Num discurso recente em Portugal, Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu (BCE), alertou para o surgimento das stablecoins, afirmando que elas podem levar à criação de «novas moedas privadas». Essas stablecoins, que são tokens lastreados em moedas fiduciárias, representam um risco significativo tanto para a soberania das nações quanto para o «bem comum» da moeda. Por isso, ela pede que sejam regulamentadas a nível global.
Ao longo da sua declaração, torna-se claro que o principal risco destes activos digitais é a sua popularidade entre as populações que os vêem como uma forma relativamente simples de obter exposição às moedas fiduciárias «menos piores», com o dólar americano no topo da lista. De acordo com Lagarde, este sucesso nos mercados de criptomoedas compromete a eficácia das políticas monetárias dos bancos centrais, reduzindo a quantidade de dinheiro disponível nos bancos comerciais tradicionais:
Penso que estamos a ser vítimas de alguma confusão entre dinheiro, meios de pagamento e infraestrutura de pagamentos, e isso é acelerado ou enfatizado como resultado da tecnologia que está a ser utilizada, e algumas tecnologias em particular. Considero o dinheiro um bem público e nós próprios como servidores públicos responsáveis por garantir e proteger esse bem público.
O meu receio é que essa confusão de conceitos que mencionei anteriormente possa levar a uma privatização do dinheiro. Não creio que seja esse o objectivo para o qual fomos nomeados para desempenhar a nossa função, nem que seja bom para este bem público que é o dinheiro.
Outro ponto interessante na declaração de Christine Lagarde é que, tal como Andrew Bailey (Governador do Banco de Inglaterra), ela afirma que as stablecoins «fingem» ser moedas que não são. Segundo eles, as stablecoins não podem ser moedas porque não são emitidas por autoridades públicas, mas por empresas — ou seja, pelo próprio mercado.
O problema reside nesta concepção de moeda como um «bem público», cuja gestão, garantia e protecção são da responsabilidade dos responsáveis pelos bancos centrais.
O «Bem Público»
A noção de «bem público» é frequentemente associada à do interesse geral. Ao contrário do que os banqueiros centrais parecem defender, o interesse geral não reside na gestão centralizada e no monopólio estatal da moeda. Na verdade, qualquer moeda controlada a critério de uma autoridade central que não presta contas a ninguém representa uma ameaça ao interesse geral.
Primeiro, vamos definir o que significa «bem público». De acordo com Frédéric Bastiat — uma figura proeminente do liberalismo clássico —, o bem público abrange tudo o que precede e transcende toda a legislação humana: liberdade, propriedade e «personalidade» — ou seja, a dignidade, a vida e as capacidades únicas de cada indivíduo. É tudo o que a lei positiva (criada pelo Estado) deve proteger e não atacar continuamente, como faz. Tanto para os liberais clássicos como para os economistas austríacos, historicamente, o interesse geral tem sido visto como estando em todas as instituições espontâneas que os indivíduos criaram ao longo das gerações. Portanto, qualquer desejo por parte do legislador de desconstruir e reconstruir essas instituições em nome de um «novo interesse geral colectivo» constitui um ataque ao verdadeiro interesse geral que emergiu da acção humana. É claro que este é o caso da moeda — uma das primeiras instituições a ser manipulada — porque o monopólio da moeda é o monopólio mais poderoso que um grupo de indivíduos pode exercer sobre as massas. Como Hayek disse,
Numa sociedade livre, o bem geral consiste principalmente na facilitação da busca de fins individuais desconhecidos…
O bem público mais importante para o qual o governo é necessário não é, portanto, a satisfação directa de necessidades específicas, mas a garantia de condições nas quais os indivíduos e os grupos menores tenham oportunidades favoráveis de satisfazer mutuamente as suas respectivas necessidades.
A história mostra que o sistema bancário central tem continuamente usurpado o interesse público — nomeadamente, a propriedade, a liberdade individual e a individualidade — através da centralização, desvalorização e politização da moeda. O resultado destas políticas hoje é que a moeda é incapaz de cumprir o seu papel como reflexo da escassez relativa dos bens, meio de troca e reserva de valor. Em suma, a moeda fiduciária actual — proveniente do monopólio do estado — já não possui as propriedades essenciais da moeda.
Mas e se o papel dos bancos centrais fosse precisamente destruir o «bem público» que a moeda deveria representar, utilizando-a como ferramenta de pilhagem legal através da inflação monetária, causando instabilidade económica através da manipulação das taxas de juro do mercado e utilizando-a como arma contra as liberdades individuais através do controlo crescente do governo sobre a vida dos indivíduos? Neste contexto, a promessa de uma moeda digital do banco central europeu (CBDC) pode ser vista como o culminar deste ataque coordenado ao verdadeiro bem público.
Moedas Privadas e o Medo da Livre Concorrência Monetária
Mais uma vez, Hayek escreveu em The Denationalization of Money (A Desnacionalização do Dinheiro):
Se quisermos preservar uma economia de mercado funcional (e com ela a liberdade individual), nada pode ser mais urgente do que dissolver o casamento profano entre a política monetária e a política fiscal, há muito clandestino, mas formalmente consagrado com a vitória da economia «keynesiana».
Ao contrário do que Christine Lagarde parece estar a dizer, um sistema monetário de «moedas privadas» seria, pelo contrário, a melhor forma de promover e defender a noção de «bem público» e o interesse geral. Porquê? Simplesmente porque, ao dar aos indivíduos a escolha explícita da sua moeda, estes escolheriam naturalmente a melhor forma de moeda que o mercado lhes pode oferecer: uma moeda rara, que reflecte a escassez do mundo, neutra, não tributável e certa. Uma moeda na qual podemos armazenar a nossa energia e o nosso tempo, a fim de adiar e distribuir o seu uso tanto quanto possível. Idealmente, isso também implica uma moeda fora das mãos corruptíveis e falíveis dos homens.
É isso que defendem economistas austríacos, como Hayek no seu livro The Denationalization of Money. Segundo ele, a emissão de moedas privadas e a livre concorrência entre moedas levariam a uma moeda de melhor qualidade, uma vez que estaria sujeita aos mecanismos espontâneos de adopção. Este mecanismo teoriza a convergência natural das preferências individuais para um único meio de troca. Nesta lógica, os indivíduos que são livres para escolher a sua moeda irão naturalmente favorecer aquela que melhor mantém o seu valor, é a mais fiável para o cálculo económico e é a menos manipulável e falsificável pelos seres humanos.
Neste contexto de igualdade de condições — em que a soma dos interesses individuais se tornaria de facto o interesse geral —, o euro, como qualquer outra moeda fiduciária, não tem qualquer hipótese.
Artigo publicado originalmente no Mises Institute.