tivessem apenas uma utilização ou pudessem ser utilizados para uma variedade infinita de fins, não teríamos este problema. Ou não poderíamos escolher, ou não teríamos de escolher. Mas, de facto, os bens de capital são, como dizem os economistas austríacos, heterogéneos em termos de utilização. Quase todos os factores de produção têm pelo menos uma utilização, mas não um número infinito. Isto exige que escolha a melhor forma de os utilizar.
O problema da utilização do capital na sociedade está no centro do debate sobre o cálculo socialista do início do século XX. Marx e os socialistas marxianos defendiam que uma economia totalmente planificada, sem dinheiro, preços, mercados, trocas e propriedade privada, nomeadamente dos meios de produção (capital), seria mais racional e mais justa do que a anarquia da produção no capitalismo. O planeamento poderia afectar os recursos de forma mais racional e, por conseguinte, ser mais produtivo do que o capitalismo. Em 1920, Ludwig von Mises respondeu que não havia forma de saber se os recursos estavam a ser utilizados racionalmente no socialismo porque não havia forma de comparar as utilizações alternativas dos mesmos. Não havia um meio universal através do qual o valor dos bens pudesse ser comparado. Depois de mostrar porque é que as medidas de trabalho não podiam funcionar, argumentou que os preços monetários, resultantes da troca de propriedade privada dos meios de produção, eram a única forma de fazer essas comparações e, assim, garantir a utilização racional dos recursos. Era impossível, argumentou, que a economia planificada do socialismo se aproximasse da prosperidade criada pelo capitalismo. A afectação racional dos recursos exigia a propriedade privada dos meios de produção, o que permitia a concorrência entre múltiplos detentores e o aparecimento de preços monetários como “auxiliares da mente” para o cálculo de receitas e custos prospectivos, e de lucros e perdas. Sem a propriedade privada de capital, não seriam possíveis os mercados nem as trocas e, sem eles, não poderia haver preços como base para comparações de valor. Num mundo de propriedade colectiva dos meios de produção, os planeadores socialistas tropeçariam no escuro.
Nesta perspectiva, o capital está de facto no centro do capitalismo, embora não da forma que críticos como Marx acreditavam. A centralidade do capital não significa que sejam os proprietários do capital os principais beneficiários do sistema. Pelo contrário, faz algum sentido chamar ao sistema “capitalismo” porque tem uma resposta para o desafio da utilização do capital na sociedade. A propriedade privada dos meios de produção permite o surgimento de trocas, mercados e preços, e estes últimos permitem-nos determinar a melhor forma de utilizar os bens de capital. O que Mises defendeu em 1920, e que foi desenvolvido por académicos posteriores como Hayek e Don Lavoie, foi que o socialismo e outras formas de planeamento económico não tinham esse processo. A nossa capacidade de utilizar os preços para tomar decisões sobre como utilizar os bens de capital e o papel desempenhado pelos lucros e perdas para nos informar, a posteriori, se o fizemos bem, não tem contrapartida no socialismo. O planeamento não tem forma de saber até que ponto está a utilizar adequadamente os seus bens de capital.
É também por isso que Mises argumentou que nada era mais fundamental para uma economia capitalista do que os mercados de capitais e os mercados monetários. É aí que “essas transacções financeiras de promotores e especuladores… direccionam a produção para os canais nos quais ela satisfaz os desejos mais urgentes dos consumidores da melhor maneira possível”. As acções que mudam de mãos todos os dias e as alterações de preços que provocam são o que determina a utilização do capital na sociedade, à medida que os actores tentam discernir a melhor forma de fornecer os bens que os consumidores desejam. O que distingue o capitalismo é um conjunto de instituições organizadas que são capazes de resolver razoavelmente bem este problema da utilização do capital. Se quer saber se uma economia é capitalista, veja se tem um mercado de acções onde a propriedade do capital é disputada e onde se decidem as utilizações do capital.
Outra observação sobre toda esta linha de argumentação prende-se com a natureza do capital e dos bens de capital. Recorde-se que a necessidade de escolha no que respeita ao capital se deve àquilo a que os economistas da escola austríaca chamam a sua heterogeneidade de utilização. Os austríacos sempre sublinharam a forma como os bens de capital têm uma “especificidade múltipla” e podem ser utilizados para múltiplos objectivos, embora limitados. Isto contrasta com outras abordagens do capital na teoria económica. Essas perspectivas sobre o capital tratam-no frequentemente como uma massa indiferenciada, semelhante a uma sopa numa terrina que pode ser retirada e aplicada a qualquer número de produtos. Quer se trate da “fábrica de Crusonia” de Frank Knight, ou do “shmoo” de Paul Samuelson, ou do “k” nas funções de produção modernas, estas perspectivas do capital como agregados homogéneos obscureceram o problema da utilização do capital, que vem à tona com a perspectiva austríaca.
A utilização do capital não é uma questão de distribuir unidades idênticas de um qualquer agregado de capital ou investimento. Como Peter Boettke argumentou, os bens de capital não são como plasticina que pode ser moldada em qualquer forma que quisermos. São mais parecidos com Legos, em que as peças são diferentes e só podem ser combinadas de determinadas formas. Ou, como Don Boudreaux e eu próprio afirmámos, utilizar o capital é como encaixar as peças de um puzzle. Fazer com que os bens de capital se encaixem correctamente de forma a melhor satisfazer os desejos dos consumidores só será visto como o desafio relevante se a teoria do capital permitir essa heterogeneidade na utilização. Não é por acaso que foram os austríacos, como Mises e Hayek, que criticaram o planeamento socialista por não ter uma forma de garantir a utilização eficaz do capital na sociedade. Foi a sua própria teoria austríaca do capital que lhes permitiu ver o problema que precisava de ser resolvido e como a propriedade privada dos meios de produção o poderia resolver.
Os marxistas não estão errados ao reconhecerem que a economia de mercado está centrada no capital e que, por isso, pode ser designada por “capitalismo”. Se os defensores do capitalismo quiserem manter esse nome, terão de clarificar exactamente qual é o papel central do capital e por que razão é tão importante. Não é porque o capitalismo beneficia sobretudo os detentores do capital. Pelo contrário, são os consumidores que beneficiam. Em vez disso, chamar “capitalismo” à economia de mercado faz sentido porque só um sistema económico com propriedade privada do capital pode resolver o problema da utilização deste na sociedade.
Nota: artigo publicado originalmente em libertarianism.org