Para justificar a actual matança indiscriminada de mulheres e crianças em Gaza por parte do Estado de Israel, os apoiantes do regime israelita apresentam geralmente uma explicação linear: “Israel tem o direito de se defender”. Este mantra simplista é utilizado como se fosse a última palavra. Pretende transmitir esta ideia: “algumas pessoas de Gaza mataram alguns cidadãos israelitas em Outubro de 2023. Portanto, o estado israelita pode, moral e legalmente, matar indiscriminadamente qualquer pessoa em Gaza”.
Mulheres e crianças estão a morrer à fome devido à campanha de bombardeamento de Israel? Isso não interessa porque “Israel tem o direito de se defender”. Muitas das pessoas visadas não tinham nada a ver com o ataque de Outubro de 2023? Não importa, porque “Israel tem o direito de se defender”.
Na guerra moderna, onde o armamento moderno significa que cidades inteiras são arrasadas e populações inteiras podem ser varridas do mapa, este tipo de pensamento é desprezível. No entanto, Telavive não está sozinha neste tipo de pensamento. Aqueles que financiam os bombardeamentos israelitas – o Estado americano – têm um longo historial de se comportarem desta forma. No Japão, na Coreia, no Vietname e no Iraque, os americanos atacaram com frequência não-combatentes, baseando-se em preguiçosas alegações que pouco mais são do que dizer que as crianças japonesas mereciam ser bombardeadas porque nasceram japonesas. Essas crianças tiveram alguma coisa a ver com o ataque a Pearl Harbor? Não importa, porque “a América tem o direito de se defender”.
Como o historiador Ralph Raico salienta na sua conferência “The World at War”, os americanos ainda não se tinham tornado tão moralmente depravados antes da Segunda Guerra Mundial. Referindo-se à satisfação americana com o bombardeamento de Tóquio, que Robert McNamara diz poder ter morto 100.000 civis japoneses numa noite, Raico diz
Não consigo imaginar ninguém que na América em 1914 tivesse saudado com alegria a destruição de uma cidade japonesa e a morte de cem mil pessoas. Perguntem a qualquer pessoa na América. Perguntem ao próprio Theodore Roosevelt! Esse velho maricas provavelmente desmaiaria. Perguntem a qualquer pessoa: “Desejaria a aniquilação total de uma cidade japonesa?” “Do que está a falar? Está louco? O que quer dizer com aniquilação de uma cidade? O que é que nós somos, Tamerlane? O que é que nós somos, Genghis Khan?”
No século XXI, porém, não importa quantas cidades obliteramos, porque aparentemente ultrapassámos a ideia de moralidade na guerra. Não há limites porque “Israel/América tem o direito de se defender”.
No passado, porém, os europeus mais civilizados tentaram, de várias maneiras, restringir os estados durante as guerras. Ideológica e filosoficamente, um dos ideais mais influentes para a conduta na guerra tem sido a chamada Teoria da Guerra Justa1. Um aspecto notável da Teoria da Guerra Justa é o facto de limitar os conflitos que podem ser considerados moralmente defensáveis, ao mesmo tempo que limita o comportamento dos estados durante uma “guerra justa”. Muitos dos pormenores subjacentes à Teoria da Guerra Justa variam ao longo do tempo, mas o académico de Relações Internacionais Vincent Ferraro resume-a da seguinte forma:
- Uma guerra justa só pode ser travada como último recurso. Todas as opções não violentas devem ser esgotadas antes que o uso da força possa ser justificado.
- Uma guerra só é justa se for conduzida por uma autoridade legítima. Mesmo as causas justas não podem ser servidas por acções levadas a cabo por indivíduos ou grupos que não constituem uma autoridade sancionada por aquilo que a sociedade e as pessoas de fora da sociedade considerem legítimo.
- Uma guerra justa só pode ser travada para reparar um mal sofrido. Por exemplo, a auto-defesa contra um ataque armado é sempre considerada uma causa justa (embora a justiça da causa não seja suficiente – ver o ponto seguinte). Além disso, uma guerra justa só pode ser travada com intenções “correctas”: o único objectivo admissível de uma guerra justa é a reparação do dano.
