Artigo publicado originalmente no Mises Institute, em 9 de Setembro de 2022, dia seguinte ao falecimento da Rainha Elizabeth II.
Os monarcas europeus vêm e vão, mas os media americanos — sem dúvida devido ao facto de os britânicos falarem e escreverem em inglês — acompanham a monarquia britânica mais de perto que outras. Os especialistas americanos não tiveram muito a dizer quando o rei Juan Carlos da Espanha abdicou em 2014, na sequência de um escândalo de desvio de fundos. No entanto, apenas algumas horas após a morte da rainha Elizabeth II, já abundam as especulações sobre o futuro da monarquia britânica. Hayes Brown, da MSNBC, escreve esta semana, por exemplo, que Elizabeth manteve unida uma instituição em declínio, mas «é inteiramente provável que [o novo rei Carlos III] e o seu provável sucessor, o príncipe William, supervisionem o desmoronamento da própria monarquia».
Veremos.
Mas, num aspecto, Brown está inegavelmente certo: «As engrenagens do estado continuarão a girar sem ela». É claro que sim. No mundo moderno, nenhum dos monarcas da Europa é essencial nos regimes sobre os quais eles ostensivamente «reinam».
Na verdade, o simples facto de nos referirmos ao «estado» como algo distinto de um monarca ilustra um facto crucial sobre a relação entre monarcas e o Estado no mundo moderno: os estados ultrapassaram e substituíram os monarcas como a verdadeira fonte de poder legal e militar nos seus respectivos territórios. Os estados modernos expandiram subsequentemente esse poder muito além do que mesmo os monarcas mais ambiciosos dos séculos passados sonharam. Há, no entanto, uma ironia aqui. Na Europa, foram os próprios monarcas que construíram os tribunais e instituições militares nos imensos estados que conhecemos hoje. No entanto, nesse processo, os monarcas perderam o controlo dessas instituições cada vez mais pesadas e burocráticas. Eventualmente, os monarcas tornaram-se apêndices do estado, em vez do contrário, como os originalmente pretendiam. Tudo isso ocorreu mesmo antes do advento dos estados democráticos. No século XIX, o antigo modelo de governo dinástico privado foi derrubado pela máquina do estado, tanto democrática quanto não democrática.
A Monarquia antes do Estado
Certamente, as monarquias de hoje não devem ser confundidas com as monarquias que existiam antes do estado ganhar destaque nos séculos XVI e XVII.
Afinal de contas, os monarcas pré-estatais eram essencialmente proprietários privados de terras cuja renda dependia em grande parte das rendas cobradas das suas propriedades privadas. Essas rendas não eram necessariamente cobradas sob a forma de dinheiro, e o dinheiro era frequentemente escasso. No entanto, esses proprietários de terras cobravam recursos — na forma de colheitas, serviço militar ou outros pagamentos em espécie — daqueles que usavam as suas terras. Nesse ambiente, porém, não havia uma instituição “soberana” que exercesse o monopólio dos meios de coerção, e o sistema era essencialmente um sistema de direito privado. Era, como John Strayer descreveu, um sistema de «poder público em mãos privadas e um sistema militar no qual uma parte essencial das forças armadas é garantida por meio de contratos privados». Esses contratos resumiam-se, como Hendrik Spruyt descreve, a «governo por laços pessoais». Os acordos para prestar serviço militar, por exemplo, eram uma questão de promessas feitas a indivíduos específicos. Se esses indivíduos morressem, os contratos tornavam-se nulos e sem efeito.
As dinastias governantes não eram instituições do estado permanentes e impessoais, mas redes mantidas por laços familiares e relações individuais. Os territórios sobre os quais reivindicavam alguma parte da propriedade mudavam frequentemente. Não havia nenhum sentido de nação territorial. Os reis que governavam esses territórios muitas vezes tendiam a cuidar dos negócios pessoalmente. Esses reis sentavam-se pessoalmente nos tribunais para decidir os casos. Lideravam pessoalmente campanhas militares de forma a proteger as suas propriedades de outros.
Quando as responsabilidades e terras de um rei se tornavam numerosas demais para serem tratadas pessoalmente, isso podia ser resolvido por meio de acordos, juramentos e contratos com outros príncipes numa complexa rede de vassalagem conhecida como feudalismo. Isso mantinha as coisas locais e dependentes de cooperação e negociação descentralizadas. Mas, novamente, isso não dava aos monarcas um monopólio indiscutível dentro de suas terras. Muitos reis poderosos eram vassalos de outros reis e príncipes. Naturalmente, essa prática limitava o poder dos reis e impedia-os de exercer o que hoje chamamos de prerrogativas do estado.
A Ascensão do Estado
No final da Idade Média, porém, alguns desses príncipes tornaram-se ricos o suficiente para dispensar a necessidade de acordos inconvenientes de troca com outros príncipes. O aumento dos excedentes alimentares e a crescente disponibilidade de moeda significavam que reis e príncipes mais ricos podiam pagar directamente pelos soldados e outros suprimentos militares. Os nobres locais podiam ser comprados. Agentes fiscais pagos — directamente leais ao rei — podiam ser enviados para cobrar impostos. A guerra também se tornou mais cara, o que significava que os príncipes e reis mais ricos se tornaram comparativamente mais eficazes em subjugar concorrentes menos ricos. Os reis começaram a consolidar mais terras e mais poder.
