É com grande prazer que vejo este pequeno ensaio publicado. Escrito e apresentado há mais de cinco anos, foi, ao tempo, bem acolhido pelos académicos de formação em economia austríaca. Porém, incompreendido e rejeitado por aqueles sem essa formação. Para chegar a um público mais vasto, um pequeno ensaio não seria suficiente. Decidi, portanto, não publicar Deflation and Liberty e comecei a trabalhar em The Ethics of Money Production, uma apresentação em livro do argumento, que acaba de ser disponibilizada pelo Mises Institute.
Na crise actual, os cidadãos dos Estados Unidos têm de fazer uma escolha importante. Podem apoiar uma política concebida para perpetuar o nosso actual sistema de moeda fiduciária e o estado lastimável da banca e dos mercados financeiros que ele logicamente implica. Ou podem apoiar uma política concebida para reintroduzir um mercado livre na moeda e nas finanças. Esta última política exige afastar o intervencionismo governamental. Não deve este produzir dinheiro, nem deve nomear uma agência especial para o fazer. Não deve forçar os cidadãos a usar moeda fiduciária, impondo leis de curso legal. Não deve regular o sector bancário nem os mercados financeiros. Não deve tentar fixar a taxa de juro, os preços dos títulos financeiros ou os preços das mercadorias.
Naturalmente estas medidas são radicais, segundo os padrões actuais, e não é provável que encontrem apoio suficiente. Mas a falta de apoio deve-se à ignorância e ao medo.
Praticamente todos os especialistas em economia e finanças – os banqueiros centrais e a maioria dos professores universitários – nos dizem que a crise nos atinge apesar dos melhores esforços da Reserva Federal; que o dinheiro, a banca e os mercados financeiros não foram feitos para serem livres, porque acabam por ficar desorganizados apesar da presença maciça do governo como agente financeiro, como regulador e como produtor de dinheiro; que o nosso sistema monetário nos proporciona grandes benefícios, sendo uma irresponsabilidade não o preservar. Por conseguinte, esses mesmos especialistas exortam-nos a dar ao governo uma presença ainda maior nos mercados financeiros, a aumentar os seus poderes reguladores e a encorajar ainda mais a produção de dinheiro para ser utilizado em resgates.
Contudo, todas estas afirmações estão erradas, como os economistas têm demonstrado repetidamente desde os tempos de Adam Smith e David Ricardo. Um sistema de papel-moeda não é benéfico de um ponto de vista global. Não cria recursos reais de que depende o nosso bem-estar, limita-se a redistribuir os existentes: uns ganham, outros perdem. É um sistema que torna os bancos e os mercados financeiros vulneráveis, porque os induz a economizar nas válvulas de segurança essenciais ao mercado: dinheiro e capital próprio. Porquê manter saldos de tesouraria substanciais se o banco central está disposto a emprestar qualquer montante que possa ser necessário, a qualquer momento? Porquê usar o seu próprio dinheiro se pode financiar os seus investimentos com crédito barato impresso?
Levantar estas questões é responder-lhes. A crise não nos atingiu apesar da presença das nossas autoridades monetárias e financeiras. Atingiu-nos por causa delas.
Depois, há o medo. Se seguirmos uma política de não intervenção, dizem-nos a maioria dos especialistas, o sector bancário, os mercados financeiros e grande parte do resto da economia serão dizimados numa espiral deflacionária sem fundo.
O presente ensaio argumenta que tal é uma meia-verdade. É verdade que, sem mais intervenção governamental, haveria uma espiral deflacionária. Não é verdade que essa espiral não teria fundo e acabaria com a economia. Não seria uma ameaça mortal para a vida e o bem-estar da população em geral. Destrói essencialmente as empresas e indústrias que vivem uma existência parasitária à custa do resto da economia, existência possível pelo nosso actual sistema de moeda fiduciária. Mesmo a curto prazo, portanto, a deflação reduz os nossos rendimentos reais apenas dentro de limites bastante estreitos. E, a médio e a longo prazo, abre caminho a taxas de crescimento muito substanciais.
Não devemos ter medo da deflação. Devemos amá-la tanto como às nossas liberdades.
