[Este ensaio baseia-se num artigo apresentado na reunião nacional da Philadelphia Society, em Abril de 1979, em Chicago. O tema da reunião foi “Conservadorismo e Libertarianismo”.]
O libertarianismo é o credo político que mais cresce na América de hoje. Antes de julgar e avaliar o libertarianismo, é de vital importância descobrir precisamente o que é essa doutrina e, mais particularmente, o que não é. É especialmente importante esclarecer uma série de conceitos errados sobre o libertarianismo que são sustentados pela maioria das pessoas, e particularmente pelos conservadores. Neste ensaio enumerarei e analisarei criticamente os mitos mais comuns que existem sobre o libertarianismo. Quando estes estiverem esclarecidos, as pessoas serão então capazes de discutir o libertarianismo livre de mitos e equívocos, e de lidar com ele como deveria ser, com base nos seus próprios méritos ou deméritos.
Mito n.º 1: Os libertários acreditam que cada indivíduo é um átomo isolado e hermeticamente selado, agindo no vácuo sem influenciar outrem.
Esta é uma acusação comum, mas altamente intrigante. Durante uma vida inteira a ler literatura libertária e liberal clássica, não encontrei um único teórico ou autor que defendesse algo semelhante a esta posição.
A única excepção possível é o fanático Max Stirner, um individualista alemão de meados do século XIX que, no entanto, teve uma influência mínima sobre o libertarianismo no seu tempo e desde então. Além disso, a filosofia explícita de Stirner de “o poder cria o Direito” e o seu repúdio por todos os princípios morais, incluindo os direitos individuais, como “fantasmas imaginários”, dificilmente o qualificam como um libertário em qualquer sentido. Para além de Stirner, porém, não existe nenhuma opinião que se assemelhe, sequer remotamente, a esta acusação habitual.
Os libertários são individualistas metodológicos e políticos, sem dúvida. Acreditam que apenas os indivíduos pensam, valorizam, agem e escolhem. Acreditam que cada indivíduo tem o direito de possuir o seu próprio corpo, livre de interferências coercivas. Mas nenhum individualista nega que as pessoas se influenciam umas às outras a todo o momento nos seus objectivos, valores, actividades e ocupações.
Como F.A. Hayek salientou no seu notável artigo, “The Non Sequitur of the ‘Dependence Effect”, o ataque de John Kenneth Galbraith à economia de livre mercado no seu best-seller “The Affluent Society” baseou-se nesta proposição: a economia pressupõe que cada indivíduo chega à sua escala de valores totalmente por conta própria, sem estar sujeito à influência de mais ninguém. Pelo contrário, como respondeu Hayek, todos sabemos que a maioria das pessoas não origina os seus próprios valores, mas são influenciadas a adoptá-los por outras pessoas1.
Nenhum individualista ou libertário nega que as pessoas se influenciam umas às outras a todo o momento, e certamente não há nada de errado com este processo inevitável. Aquilo a que os libertários se opõem não é à persuasão voluntária, mas à imposição coerciva de valores através do uso da força e do poder policial. Os libertários não se opõem de forma alguma à cooperação e colaboração voluntária entre indivíduos: apenas à pseudo-“cooperação” compulsiva imposta pelo Estado.
Mito n.º 2: Os libertários são libertinos: são hedonistas que anseiam por “estilos de vida alternativos”.
Este mito foi recentemente proposto por Irving Kristol, que identifica a ética libertária com a “hedonista” e afirma que os libertários “adoram o catálogo da Sears Roebuck e todos os ‘estilos de vida alternativos’ que a riqueza capitalista permite ao indivíduo escolher”2.
O facto é que o libertarianismo não é, nem pretende ser, uma teoria moral ou estética completa; é apenas uma teoria política, isto é, o importante subconjunto da teoria moral que trata do papel adequado da violência na vida social.
A teoria política trata do que é próprio ou impróprio para o governo fazer, e o governo distingue-se de todos os outros grupos da sociedade como sendo a instituição da violência organizada. O libertarianismo sustenta que o único papel adequado da violência é defender a pessoa e a propriedade contra a violência, e que qualquer utilização da violência que vá para além desta defesa justa, é em si mesmo agressiva, injusta e criminosa. O libertarianismo, portanto, é uma teoria que afirma que todos devem estar livres de invasões violentas, devem ser livres de fazer o que acharem adequado, excepto invadir a pessoa ou propriedade de outrem. O que uma pessoa faz com a sua vida é vital e importante, mas é simplesmente irrelevante para o libertarianismo.