Tudo isso mudou consideravelmente o jogo. À medida que os reis ficavam mais ricos, a sua riqueza sustentava uma população crescente de funcionários, soldados, juízes e oficiais que dependiam directamente do rei para obter rendimentos. Esses burocratas pagos tornaram-se tão numerosos que os reis tiveram que dar cargos até mesmo a muitas pessoas fora dos círculos internos da monarquia. Agora havia uma nova classe de pessoas que dependia do rei para obter rendimento, mas que, no entanto, tinha os seus próprios interesses, as suas próprias famílias e as suas próprias agendas.
Isso representava um perigo para os próprios monarcas. O rei havia concedido a esses agentes do estado nascente alguma parte do poder. E se eles usassem esse poder para promover seus próprios objectivos e predilecções? Essas pessoas poderiam potencialmente prejudicar a capacidade do rei de arrecadar receitas, levantar exércitos ou impor a “lei e a ordem”. De facto, na década de 1640, alguns dos apoiantes do monarca espanhol temiam que a crescente burocracia da Espanha pudesse acabar por «tornar o próprio rei supérfluo».
No entanto, os monarcas continuaram em frente. No século XVII, os monarcas criaram exércitos permanentes imensos e a construiram enormes instalações militares capazes de resistir às novas armas movidas a pólvora. Os dias de liderar pessoalmente exércitos ficaram para trás.
Como observou J.H. Elliott, a importância central dessa nova burocracia talvez seja bem ilustrada pela evolução dos monarcas, de homens que cavalgavam para a batalha a homens como Filipe II da Espanha, que “passava o dia de trabalho na sua mesa, cercado por pilhas de documentos”.
Um estado em crescimento significava uma pilha crescente de papelada para gerir. Mas, eventualmente, o estado acabaria por sobrepor-se aos próprios monarcas. De acordo com Martin Van Creveld, no final do século XV, os governantes e os seus súbditos já estavam a ganhart consciência da ideia de que havia uma máquina dentro do estado que era separada do monarca. Surgiu um novo vocabulário: expressões como «a coroa», «o estado» e «a comunidade» passaram a representar algo que o rei não governava, mas sim servia. Os reis já não podiam simplesmente cuidar das suas propriedades privadas. Isso foi, como diz Spruyt, «a mudança qualitativa do governo pessoal para a autoridade pública». Por outras palavras, poderíamos descrever isso como uma mudança de proprietário privado para agente do estado.
Os Monarcas São Absorvidos pelo Estado
No final do século XVIII, observa Van Creveld, o estado «já não era idêntico à pessoa do governante… Tendo crescido a partir dos instrumentos que ajudaram os monarcas a tornarem-se governantes absolutos, o estado adquiriu vida própria».
Não por coincidência, isso talvez tenha se tornado mais evidente nos reinos com os estados mais fortes daquele período: Inglaterra e França. Na Inglaterra, por exemplo, os revolucionários da Guerra Civil Inglesa não só cortaram a cabeça do rei, como também aboliram completamente a monarquia. Isso não foi feito como uma acção popular, mas com o consentimento dos representantes do estado inglês no Parlamento. Em outras palavras, os parlamentares deixaram bem claro que era “o povo” — que o Parlamento afirmava representar — quem definia “a comunidade”. O papel do rei era simplesmente oferecer certos serviços. Eventualmente, o Parlamento restaurou a monarquia, mas a lição foi aprendida. Em 1688, o Parlamento interveio novamente para substituir um rei por outro mais do agrado do Parlamento.
Em França, os revolucionários expandiram o mesmo tema. Décadas antes, o rei Luís XIV passou muitos anos a trabalhar para criar o maior, mais rico e mais poderoso estado da Europa. No entanto, os instrumentos desse estado foram usados contra a própria dinastia de Luís. Luís disse mais do que sabia quando, em seu leito de morte, reflectiu: “Eu parto, mas o estado permanecerá para sempre”. O tetraneto de Luís, Luís XVI, poderia ter dito a mesma coisa na forca.
Após essas crises, ficou bastante claro que nem a Inglaterra nem o estado inglês eram propriedade do rei ou de sua dinastia. O mesmo ficou claro para os remanescentes da monarquia em França. Na verdade, as monarquias por toda a Europa encontravam-se em situações semelhantes. Isso ocorreu décadas antes de esses monarcas serem substituídos por regimes republicanos democráticos. Naquela época, o governo monárquico já tinha sido substituído, em tudo menos no nome, por estados de vários tipos. Hoje, muitos estados da Europa toleram monarquias institucionais. Os homens e mulheres dessas instituições são agora frequentemente animadores em tempos de guerra. Ou podem ser usados para apoiar abertamente o estado contra os seus inimigos, como quando o rei Felipe da Espanha interveio para condenar os separatistas catalães. Os nacionalistas frequentemente elogiam os monarcas como símbolos da “unidade nacional”. Nisso, não encontramos nenhum traço daquilo que os monarcas imaginavam serem nos dias do governo dinástico. Isso desapareceu há séculos.