Angers, França
Outubro 2008
I
O século XX foi o século do governo omnipotente. Nalguns países, os governos totalitários estabeleceram-se de um só golpe através de revoluções – aparentemente uma má estratégia, pois já nenhum deles sobrevive. Mas, noutros países, o totalitarismo não surgiu de pleno direito como Vénus das ondas. Nos Estados Unidos e em praticamente todos os países da Europa Ocidental, o governo tem crescido lenta, mas firmemente e, se não for controlado, esse crescimento torná-lo-á totalitário um dia, mesmo que esse dia pareça bem distante do nosso presente.
O facto é que, em todos os países ocidentais, o crescimento do governo tem sido mais rápido nos últimos 100 anos do que o crescimento da economia. As suas manifestações mais conspícuas são o estado social e o estado de guerra1. Ora, o crescimento do estado social e de guerra não teria sido possível sem inflação, que, para efeitos do nosso estudo, podemos definir como o crescimento da oferta de moeda base e de títulos financeiros resgatáveis em moeda base a pedido2. [A produção de quantidades sempre novas de papel-dólar e a criação expansionista de facilidades de crédito na Reserva Federal proporcionaram a liquidez para um aumento constante dos depósitos à ordem criados pelos bancos e de outros equivalentes de dinheiro, o que, por sua vez, permitiu uma expansão sem paralelo da dívida pública. A dívida pública dos EUA é actualmente (Dezembro de 2002) de cerca de 6,2 triliões de dólares, contra menos de 2 triliões no início da década de 1980, e menos de 1 trilião antes da era do dólar-papel, quando o Presidente Nixon fechou a janela de ouro no início da década de 1970.
A relação entre o papel-dólar e a expansão exponencial da dívida pública é bem conhecida. Do ponto de vista dos credores, o governo federal controla a Reserva Federal – o produtor monopolista de papel-dólar – e, portanto, nunca pode ir à falência. Se necessário, o governo federal pode mandar imprimir qualquer quantidade de dólares para pagar a sua dívida. A compra de obrigações do Estado é assim apoiada por uma segurança que nenhum outro devedor pode oferecer. E o governo federal pode expandir constantemente as suas actividades e financiá-las através de dívida adicional, mesmo que não haja qualquer perspectiva de que essas dívidas venham a ser pagas com as receitas fiscais. O resultado é um crescimento aparentemente descontrolado dos governos que controlam a produção de papel-moeda.
Entre as muitas causas que coincidiram para que se chegasse a este estado de coisas está uma certa falta de resistência por parte dos economistas profissionais. No presente ensaio, abordarei uma ideia errada que impediu muitos economistas e outros intelectuais de combaterem a inflação com a determinação necessária. A maior parte dos economistas deixou de se opor à inflação precisamente quando ela era mais necessária, ou seja, nos poucos momentos da história em que o sistema inflacionista estava prestes a entrar em colapso. Em vez de analisarem imparcialmente o acontecimento, começaram a temer mais a deflação do que a inflação e acabaram por apoiar a reflação – que, de facto, não passa de mais inflação3.
Os Estados Unidos da América passaram por duas conjunturas deste tipo: os anos da Grande Depressão e a pequena depressão que estamos a enfrentar neste momento, na sequência do primeiro boom global do mercado bolsista. Hoje, mais uma vez, o colapso deflacionário do nosso sistema monetário é uma possibilidade muito real. Em Novembro de 2002, os funcionários da Reserva Federal (Greenspan, Bernanke) e do Banco de Inglaterra (Bean) proclamaram que não haveria limite para a quantidade de dinheiro que iriam imprimir para evitar a deflação. Estes planos reflectem o que hoje é amplamente considerado como ortodoxia em matéria monetária. Mesmo muitos críticos das políticas inflacionistas do passado admitem que, nas circunstâncias actuais, alguma inflação pode ser benéfica, se for usada para combater a deflação. Alguns deles salientam que ainda não há deflação e que, portanto, não há necessidade de intensificar o uso da impressora. Mas, por outro lado, concordam, em princípio, que se se instalasse uma grande deflação, haveria uma necessidade política de mais despesas e que, para financiar o aumento das despesas, os governos deveriam contrair mais dívidas e os bancos centrais deveriam criar mais dinheiro4.