Não deve surpreender, portanto, que existam libertários que são de facto hedonistas e devotos de estilos de vida alternativos, e que existam também libertários que são firmes adeptos da moralidade “burguesa” convencional ou religiosa. Existem libertinos libertários e existem libertários que se agarram firmemente à disciplina da lei natural ou religiosa. Existem outros libertários que não têm qualquer teoria moral para além do imperativo da não violação de direitos. Isto é porque o libertarianismo per se não tem uma teoria moral pessoal ou geral.
O libertarianismo não oferece um modo de vida; oferece liberdade, para que cada pessoa seja livre para adoptar e agir de acordo com os seus próprios valores e princípios morais. Os libertários concordam com Lord Acton que “a liberdade é o fim político mais elevado” – não necessariamente o fim mais elevado na escala de valores pessoais de todos.
Não há dúvida sobre o facto, contudo, de que o subconjunto de libertários que são economistas de mercado livre tende a ficar fascinado quando o mercado livre leva a uma gama mais ampla de escolhas para os consumidores e, assim, aumenta o seu nível de vida. Inquestionavelmente, a ideia de que a prosperidade é melhor do que a pobreza opressiva é uma proposição moral, e aventura-se no domínio da teoria moral geral, mas ainda não é uma proposição pela qual eu gostaria de pedir desculpa.
Mito n.º 3: Os libertários não acreditam em princípios morais; limitam-se à análise custo-benefício no pressuposto de que o Homem é sempre racional.
Este mito está obviamente relacionado com a acusação anterior de hedonismo, e parte dela pode ser respondida da mesma forma. Há, de facto, libertários, particularmente economistas da Escola de Chicago, que se recusam a acreditar que a liberdade e os direitos individuais são princípios morais e, em vez disso, tentam chegar a políticas públicas avaliando alegados custos e benefícios sociais.
Em primeiro lugar, a maioria dos libertários são “subjectivistas” em economia, isto é, acreditam que as utilidades e os custos dos diferentes indivíduos não podem ser adicionados ou medidos. Por isso, o próprio conceito de custos e benefícios sociais é ilegítimo. Mas, mais importante ainda, a maioria dos libertários baseia a sua posição em princípios morais, na crença nos direitos naturais de cada indivíduo à sua pessoa ou propriedade. Acreditam, por isso, na imoralidade absoluta da violência agressiva, da invasão dos direitos das pessoas e da propriedade, independentemente de qual a pessoa ou grupo que comete tal violência.
Longe de serem imorais, os libertários simplesmente aplicam uma ética humana universal ao governo da mesma forma que quase todos aplicariam tal ética a qualquer outra pessoa ou instituição na sociedade. Em particular, como já observei anteriormente, o libertarianismo como filosofia política que lida com o papel adequado da violência toma a ética universal que a maioria de nós defende em relação à violência e aplica-a destemidamente ao governo.
Os libertários não abrem excepções à regra de ouro e não proporcionam nenhuma excepção moral, nenhum duplo critério, para o governo. Ou seja, os libertários acreditam que o homicídio é homicídio e não se torna santificado por razões de Estado se cometido pelo governo. Acreditamos que o roubo é roubo e não se torna legitimado porque os ladrões organizados chamam ao seu roubo “imposto”. Acreditamos que escravização é escravização, mesmo que a instituição que comete este acto lhe chame “recrutamento militar”. Em suma, a chave da teoria libertária é que não abre excepções para o governo na sua ética universal.
Portanto, longe de serem indiferentes ou hostis aos princípios morais, os libertários cumprem-nos, sendo o único grupo disposto a alargar esses princípios a todos os níveis, incluindo o próprio governo3.
É certo que os libertários permitiriam que cada indivíduo escolhesse os seus valores e que agisse de acordo com eles e, em geral, admitiriam a cada pessoa o direito de ser moral ou imoral como bem entendesse. O libertarianismo opõe-se fortemente à aplicação de qualquer credo moral a qualquer pessoa ou grupo através do uso da violência – excepto, claro, a proibição moral contra a própria violência agressiva. Mas devemos compreender que nenhuma acção pode ser considerada virtuosa a não ser que seja empreendida livremente, através do consentimento voluntário de uma pessoa.
