A democracia parlamentar tornou-se nas últimas décadas um tabu para o discurso político respeitável. Sobretudo após a dissolução da União Soviética, a forma de governo democrático constituiu o mais absoluto consenso entre direita e esquerda, conservadores e liberais, “capitalistas” e socialistas.
Seguindo Churchill, a opinião pública e publicada considera a democracia «o pior sistema exceptuando todos os outros», como um dado adquirido não aberto ao escrutínio racional. Toda a crítica do sistema democrático – o status quo das sociedades ocidentais – foi sanitariamente desacreditada. A evolução dos governos monárquicos para governos democráticos (onde o poder reside nos parlamentos, sujeitos ao sufrágio universal) é, pois, vista como progresso de forma impensada. Certos intelectuais chegam ao ponto de declarar a expansão da democracia “liberal” ao resto do globo como o «fim da história», o triunfo da forma mais perfeita de organização política[1]. O que o neoconservador Fukuyama e os seus pares designam por “democracia liberal”, porém, pode ser descrito como uma forma de socialismo moderado, mas ainda assim um sistema de expropriação massiva e “justiça social” e não de propriedade privada e liberdade individual.
Dada a entrada restrita por nascimento no aparelho de Estado característica do antigo regime, o sistema eleitoral de entrada livre foi erradamente considerado como o equivalente político da competição económica, e daí a possibilidade de eleger representantes políticos foi elevada à suprema liberdade de escolha. Este argumento agradou especialmente aos liberais dado que, pelo menos em teoria, a competição económica é tida em boa conta. As graves falácias dessa equiparação são, porém, matéria para outro texto.
Por outro lado, os democratas “da esquerda” demonizam a economia de mercado com a mesma miopia com que glorificam o processo eleitoral. O voto, dizem, é a arma do povo; o governo democrático, de resto, define-se como o governo “do povo para o povo”. O objectivo dessa “arma” e desse “governo” é, muito assumidamente, suavizar as desigualdades (de rendimento, de oportunidades e, em última instância, qualquer diferença que subsista entre grupos heterogéneos), o que se traduz na redistribuição sistemática de rendimento entre grupos (o que em geral não significa tão linearmente dos ricos para os pobres) [2].
Mas mesmo entre democratas que aprovam a economia de mercado, existe a crença de que o sistema democrático representa uma forma de auto-governo, que apaga a anterior distinção entre governantes e governados, e que por definição oferece verdadeiro poder de escolha a um indivíduo. Esta crença trata-se, porém, de uma ilusão – uma ilusão reiterada pela propaganda dos currículos escolares desenhados por burocratas ao serviço dos governos democraticamente eleitos, pelos meios de comunicação respeitáveis e pelos idiotas úteis do momento, os “intelectuais da corte”, certificados e promovidos por ela e a ela endividados.
O objectivo deste texto é fazer uma análise comparativa da liberdade de escolha do indivíduo como eleitor de um sistema democrático e da liberdade de escolha do indivíduo como consumidor num sistema capitalista. Não iremos analisar ética ou moralmente o princípio democrático, embora inúmeros problemas existam com a supremacia da maioria sobre a minoria. Limitar-nos-emos a expor o facto de que, do ponto de vista utilitário (o ponto de vista dos próprios democratas), o mercado oferece mais liberdade de escolha e poder de decisão do que o sistema democrático.
É importante, à partida, referir que estaremos a tratar da escolha do indivíduo sob o sistema democrático em si (não o sistema democrático como aplicado num país específico), e que quando nos referimos ao indivíduo como consumidor estaremos a assumir a ausência de intervenção directa no mercado, quer sobre a forma de regulação, subsídio ou proibição.
A mais frequente falácia do discurso democrata é a ideia popular de que «cada voto conta». Esta afirmação é falsa quando aplicada à democracia política, e verdadeira apenas quando aplicada à “democracia do mercado”. No processo democrático, cada indivíduo acima de uma certa idade arbitrariamente determinada pelo Estado pode, de tantos em tantos anos, votar num determinado candidato ou partido para levar a cabo os objectivos políticos que considera úteis ou acertados. Este voto, porém, não garante que o partido ou candidato escolhido por cada indivíduo obtenha o poder necessário para levar a cabo os objectivos políticos importantes para o eleitor individual – pelo contrário, só se o voto de um indivíduo coincidir com os votos da maioria é que a sua escolha tem qualquer importância, é que o seu voto “conta”. Se o indivíduo em questão pertence à minoria, pode apenas resignar-se ao candidato ou partido (e respectivo programa político) escolhido pela maioria. Assim sendo, a vontade, a escolha, o voto individual “não conta”.