Mesmo entre economistas da escola austríaca estas opiniões têm alguma proeminência. Ludwig von Mises, Hans Sennholz, Murray Rothbard e outros austríacos são conhecidos pela sua oposição intransigente à inflação. Mas apenas Sennholz não hesitou em elogiar a deflação e a depressão quando se tratou de abolir a moeda fiduciária e colocar um sistema monetário sólido no seu lugar. Em contraste, Mises e Rothbard defendiam a deflação apenas na medida em que acelerava o reajuste da economia numa recessão que se seguia a um período de boom inflacionário. Porém ambos, explicitamente (Mises) e implicitamente (Rothbard), defenderam a necessidade e evitar a deflação em todos os outros contextos. Em particular, quando se tratava de reforma monetária, tanto Mises como Rothbard defendiam esquemas para redefinir o preço do ouro numa papel-moeda para restaurar a convertibilidade5.
A principal fraqueza deste esquema é o facto de implicar que o processo de reforma seja dirigido pelas próprias instituições e pessoas que é suposto a reforma tornar mais ou menos supérfluas. É igualmente questionável que as nossas autoridades monetárias possam legitimamente utilizar as suas reservas de ouro para salvar o seu papel-moeda. Na verdade, elas passaram a controlar essas reservas através de um golpe confiscatório, e, portanto, não é de todo claro como os planos de reforma monetária à la Mises e Rothbard podem ser enquadrados com os princípios legais ou morais libertários que Rothbard defende em outras obras.
Há, porém, uma outra questão que deve ser abordada: o que há de errado em deflacionar a massa monetária, do ponto de vista económico? Pergunta que estará aqui no centro das atenções, que pode felizmente apoiar-se na análise de Rothbard, que demonstrou, nomeadamente, o papel benéfico que a deflação pode ter para acelerar o reajustamento da estrutura produtiva após uma crise financeira. Mas nenhum economista parece ter-se interessado em aprofundar a análise sóbria do impacto da deflação no processo de mercado e das suas consequências sociais e políticas. A verdade é que a deflação tornou-se o bode expiatório da profissão de economista. Não é analisada, mas ridicularizada. Cem anos de propaganda pró-inflação alcançaram uma quase-unanimidade sobre a questão6. Para onde quer que nos voltemos, a deflação é repetidamente apresentada em termos negativos, e cada autor apressa-se a apresentar a luta contra a deflação como o mínimo de respeitabilidade intelectual no campo económico. Economistas que, de outro modo, não conseguiriam chegar a acordo sobre qualquer assunto, encontram alguma satisfação por descobrirem um entendimento comum na condenação sincera da deflação. Aos seus olhos, o argumento contra a deflação é tão claro que não deixa espaço para qualquer preocupação ou incerteza. As bibliotecas das nossas universidades contêm centenas de livros com discussões detalhadas sobre o desemprego, os ciclos económicos, etc., mas raramente apresentam uma monografia sobre a deflação. Mas raramente apresentam uma monografia sobre a deflação. A sua maldade é indiscutível7.
No entanto, este silêncio assenta em bases instáveis. Um apoio franco e entusiástico à deflação é, pelo menos no nosso tempo, um dos requisitos mais importantes para salvaguardar o futuro da liberdade.