- Uma guerra só pode ser justa se for travada com uma hipótese razoável de sucesso. As mortes e os ferimentos sofridos numa causa sem esperança não são moralmente justificáveis.
- O objectivo final de uma guerra justa é o restabelecimento da paz. Mais especificamente, a paz estabelecida após a guerra deve ser preferível à paz que teria prevalecido se a guerra não tivesse sido travada.
- A violência utilizada na guerra deve ser proporcional ao prejuízo sofrido. Os Estados estão proibidos de utilizar a força que não seja necessária para atingir o objectivo limitado de fazer face ao prejuízo sofrido.
- As armas utilizadas na guerra devem distinguir entre combatentes e não combatentes. Os civis nunca são alvos admissíveis da guerra e devem ser empenhados todos os esforços para evitar a morte de civis. A morte de civis só se justifica se estes forem vítimas inevitáveis de um ataque deliberado a um alvo militar.
Também é notável o facto de muitos defensores da Teoria da Guerra Justa afirmarem que todas estas condições têm de ser satisfeitas para que uma guerra seja justa. Ou seja, assim que o “nosso lado” viola uma destas condições, o “nosso lado” abdica da sua legitimidade moral como beligerante.
Será Que Alguém Realmente Se Preocupa pela Teoria da Guerra Justa?
Olhando para esta lista bastante extensa, muitos dirão para si próprios: “Ena, é uma longa lista. De facto, é demasiado longa e, se nos cingíssemos a essa lista, praticamente nenhuma guerra seria considerada justa”.
Essa é, evidentemente, a ideia. A Teoria da Guerra Justa sugere fortemente que quase todas as guerras modernas são conduzidas de uma forma que é moralmente indefensável.
Mas será que alguém se preocupa realmente com a Teoria da Guerra Justa? Numa época em que a moralidade de cada um é mais ditada pelo nacionalismo e pela ideologia política do que pelas convicções religiosas, verificamos que nem mesmo os cristãos parecem levar isto a sério.
Apesar do facto de, historicamente, a Teoria da Guerra Justa ter sido fundamental para o pensamento político cristão, muitos cristãos modernos consideram-na provavelmente boa “em teoria” mas que não vale a pena arriscar se isso significar que o “nosso lado” tem menos probabilidades de ganhar.
Esta semana, na Rádio Rothbard, Eric Sammons, editor-chefe da revista católica “Crisis“, junta-se a mim para discutir o estado do pensamento sobre política externa entre os católicos. Sammons explica como, apesar da Teoria da Guerra Justa continuar a ser explicitamente apoiada pela hierarquia católica, as bases católicas ou não a conhecem, ou não se importam.
Como explica Sammons, os católicos tornaram-se fiéis a ideologias políticas modernas que estão em conflito com os ideais políticos históricos e tradicionais da sua própria Igreja.
Mesmo a velha esquerda católica, que tinha sido tão fiável contra a guerra em meados do século XX, desapareceu em grande parte à medida que a esquerda americana se empenhava em apoiar qualquer nova guerra que Obama, Biden e Clinton impingissem ao povo americano e às vítimas estrangeiras de Washington.
No entanto, como observa Sammons, há razões para ter esperança. Entre os católicos conservadores, há um cepticismo crescente em relação às narrativas pró-guerra do regime e uma decidida falta de entusiasmo em relação aos apelos contínuos do Estado a um apoio cada vez maior à intervenção americana em todo o mundo. Muitos cristãos mais jovens parecem ser menos ingénuos do que os seus pais e avós, que se limitavam a apoiar tudo o que o Estado americano dizia ser a próxima grande cruzada militar.
Ouça o podcast:
Artigo publicado originalmente no Mises Institute.
- Por vezes “Doutrina da Guerra Justa” [N. do T.] ↩︎