No mercado, em contraste, cada voto (cada euro, cada dólar, cada libra) permite uma verdadeira escolha – uma escolha independente das escolhas dos outros membros da sociedade. Ao escolher “votar” com o seu dinheiro num determinado produto ou serviço um indivíduo obtém exactamente aquilo por que pagou (em que “votou”). Como consumidor, um indivíduo não precisa de atingir uma idade arbitrária para participar na “eleição”, nem de esperar um número arbitrário de anos para alterar ou confirmar a sua decisão – no mercado, o “voto” é diário e sempre sujeito a ser revisto.
Outra diferença fundamental entre o indivíduo como consumidor e o indivíduo como eleitor é que, enquanto consumidor, o indivíduo escolhe inequivocamente os produtos ou serviços que mais lhe agradam (ou que espera lhe venham a agradar); ao comprar um produto ou serviço, um indivíduo demonstra a sua preferência, ao voluntariamente trocar um bem que valoriza menos (geralmente, dinheiro) por um bem que valoriza mais (um produto ou serviço). Enquanto eleitor, no entanto, o indivíduo pode apenas escolher representantes da sua vontade, a quem lega todo o poder de escolha final sobre todos os assuntos políticos. Este acto de legar o poder de escolha política poderia, superficialmente, ser visto como um contrato – uma espécie de personal shopper político. A realidade, porém, é diferente. Visto que o voto é secreto, o eleitor não guarda qualquer documento como prova do seu voto num determinado representante com determinados objectivos políticos a serem cumpridos – os termos do contrato. O representante, da sua parte, não tem qualquer forma de saber ao certo que pessoas particulares o elegeram (o “contrataram”), ou com que propósitos, para que tarefas. O representante político é, pois, o equivalente a um médico que não sabe quem são os seus pacientes, que razões os levaram a procurá-lo e para que doença os deve tratar ou aconselhar.
Na “democracia do mercado” o “voto” do indivíduo enquanto consumidor pode ser depositado não só entre vários serviços ou bens, mas entre vários prestadores de serviços e fornecedores de bens. A democracia política, porém, tem apenas um “prestador”: o Estado. Um indivíduo que queira patrocinar outro sistema democrático, outro parlamento, outro sistema judicial, não é livre de o fazer.
David Friedman coloca-o de forma interessante:
«When you elect a politician, you buy nothing but promises. You may know how one politician ran the country for the past four years, but not how his competitor might have run it. You can compare 1968 Fords, Chryslers, and Volkswagens, but nobody will ever be able to compare the Nixon administration of 1968 with the Humphrey and Wallace administrations of the same year. It is as if we had only Fords from 1920 to 1928, Chryslers from 1928 to 1936, and then had to decide what firm would make a better car for the next four years. Perhaps an expert automotive engineer could make an educated guess as to whether Ford had used the technology of 1920 to satisfy the demands of 1920 better than Chrysler had used the technology of 1928 to satisfy the demands of 1928. The rest of us might just as well flip a coin. If you throw in Volkswagen or American Motors, which had not made any cars in America but wanted to, the situation becomes still worse. Each of us would have to know every firm intimately in order to have any reasonable basis for deciding which we preferred.»[3]
Isto traz-me ao meu próximo ponto: o argumento popularizado por Joseph Schumpeter e posteriormente conhecido como “ignorância racional”[4]. Segundo a teoria, é racional para um indivíduo ser ignorante do processo político, apesar da sua potencial importância para a vida de todos os indivíduos sob a jurisdição do Estado. Neste caso, é racional ser ignorante porque o custo de educar-se sobre todos os assuntos pendentes numa eleição é maior do que o prospecto de poder influenciar o resultado. É racional ser ignorante porque, ao contrário do “voto” no mercado, um indivíduo não está a dispor dos seus próprios recursos ao escolher um ou outro candidato, nem é garantido que o seu voto tenha qualquer influência no resultado final.