II
Em matéria de políticas monetárias e bancárias, toda a prática acaba por depender de uma questão central: é possível melhorar ou deteriorar o estado de uma economia aumentando ou diminuindo a quantidade de moeda?8
Aristóteles dizia que o dinheiro não fazia parte da riqueza de uma nação porque era simplesmente um meio de troca no comércio inter-regional, esta opinião, pela autoridade intelectual de Aristóteles, marcou profundamente o pensamento medieval sobre o dinheiro. Por conseguinte, os académicos escolásticos não perderam tempo a inquirir sobre os benefícios que as alterações da massa monetária poderiam ter para a economia. A questão relevante, aos seus olhos, era a legitimidade das desvalorizações, pois consideravam que se tratava de uma importante questão de justiça distributiva9. Após o nascimento da ciência económica, no século XVIII, também os economistas clássicos não negaram este ponto essencial. David Hume, Adam Smith e Étienne de Condillac observaram que o dinheiro não é nem um bem de consumo nem um bem de produção e que, por conseguinte, a sua quantidade é irrelevante para a riqueza de uma nação10. Esta ideia crucial inspiraria também as batalhas intelectuais das quatro ou cinco gerações seguintes de economistas – homens como Jean-Baptiste Say, David Ricardo, John Stuart Mill, Frédéric Bastiat e Carl Menger – foram sempre apologistas da solidez da moeda.
Consequentemente, no mundo ocidental houve mais dinheiro sólido no século XIX do que no século XX. Grandes camadas da população pagavam e eram pagas em moedas feitas de metais preciosos, especialmente de ouro e prata. Era o dinheiro que tornava estes cidadãos, por mais humilde que fosse o seu estatuto social, soberanos em matéria monetária. A arte da cunhagem floresceu e produziu moedas que podiam ser autenticadas por todos os participantes no mercado.
Alguns libertários contemporâneos têm uma imagem romântica dos tempos do padrão-ouro clássico. E é verdade que essa foi a idade de ouro das instituições monetárias no Ocidente, especialmente quando a comparamos com o nosso tempo, em que o equivalente monetário da alquimia ascendeu ao estatuto de ortodoxia. Mas também é verdade que as instituições monetárias ocidentais na era do padrão-ouro clássico estavam longe de ser perfeitas. Os governos ainda gozavam de poder de monopólio no domínio da cunhagem de moeda, um resquício dos privilégios régios medievais que impediam a descoberta de melhores moedas e sistemas de cunhagem através da concorrência empresarial. Os governos intervinham frequentemente na produção de moeda através de esquemas de controlo de preços, que camuflavam com o pomposo nome de bimetalismo. Promoveram activamente o sistema bancário de reservas fraccionadas, que prometia fundos sempre novos para o tesouro público. E promoveram o surgimento do banco central através de cartas especiais de monopólio para alguns bancos privilegiados. O resultado geral dessas leis foi facilitar a introdução de moedas de papel inflacionárias e tirar o dinheiro vivo de circulação. No início do século XIX, a maior parte da Europa, na medida em que conhecia o câmbio monetário, utilizava papel-moeda11 e, durante o resto desse século, as coisas não mudaram muito. Só a Inglaterra, de entre as principais nações, se encontrava no padrão-ouro durante a maior parte do século XIX e as notas do Banco de Inglaterra desempenhavam um papel muito mais importante nas trocas monetárias do que o dinheiro em espécie – de facto, o rácio de reserva do Banco parece ter sido de cerca de 3% durante a maior parte do tempo e, ocasionalmente, era ainda mais baixo12.
Em resumo, as constituições monetárias do século XIX não eram perfeitas, bem como o pensamento sobre política monetária dos economistas clássicos é-nos insatisfatório 13. David Hume acreditava que a inflação podia estimular a produção a curto prazo. Adam Smith sustentava que a inflação, sob a forma de expansão do crédito, era benéfica se fosse apoiada por uma quantidade correspondente de bens reais, e Jean-Baptiste Say apoiava de forma semelhante a expansão da quantidade de dinheiro que satisfazia as necessidades do comércio. Smith e Ricardo sugeriram o aumento da riqueza da nação através da substituição de bilhetes de papel, inerentemente sem valor, por dinheiro metálico. John Stuart Mill defendia a noção de que a moeda sólida significa moeda de valor estável. Estes erros no pensamento monetário de Hume, Smith, Ricardo e Mill eram, evidentemente, quase insignificantes em comparação com a sua ideia central, repetindo, de que a riqueza de uma nação não depende de alterações na quantidade de moeda. Mas, eventualmente, uma nova geração de estudantes, infectada com o vírus do estatismo – a adoração do Estado -, acabou por ignorar essa ideia central e, assim, os erros dos economistas clássicos, e não a sua ciência, triunfaram no século XX.