Como Frank Meyer salientou,
Os homens não podem ser obrigados a ser livres, nem sequer podem ser obrigados a ser virtuosos. Até certo ponto, é certo, podem ser obrigados a agir como se fossem virtuosos. Mas a virtude é fruto da liberdade bem empregada. E nenhum acto na medida em que seja coagido pode ser participe da virtude – ou do vício4.
Se uma pessoa é forçada pela violência ou pela ameaça da mesma a realizar uma determinada acção, então já não pode ser uma escolha moral da sua parte. A moralidade de uma acção só pode resultar da sua livre adopção; uma acção dificilmente pode ser apelidada de moral se alguém for obrigado a realizá-la sob a mira de uma arma.
Por isso, não se pode dizer que obrigar a acções morais ou proibir acções imorais promova a difusão da moralidade ou da virtude. Pelo contrário, a coerção atrofia a moralidade, pois retira ao indivíduo a liberdade de ser moral ou imoral e, por isso, priva forçosamente as pessoas da oportunidade de serem morais. Paradoxalmente, pois, uma moral compulsiva rouba-nos a própria oportunidade de sermos morais.
Além disso, é particularmente grotesco colocar a tutela da moralidade nas mãos do aparelho de Estado – isto é, nada mais, nada menos do que a organização de polícias, guardas e soldados. Colocar o Estado no comando dos princípios morais equivale a colocar a proverbial raposa encarregue do galinheiro.
Independentemente do que possamos dizer sobre eles, os detentores da violência organizada na sociedade nunca se distinguiram pelo seu elevado tom moral ou pela precisão com que defendem os princípios morais.
Mito n.º 4: O libertarianismo é ateu e materialista e negligencia o lado espiritual da vida.
Não há qualquer ligação necessária entre ser a favor ou contra o libertarianismo e a posição de alguém em relação à religião. É certo que muitos, senão a maioria, dos libertários da actualidade são ateus, mas isto está correlacionado com o facto de a maioria dos intelectuais, da maioria das tendências políticas, serem também ateus.
Existem muitos libertários que são teístas, Judeus ou Cristãos. Entre os antepassados liberais clássicos do libertarianismo moderno numa era mais religiosa, havia uma miríade de cristãos: desde John Lilburne, Roger Williams, Anne Hutchinson e John Locke no século XVII, até Cobden e Bright, Frédéric Bastiat e os franceses liberais laissez- faire e o grande Lord Acton.
Os libertários acreditam que a liberdade é um direito natural incorporado numa lei natural do que é próprio da humanidade, de acordo com a natureza humana. De onde vem este conjunto de leis naturais, se é puramente natural ou originado por um criador, é uma questão ontológica importante, mas é irrelevante para a filosofia social ou política.
Como afirma o Padre Thomas Davitt,
Se a palavra “natural” significa alguma coisa, refere-se à natureza do homem, e quando se usa com “lei”, “natural” deve referir-se a uma ordem que se manifesta nas inclinações da natureza humana e a nada mais. Portanto, tomada em si mesma, não há nada de religioso ou de teológico na “Lei Natural” de Tomás de Aquino5.
Ou, como escreve D’Entrèves, a propósito do jurista protestante holandês do século XVII, Hugo Grócio,
A definição [de Grócio] de lei natural não tem nada de revolucionário. Quando ele sustenta que a lei natural é aquele corpo de regras que o homem é capaz de descobrir pelo uso da sua razão, ele nada mais faz do que reafirmar a noção escolástica de um fundamento racional da ética. Na verdade, o seu objectivo é antes o de repor aquela noção que foi abalada pelo extremo Agostinianismo de certas correntes de pensamento protestantes. Quando declara que estas regras são válidas em si mesma, independentemente do facto de Deus as ter querido, repete uma afirmação que já tinha sido feita por alguns dos escolásticos6.
O libertarianismo tem sido acusado de ignorar a natureza espiritual do homem. Mas pode-se facilmente chegar ao libertarianismo a partir de uma posição religiosa ou Cristã: enfatizando a importância do indivíduo, do seu livre arbítrio, dos direitos naturais e da propriedade privada. No entanto, também se pode chegar a todas estas mesmas posições através de uma abordagem secular, baseada na lei natural, através da crença de que o homem pode chegar a uma compreensão racional da lei natural.
Além disso, historicamente, não é de todo claro que a religião seja uma base mais sólida do que a lei natural secular para conclusões libertárias. Como nos recordou Karl Wittfogel no seu “Oriental Despotism“, a união do trono e do altar tem sido utilizada desde há séculos para fixar um reinado de despotismo na sociedade7.