Ao votar politicamente um indivíduo é obrigado a escolher um pacote de posições políticas sobre as quais se mudar de opinião não pode, respectivamente, alterar o voto; além disso, não tem a opção de “personalizar o pacote” e subscrever selectivamente entre os vários programas. O equivalente a uma tal ausência de escolha no mercado seria algo como ser forçado a escolher conjuntamente um carro, uma escola para os filhos e uma loja de roupa, sendo o conjunto inalterável durante quatro anos. É evidente que, num mercado competitivo, um tal pacote não conseguiria sequer cobrir os seus custos de operação, quanto mais obter lucros – e logo, o incentivo para continuar essa opção seria diminuído, e o incentivo para permitir mais escolha aos consumidores aumentado. No sistema democrático, não existe um tal sistema de incentivos, porque não existe um semelhante sistema de escolha, de preferência demonstrada, de poder de decisão da parte do indivíduo – nem o equivalente sistema de lucros e perdas, que reflectem esse poder de decisão.
Como Ludwig von Mises o colocou:
«The capitalist system of production is an economic democracy in which every penny gives a right to vote. The consumers are the sovereign people. The capitalists, the entrepreneurs, and the farmers are the people’s mandatories. If they do not obey, if they fail to produce, at the lowest possible cost, what the consumers are asking for, they lose their office. Their task is service to the consumer. Profit and loss are the instruments by means of which the consumers keep a tight rein on all business activities»[5].
É certo que no mercado certos indivíduos têm mais votos – mais euros, mais dólares – que outros. Mas num mercado sem intervenção estatal, em que os consumidores “votam” nas empresas e profissionais que servem melhor os seus interesses, a quantidade de “votos” que cada indivíduo tem a cada momento é em si o resultado de uma eleição prévia.
Além disto, todo o voto no mercado corresponde a uma verdadeira escolha consumada no próprio acto. A escolha eleitoral, além de poder não resultar em nada por pertencer à minoria, pode não dar em nada mesmo pertencendo à maioria. As promessas eleitorais não cumpridas não são, como no mercado, cobertas pela lei contra a fraude, nem o voto está sujeito a ser devolvido ou trocado.
Um indivíduo pobre no mercado, ao dispor dos seus parcos recursos, influencia e determina que recursos devem ser utilizados na produção de que produtos ou serviços da mesma forma que um indivíduo rico ao dispor dos seus vastos recursos o faz, trata-se apenas de uma questão de escala, de grau. Na democracia política, um indivíduo pobre nunca poderá passear pelos corredores do poder, influenciar pessoas influentes, ou contribuir determinantemente para campanhas ou programas políticos. Um indivíduo rico, em contraste, pode fazê-lo, e fá-lo.
A liberdade de escolha do indivíduo como eleitor é uma farsa e uma piada quando comparada com a liberdade de escolha do indivíduo como consumidor. Paradoxalmente, ou nem tanto, o avanço e consolidação do sistema democrático tem sucedido em simultâneo com o triunfo do Estado Previdência e do Corporativismo (ou seja: das variantes, respectivamente de esquerda e de direita, do socialismo), e com a destruição do sistema capitalista e, naturalmente, do poder de escolha do indivíduo como consumidor.
Como escreveu o brilhante anarquista americano Lysander Spooner: «A man is none the less a slave because he is allowed to choose a new master once in a term of years.»[6]
Referências:
- Francis Fukuyama, The End of History and the Last Man, 1992. ↩︎
- Como Hans-Hermann Hoppe nota no seu livro Democracy: the God that Failed (2001)«While the redistribution from rich to poor will always play a prominent role, it would be a sociological blunder to assume that it will be the sole or even the predominant form of redistribution. After all, the “permanently” rich and the “permanently” poor are usually rich or poor for a reason. The rich are characteristically bright and industrious, and the poor typically dull, lazy, or both. It is not very likely that dullards, even if they make up a majority will systematically outsmart and enrich themselves at the expense of a minority of bright and energetic individuals. Rather, most redistribution will take place within the group of the “non-poor”, and frequently it will actually be the better-off who succeed in having themselves subsidized by the worse-off.», p. 96-97. ↩︎
- D. Friedman, The Machinery of Freedom, 1973, p. 69 ↩︎
- J. Schumpeter, Capitalism, Socialism and Democracy, 1943, p. 250-251. ↩︎
- L. von Mises, Bureaucracy, 1944, pp. 21–22. ↩︎
- L. Spooner, No Treason: The Constitution of No Authority, 1870, p. 26. ↩︎