Economistas como Irving Fisher, Knut Wicksell, Karl Helfferich, Friedrich Bendixen, Gustav Cassel e, sobretudo, John Maynard Keynes lançaram-se numa campanha implacável contra o padrão-ouro. Estes defensores da inflação admitiam a ideia dos economistas clássicos de que a riqueza de uma nação não dependia da sua massa monetária, mas argumentavam que isso só era verdade a longo prazo. A curto prazo, a imprensa podia fazer maravilhas. Podia reduzir o desemprego e estimular a produção e o crescimento económico.
Quem é que poderia rejeitar tal abundância? E porquê? A maior parte dos economistas aponta os custos da inflação em termos de perda de poder de compra – estimativas apontam para uma redução de 98% do poder de compra do dólar americano desde que a Reserva Federal assumiu o controlo da oferta de moeda. O que é menos conhecido são os efeitos concomitantes da grande inflação do dólar, que dura há um século. O papel-moeda produziu várias grandes crises, cada uma das quais se revelou mais grave do que a anterior. Além disso, o papel-moeda transformou completamente a estrutura financeira das economias ocidentais. No início do século XX, a maior parte das empresas e corporações industriais eram financiadas pelas suas receitas, e os bancos e outros intermediários financeiros desempenhavam apenas um papel subordinado aos interesses empresariais. Actualmente, a situação inverteu-se, e a razão mais fundamental para esta inversão é o papel-moeda. O papel-moeda provocou um aumento sem precedentes do endividamento a todos os níveis: governamental, empresarial e individual. Financiou o crescimento do Estado em todas as suas dimensões, federal, estatal e local. Tornou-se assim a base técnica da ameaça totalitária dos nossos dias.
O grande economista francês Frédéric Bastiat fez a observação bastante geral de que as bênçãos visíveis que resultam da intervenção do governo na economia e mercado são, de facto, apenas um conjunto das consequências que decorrem dessa intervenção. Mas há um outro conjunto de consequências habitualmente esquecidas da retórica do governo, porque demonstram a futilidade do intervencionismo económico. Quando o governo tributa os seus cidadãos para conceder subsídios a um produtor de aço, os benefícios para a empresa siderúrgica, os seus empregados e accionistas são evidentes. Mas outros interesses sofreram com a intervenção. Em particular, os contribuintes têm menos dinheiro para patrocinar outras empresas. E estas outras empresas e os seus clientes também são prejudicados por esta política, porque a empresa siderúrgica pode agora pagar salários mais elevados e rendas mais altas, licitando assim os factores de produção que também são necessários noutros ramos da indústria.
O mesmo se passa com a inflação. Não há absolutamente nenhuma razão para que um aumento da quantidade de dinheiro gere mais e não menos crescimento. É verdade que as empresas que recebem dinheiro fresco da impressora são beneficiadas. Porém, outras empresas são prejudicadas pelo mesmo facto, porque não podem pagar o aumento nos preços dos salários e das rendas que a empresa privilegiada pode agora pagar. E todos aqueles que aforraram dinheiro, quer sejam empresários ou trabalhadores, são igualmente prejudicados, porque o seu dinheiro tem agora um poder de compra inferior ao que teria de outra forma.
Do mesmo modo, não existe qualquer razão para que a inflação reduza o desemprego em vez de o aumentar. As pessoas ficam desempregadas, ou permanecem desempregadas, quando não querem trabalhar, ou, quando são impedidas involuntariamente de o fazer pelo salário que o empregador está disposto a pagar. A inflação não altera este facto. O que a inflação faz é reduzir o poder de compra de cada unidade monetária. Se os trabalhadores anteciparem estes efeitos, pedirão salários nominais mais elevados como compensação pela perda de poder de compra. Neste caso, a inflação não tem qualquer efeito sobre o desemprego. Pelo contrário, pode até ter efeitos negativos, nomeadamente se os trabalhadores sobrestimarem a redução dos seus salários reais induzida pela inflação e pedirem, assim, aumentos salariais que causam ainda mais desemprego. Só pelo desconhecimento que a quantidade de dinheiro foi aumentada para os atrair para o mercado de trabalho, com os salários actuais, é que aceitarão trabalhar em vez de ficarem desempregados. Todos os planos para reduzir o desemprego através da inflação resumem-se, portanto, a enganar os trabalhadores – uma estratégia infantil, para dizer o mínimo14.