Historicamente, a união entre a Igreja e o Estado tem sido, em muitos casos, uma coligação em prol da tirania que se reforça mutuamente. O Estado usou a Igreja para santificar e pregar a obediência às suas regras, supostamente sancionadas por Deus; a Igreja usou o Estado para obter rendimentos e privilégios.
Os Anabaptistas colectivizaram e tiranizaram Münster em nome da religião Cristã8.
E, mais próximo do nosso século, o socialismo cristão e o evangelho social têm desempenhado um papel importante no impulso para o estatismo, e o papel apologético da Igreja Ortodoxa na Rússia Soviética tem sido demasiado claro. Alguns bispos católicos da América Latina chegaram a proclamar que o único caminho para o reino dos céus é através do Marxismo, e se eu quisesse ser desagradável, poderia salientar que o reverendo Jim Jones, além de ser leninista, também se proclamou a reencarnação de Jesus.
Além disso, agora que o socialismo falhou manifestamente, política e economicamente, os socialistas recorreram ao “moral” e ao “espiritual” como argumento final para a sua causa. O socialista Robert Heilbroner, ao defender que o socialismo terá de ser coercivo e terá de impor uma “moralidade colectiva” ao público, opina que: “A cultura burguesa está centrada na realização material do indivíduo. A cultura socialista deve concentrar-se na sua realização moral ou espiritual.”
O ponto intrigante é que esta posição de Heilbroner foi saudada pelo escritor religioso conservador da National Review, Dale Vree, que escreve:
Heilbroner está … a dizer o que muitos colaboradores da NR têm dito ao longo do último quarto de século: não se pode ter liberdade e virtude ao mesmo tempo. Tomem nota, tradicionalistas. Apesar da sua terminologia dissonante, Heilbroner está interessado no mesmo que vocês: a virtude9.
Vree também está fascinado com a visão de Heilbroner de que uma cultura socialista deve “promover a primazia da colectividade” em vez da “primazia do indivíduo”. Cita o contraste entre as realizações “morais ou espirituais” de Heilbroner sob o socialismo e as realizações “materiais” burguesas, e acrescenta correctamente: “Há um tom tradicional nesta afirmação.”
Vree prossegue aplaudindo o ataque de Heilbroner ao capitalismo porque este “não tem noção do ‘bom’” e permite que os “adultos que consentem” façam o que bem entendem. Em contraste com esta imagem de liberdade e diversidade permitida, Vree escreve que “Heilbroner diz de forma sedutora, porque uma sociedade socialista deve ter um sentido do ‘bom’, nem tudo deverá ser permitido”. Para Vree, é impossível “ter colectivismo económico juntamente com individualismo cultural”, e por isso inclina-se para um novo “fusionismo socialista-tradicionalista” – para o colectivismo em todos os sentidos.
Podemos notar aqui que o socialismo se torna especialmente despótico quando substitui os incentivos “económicos” ou “materiais” por incentivos alegadamente “morais” ou “espirituais”, quando afecta a promoção de uma “qualidade de vida” indefinível em vez da prosperidade económica.
Quando o pagamento é ajustado à produtividade, há consideravelmente mais liberdade, assim como níveis de vida mais elevados. Pois quando a confiança é depositada apenas na devoção altruísta à pátria socialista, a devoção tem de ser regularmente reforçada pelo chicote. Uma ênfase crescente no incentivo material individual significa inelutavelmente uma maior ênfase na propriedade privada e na preservação daquilo que se ganha, e traz consigo consideravelmente mais liberdade pessoal, como testemunha a Jugoslávia nas suas últimas três décadas, em contraste com a Rússia Soviética.
O despotismo mais terrível à face da terra nos últimos anos foi, sem dúvida, o Cambodja de Pol Pot, onde o “materialismo” foi de tal forma destruído que o dinheiro foi abolido pelo regime. Com a abolição do dinheiro e da propriedade privada, cada indivíduo ficou totalmente dependente de doações de subsistência racionada do Estado, e a vida tornou-se um verdadeiro inferno. Devemos ter cuidado antes de desdenharmos de objectivos ou incentivos “meramente materiais”.
A acusação de “materialismo” dirigida contra o livre mercado ignora o facto de que toda a acção humana envolve a transformação de objectos materiais através da utilização da energia humana e de acordo com as ideias e propósitos defendidos pelos actores. É inadmissível separar o “mental” ou “espiritual” do “material”.