Pela mesma razão, a inflação não é remédio para a rigidez salarial – isto é, para o problema da coerção sindical. Os salários são rígidos apenas na medida em que os trabalhadores optam por não trabalhar. Mas a questão crucial é: durante quanto tempo podem dar-se ao luxo de não trabalhar? A resposta a esta pergunta está dentro dos limites temporais muito estreitos das suas poupanças. Assim que as poupanças pessoais de um trabalhador se esgotam, ele começa a oferecer os seus serviços, mesmo com salários mais baixos. Daqui resulta que, num mercado de trabalho livre, os salários são suficientemente flexíveis em qualquer altura. A rigidez só surge em resultado da intervenção do Estado, em particular sob a forma de (a) subsídios de desemprego financiados pelos impostos e de (b) legislação que dá aos sindicatos o monopólio da oferta de trabalho.
Uma vez que não estamos aqui preocupados com questões de economia do trabalho, podemos abordar diretamente a relação entre emprego e política monetária. Será que a inflação resolve o problema da rigidez salarial? A resposta é negativa, e pelas mesmas razões que apontámos acima. A inflação só pode ultrapassar o problema da rigidez salarial na medida em que os produtores de papel-moeda possam surpreender os sindicatos. Na medida em que estes últimos antecipem os movimentos dos senhores da imprensa, a inflação ou não reduzirá de todo o desemprego, ou aumentá-lo-á ainda mais15.
Nota: pode ler as outras partes deste ensaio aqui:
- Deflação e Liberdade (Introdução, Parte I e II)
- Deflação e Liberdade (Introdução, Parte III, IV e V)
- Deflação e Liberdade (Introdução, Parte VI, VII e VIII)
Notas das Partes I e II
- No caso americano, o estado de guerra tem sido um motor mais poderoso de crescimento do governo do que o estado social; Robert Higgs, Crisis and Leviathan: Critical Episodes in the Growth of American Government (New York: Oxford University Press, 1987). ↩︎
- Murray N. Rothbard, Man, Economy, and State, 3ª ed. (Auburn, Alabama: Ludwig von Mises Institute), p. 851, define inflação como um aumento da quantidade de dinheiro superior ao crescimento real de bens e serviços. Embora a definição de Rothbard se ajuste ao caso de um sistema bancário de reservas fraccionárias baseado num padrão de moeda-mercadoria, a nossa definição destina-se a adequar-se ao caso específico de um padrão de moeda fiduciária com um sistema bancário de reservas fraccionárias . Ambas as definições divergem da conotação mais generalizada do termo, segundo a qual a inflação é um aumento do nível de preços monetários. Esta última definição não é muito útil para os nossos propósitos, porque pretendemos analisar o impacto causal das alterações na oferta de base monetária (que está sempre sujeita a controlo político). ↩︎
- Para efeitos do nosso estudo, definiremos a deflação como uma redução da quantidade de moeda base, ou de títulos financeiros que podem ser resgatados em moeda base a pedido. Uma vez mais, tal afasta-se da conotação habitual do termo, que define a deflação como uma diminuição do nível de preços. Mas, como o leitor verá, a nossa análise abrangerá ambos os fenómenos – a deflação na nossa definição e uma diminuição do nível de preços. O objectivo da nossa definição é meramente tornar a nossa análise mais adequada para aplicação prática. Uma autoridade monetária pode sempre impedir a deflação, na nossa definição, embora possa por vezes ser incapaz de impedir uma diminuição do nível de preços, mesmo bombeando grandes quantidades de moeda base para a economia. ↩︎