Todas as grandes obras de arte, grandes emanações do espírito humano, tiveram de empregar objectos materiais: quer sejam telas, pincéis e tintas, papel e instrumentos musicais, quer sejam tijolos e matérias-primas para igrejas. Não existe uma verdadeira ruptura entre o “espiritual” e o “material” e, por isso, qualquer despotismo que afecta o material irá afectar também o espiritual.
Mito n.º 5: Os libertários são utópicos que acreditam que todas as pessoas são boas e que, por isso, o controlo estatal não é necessário.
Os conservadores tendem a acrescentar que, uma vez que a natureza humana é parcial ou totalmente má, é necessária uma forte regulação estatal para a sociedade.
Esta é uma crença muito comum acerca dos libertários, mas é difícil saber a origem deste equívoco. Rousseau, o locus classicus da ideia de que o homem é bom, mas é corrompido pelas suas instituições, dificilmente foi um libertário. Para além dos escritos românticos de alguns anarco-comunistas, que eu não consideraria libertários de qualquer forma, não conheço nenhum autor libertário ou liberal clássico que tenha defendido esta visão.
Pelo contrário, a maioria dos autores libertários sustenta que o homem é uma mistura entre o bem e o mal e, por isso, é importante que as instituições sociais encorajem o bem e desencorajem o mal. O Estado é a única instituição social capaz de extrair o rendimento e a riqueza através da coerção; todos os outros obtêm receitas vendendo produtos ou serviços aos clientes ou recebendo doações voluntárias. E o Estado é a única instituição que pode utilizar as receitas deste roubo organizado para presumir controlar e regular a vida e a propriedade das pessoas. Assim, a instituição do Estado estabelece um canal socialmente legitimado e santificado para que as pessoas más façam coisas más, cometam roubos regularizados e exerçam o poder ditatorial.
O estatismo encoraja, portanto, o que é mau, ou pelo menos os elementos criminosos da natureza humana. Como disse incisivamente Frank H. Knight,
A probabilidade de as pessoas no poder serem indivíduos que não gostariam da posse e do exercício do poder está ao mesmo nível da probabilidade de uma pessoa extremamente compassiva conseguir o emprego de capataz numa plantação de escravos10.
Uma sociedade livre, ao não estabelecer um canal tão legítimo para o roubo e a tirania, desencoraja as tendências criminosas da natureza humana e encoraja o que é pacífico e o que é voluntário. A liberdade e o livre mercado desencorajam a agressão e a compulsão e encorajam a harmonia e o benefício mútuo dos intercâmbios interpessoais voluntários, económicos, sociais e culturais.
Dado que um sistema de liberdade encorajaria o voluntário e desencorajaria o criminoso, e eliminaria o único canal legítimo para o crime e a agressão, poderíamos esperar que uma sociedade livre sofresse de facto menos com crimes violentos e agressões do que sofremos agora, embora não exista qualquer garantia para presumir que desapareceriam completamente. Não se trata de utopia, mas de uma implicação de senso comum da mudança no que é considerado socialmente legítimo e na estrutura de recompensas e penalizações na sociedade.
Podemos abordar a nossa tese de outro ângulo. Se todos os homens fossem bons e nenhum tivesse tendências criminosas, então não haveria de facto necessidade de um Estado, como admitem os conservadores. Mas se, por outro lado, todos os homens fossem maus, então a defesa do Estado é igualmente duvidosa, pois por que razão se deveria assumir que aqueles homens que formam o governo e obtêm todas as armas e todo o poder para coagir os outros, deveriam estar magicamente isentos da maldade que todos os outros possuem e que não formam o governo?
Tom Paine, um libertário clássico muitas vezes considerado ingenuamente optimista em relação à natureza humana, refutou o argumento conservador de que a natureza humana é má em favor de um Estado forte, da seguinte forma: “Se toda a natureza humana for corrupta, é desnecessário fortalecer a corrupção ao estabelecer uma sucessão de reis, que seriam sempre vis, ainda que mesmo assim devem ser obedecidos…” Paine acrescentou que “NENHUM homem, desde a queda, jamais foi fiel à confiança depositada nele para poder estar sobre todos”11.
Como o libertário F.A. Harper escreveu:
Utilizando ainda o mesmo princípio de que o governo político deveria ser empregue na medida em que existe o mal no homem, teríamos então uma sociedade na qual seria necessário um governo político completo de todos os assuntos de todos os homens… Um homem governaria tudo. Mas quem seria o ditador? Independentemente da forma como fosse escolhido e colocado no trono político, seria certamente uma pessoa totalmente má, uma vez que todos os homens são maus. E esta sociedade seria então governada por um ditador totalmente mau e possuidor de total poder político. E como poderia, em nome da lógica, algo que não fosse o mal total ser a sua consequência? Como poderia ser melhor do que não haver qualquer governo político nesta sociedade?12
Finalmente, como vimos, o homem é uma mescla entre o bem e o mal, e um regime de liberdade serve para encorajar o bem e desencorajar o mal, pelo menos no sentido de que o que é voluntário e mutuamente benéfico é bom e o que é criminoso é mau. Assim, em nenhuma teoria da natureza humana, seja ela boa ou má ou uma mistura de ambas, o estatismo pode ser justificado.
Ao negar a noção de que é um conservador, o liberal clássico F.A. Hayek salientou,
O principal mérito do individualismo [que Adam Smith e os seus contemporâneos defenderam] é que é um sistema sob o qual os homens maus podem causar menos danos. É um sistema social que, para o seu funcionamento, não depende de encontrarmos bons homens para dirigi-lo, ou em que todos os homens se tornem melhores do que são agora, mas que faz uso dos homens em toda a sua variedade e complexidade13.
É importante notar o que diferencia os libertários dos utópicos no sentido pejorativo. O libertarianismo não se propõe remodelar a natureza humana. Um dos principais objectivos do socialismo é criar, o que na prática significa utilizar métodos totalitários, um Novo Homem Socialista, um indivíduo cujo principal objectivo será trabalhar diligente e altruisticamente para o colectivo.
O libertarianismo é uma filosofia política que diz que dada qualquer natureza humana existente, a liberdade é o único sistema político moral e mais eficaz.
Obviamente, o libertarianismo – tal como qualquer outro sistema social – funcionará melhor quanto mais indivíduos sejam pacíficos e quanto menos sejam criminosos ou agressivos. E os libertários, juntamente com a maioria das outras pessoas, gostariam de alcançar um mundo onde mais indivíduos sejam “bons” e menos sejam criminosos. Mas esta não é a doutrina do libertarianismo per se, que diz que qualquer que seja a mistura da natureza humana num determinado momento, a liberdade é o melhor.
Mito n.º 6: Os libertários acreditam que cada pessoa conhece melhor os seus próprios interesses.
Tal como a acusação anterior sustenta que os libertários acreditam que todos os homens são perfeitamente bons, também este mito os acusa de acreditarem que todos os homens são perfeitamente sábios. No entanto, também se afirma que isto não é verdade para muitas pessoas e, por isso, o Estado deve intervir.
Mas o libertário não assume a sabedoria perfeita, tal como não postula a bondade perfeita. Existe um certo sentido comum em afirmar que a maioria dos homens conhece melhor as suas próprias necessidades e objectivos do que qualquer outra pessoa. Mas não se supõe que todos saibam sempre qual é o seu melhor interesse. O libertarianismo afirma antes que todos devem ter o direito a perseguir os seus próprios interesses como acharem melhor. O que se está a afirmar é o direito de agir com a própria pessoa e propriedade, e não a necessária sabedoria de tal acção.
Contudo, também é verdade que o livre mercado – em contraste com o governo – tem mecanismos incorporados que permitem às pessoas recorrer livremente a especialistas que podem dar conselhos sólidos sobre a melhor forma de defender os seus interesses. Como vimos anteriormente, os indivíduos livres não estão hermeticamente fechados uns relativamente aos outros. Pois no livre mercado, qualquer indivíduo, em caso de dúvida sobre quais podem ser os seus verdadeiros interesses, é livre de contratar ou consultar especialistas para lhe dar conselhos com base no seu conhecimento possivelmente superior. O indivíduo pode contratar tais especialistas e, no livre mercado, pode testar continuamente a sua solidez e utilidade.
Os indivíduos no mercado tendem, portanto, a patrocinar os especialistas cujos conselhos serão mais bem-sucedidos. Os bons médicos, advogados ou arquitectos colherão frutos no mercado livre, enquanto que os maus especialistas tenderão a ter maus resultados. Mas quando o governo intervém, o perito governamental obtém as suas receitas através de uma imposição obrigatória aos contribuintes. Não existe nenhum teste de mercado sobre o seu sucesso em aconselhar as pessoas sobre os seus verdadeiros interesses. Ele só precisa de ter capacidade para adquirir o apoio político da máquina de coerção do Estado.