- Veja-se, por exemplo, as colunas e os editoriais de jornalistas reconhecidos pela defesa de moeda-forte, como Steve Forbes nos Estados Unidos e Stefan Baron na Alemanha. A mesma mensagem emana das publicações de economistas conscientes, como Jude Wanniski e Norbert Walter. Um ensaio sintomático é Norbert Walter, “Is the Global Recession Over?” Internationale Politik (Edição Transatlântica, Outono de 2002): 85–89. ↩︎
- Ver Hans Sennholz, A Era da Inflação (1979), cap. 6; Rothbard, Homem, Economia e Estado, pp. idem, A Grande Depressão da América, 5ª ed. (Auburn, Alabama: Ludwig von Mises Institute, 1999), pp. Ludwig von Mises, “Die geldtheoretische Seite des Stabilisierungsproblems”, Schriften des Vereins für Sozialpolitik 164, no. 2 (1923); idem, Money and Credit Theory (Indianapolis: Liberty Fund, 1980), pp. idem, Human Action, Scholar’s Edition (Auburn, Alabama: Ludwig von Mises Institute, 1998), pp. Murray N. Rothbard, The Mystery of Banking (Nova Iorque: Richardson and Snyder, 1983), pp. idem, The Case Against the Fed (Auburn, Alabama: Ludwig von Mises Institute, 1995), pp. Mises e Rothbard adoptaram o ponto de vista já defendido por Jean-Baptiste Say, que descreveu a deflação como uma prática prejudicial de reposição da sanidade monetária após um período de inflação prolongada. Ver Jean-Baptiste Say, Traité d’économie politique, 6ª ed. (Paris, 1841); traduzido por A Treatise on Political Economy (Filadélfia: Claxton, Rensen & Haffelfinger, 1880). Para uma análise crítica das opiniões dos economistas austríacos sobre a deflação, ver Philipp Bagus, “Deflation: When Austrians Become Interventionists” (documento de trabalho, Auburn, Alabama: Ludwig von Mises Institute, Abril de 2003). ↩︎
- Os principais motores da propaganda têm sido as universidades estatais do Ocidente, bem como uma fé exagerada na autoridade dos especialistas monetários ao serviço do FMI, do Banco Mundial, da Reserva Federal e de outras agências governamentais encarregadas da gestão técnica. . Será mesmo necessário assinalar o non sequitur implícito na concessão do estatuto de perito em matéria monetária aos funcionários destas organizações? Um paralelo evidente é o caso dos economistas que trabalham na folha de pagamentos dos sindicatos que, por o serem, são considerados especialistas em economia do trabalho. É evidente que se adjectivarmos as associações sindicais como indutores da destruição do mercado de trabalho – o que a maioria delas faz, analisando por qualquer padrão objectivo –, o especial saber dos seus empregados ficaria sob uma luz mais sóbria. O mesmo se aplica aos escritores de assuntos monetários que estão na folha de pagamento das diversas associações para a destruição do nosso dinheiro. É claro que isto não significa negar que possa haver bons economistas a trabalhar para o FMI ou para a Reserva Federal. O que queremos dizer é apenas que a sua qualificação para falar sobre o assunto não é de todo reforçada pela sua filiação profissional. Muito pelo contrário, dada a estrutura de incentivos, teríamos de esperar que os bons economistas monetários só acidentalmente encontrassem o caminho para estas instituições. ↩︎
- O reconhecido teórico moderno da deflação é Murray N. Rothbard. Como afirmámos acima, as opiniões de Rothbard sobre a deflação parecem ser deficientes apenas quando se trata da questão prática da reforma monetária. Uma visão geral dos princípios essenciais da teoria austríaca da deflação encontra-se em Joseph T. Salerno, “An Austrian Taxonomy of Deflation” (documento de trabalho, Auburn, Alabama: Ludwig von Mises Institute, Fevereiro de 2002). Entre os poucos trabalhos não austríacos que analisam a deflação sem preconceitos emocionais indevidos, ver John Wheatley, An Essay on the Theory of Money and Principles of Commerce (Londres: Bulmer & Co., 1807), em particular a discussão de Wheatley sobre o plano de Lord Grenville para a reforma monetária nas páginas 346–57; Lancelot Hare, Moeda e Emprego, Deflation of the Currency – A Reply to Anti-Deflationists (Londres: P.S. King & Son, 1921); Edwin Cannan, The Paper Pound de 1797–1821, 2ª ed. (Londres: King & Son, 1925); Yves Guyot, Les problèmes de la deflation (Paris: Félix Alcan, 1923); Guyot, Yves e Arthur Raffalovich, Inflation et déflation (Paris: Félix Alcan, 1923). ↩︎
- Quando falamos de economia, referimo-nos ao grupo de pessoas que utilizam o mesmo dinheiro. A nossa análise diz, portanto, respeito tanto às economias abertas como às fechadas nas conotações habituais dos termos, que relacionam o grau de fecho e abertura a fronteiras políticas que separam diferentes grupos de pessoas. ↩︎
- Ver Aristóteles, Política, livro 2, cap. 9; Ética a Nicómaco, livro V, em particular cap. 11; Nicolas Oresme, Traité sur l’origine, la nature, le droit et lesmutations des monnaies, Traité des monnaies e outros escritos monetários do século XIV, Claude Dupuy, ed. (Lyon: La Manufatura, 1989); Juan de Mariana, Tratado sobre a alteração do dinheiro, dos mercados e da moral 5, no. 2 ([1609] 2002). ↩︎
- Ver David Hume, “On Money”, Essays (Indianapolis: Liberty Fund, [1752] 1985), p. 288; Adam Smith, Riqueza das Nações (Nova Iorque: Random House, [1776] 1994), livro 2, cap. 2,. Págs 316. Condillac, Le commerce et le gouvernement. 2ª edição. (Paris: Letellier & Maradan, 1795), em parte. pág. 86; traduzido como Comércio e Governo (Cheltenham, Reino Unido: Elgar, 1997). ↩︎
- Na altura, John Wheatley observou:
“Tanto em Inglaterra, como na Escócia, Irlanda, Dinamarca e na Áustria, pouco mais se vê para além de papel. Em Espanha, Portugal, Prússia, Suécia e Rússia Europeia, o papel tem uma superioridade decisiva. E apenas em França, Itália, e Turquia é aparente a prevalência de espécie.” ↩︎ - Jacob Viner, “International Aspects of the Gold Standard,” Gold and Monetary Stabilization, Quincy Wright, ed. (Chicago, Chicago University Press, 1932), pp. 5, 12. Viner sublinha que o padrão-ouro pré-Primeira Guerra Mundial não era fundamentalmente diferente do padrão-ouro-exchange entre guerras. Era um padrão gerido (p. 17). Isto atenua a tese de Jacques Rueff de que o padrão cambial-ouro introduziu algo como uma deterioração quântica no sistema monetário internacional. Ver Rueff, The Monetary Sin of the West (Nova Iorque: Macmillan, 1972). ↩︎
- Para um ensaio critico recente a algumas das principais falácias do pensamento monetário clássico, ver Nikolay Gertchev, “The Case For Gold — Review Essay”, Quarterly Journal of Austrian Economics 6, no. 4 (2003). ↩︎
- Ver em particular Mises, Die Ursachen der Wirtschaftskrise (Tübingen: Mohr, 1931); traduzido como “As causas da crise económica”, in On the Manipulation of Money and Credit (Dobbs Ferry, N.Y.: Free Market Books, 1978). Ver também Mises, “Wages, Unemployment, and Inflation”, Christian Economics 4 (Março de 1958); reimpresso em Mises, Planning For Freedom, 4ª ed. (South Holland, Illinois: Libertarian Press, 1974), pp. A presença de longa data do desemprego em massa na Alemanha, França e outros países europeus parece ser uma refutação esmagadora da hipótese keynesiana. Na verdade, os sindicatos destes países parecem claramente sobrestimar a taxa de inflação. ↩︎
- Sobre o tema completo, ver em particular William Harold Hutt, The Theory of Collective Bargaining (San Francisco: Cato Institute, [1954] 1980); idem, The Strike-Threat System (New Rochelle, NY: Arlington House, 1973); idem, The Keynesian Episode (Indianapolis: Liberty Press, 1979). ↩︎
Este ensaio foi publicado originalmente no Mises Institute.