Assim, o perito contratado a título privado prosperar proporcionalmente à sua capacidade, enquanto que o perito governamental prosperará proporcionalmente ao seu sucesso na obtenção de favores políticos. Além disso, o perito governamental não será mais virtuoso do que o perito privado; a sua única superioridade será a de obter o favor daqueles que exercem a força política. Mas uma diferença crucial entre os dois é que o perito contratado a título privado tem todos os incentivos pecuniários para se preocupar com os seus clientes ou pacientes e para fazer o melhor por eles. Mas o especialista governamental não tem esse incentivo; obtém os seus rendimentos em qualquer caso. Consequentemente, o consumidor individual tenderá a sair-se melhor no livre mercado.
Conclusão
Espero que este ensaio tenha contribuído para limpar o lastro de mitos e de equívocos sobre o libertarianismo. Os conservadores e todos os outros deveriam ser educadamente informados de que os libertários não acreditam que todos sejam bons, nem que todos sejam especialistas nos seus próprios interesses, nem que cada indivíduo seja um átomo isolado e hermeticamente fechado. Os libertários não são necessariamente libertinos ou hedonistas, nem são necessariamente ateus; e os libertários acreditam enfaticamente em princípios morais.
Deixemos agora cada um de nós examinar o libertarianismo tal como ele realmente é, livre de mitos ou lendas. Olhemos para a liberdade com clareza, sem medo ou favor. Estou confiante de que, se isto fosse feito, o libertarianismo desfrutaria de um aumento impressionante no número dos seus seguidores.
- John Kenneth Galbraith, The Affluent Society (Boston: Houghton Mifflin, 1958); F.A. Hayek, “The Non-Sequitur of the ‘Dependence Effect,’” Southern Economic Journal (April, 1961), pp. 346–48. ↩︎
- Irving Kristol, “No Cheers for the Profit Motive”, Wall Street Journal (Feb. 21, 1979). ↩︎
- Para um apelo à aplicação de normas éticas universais ao governo, ver Pitirim A. Sorokin and Walter A. Lunden, Power and Morality: Who Shall Guard the Guardians? (Boston: Porter Sargent, 1959), pp. 16–30. ↩︎
- Frank S. Meyer, In Defense of Freedom: A Conservative Credo (Chicago: Henry Regnery, 1962), p. 66. ↩︎
- Thomas E. Davitt, S.J., “St. Thomas Aquinas and the Natural Law,” in Arthur L. Harding, ed., Origins of the Natural Law Tradition (Dallas, Tex.: Southern Methodist University Press, 1954), p. 39. ↩︎
- A.P. d’Entrèves, Natural Law (London: Hutchinson University Library, 1951). pp. 51–52. ↩︎
- Karl Wittfogel, Oriental Despotism (New Haven: Yale University Press, 1957), esp. pp. 87–100. ↩︎
- Sobre esta e outras seitas cristãs totalitárias, ver Norman Cohn, Pursuit of the Millennium (Fairlawn, N.J.: Essential Books, 1957). ↩︎
- Dale Vree, “Against Socialist Fusionism,” National Review (December 8, 1978), p. 1547. O artigo de Heilbroner foi publicado em Dissent, Verão de 1978. Para saber mais sobre o artigo de Vree, ver Murray N. Rothbard, “Statism, Left, Right, and Center,” Libertarian Review (January 1979), pp. 14–15. ↩︎
- Journal of Political Economy (December 1938), p. 869. Citado em Friedrich A. Hayek, The Road to Serfdom (Chicago: University of Chicago Press, 1944), p. 152. ↩︎
- “The Forester’s Letters, III” (orig. in Pennsylvania Journal, Apr. 24, 1776), in The Writings of Thomas Paine (ed. M. D. Conway, New York: G. E Putnam’s Sons, 1906), I, 149–150. ↩︎
- F.A. Harper, “Try This On Your Friends,” Faith and Freedom (January, 1955). p. 19. ↩︎
- F.A. Hayek, Individualism and Economic Order (Chicago: University of Chicago Press, 1948), reforçado no decurso do seu “Why I am Not a Conservative,” The Constitution of Liberty (Chicago: University of Chicago Press, 1960), p. 529. ↩︎