Não é surpreendente que eu não tenha quaisquer discórdias com a crítica que Gerard Radnitzky faz ao estado ou a sua à sua simpatia pela ideia de uma “anarquia ordenada”. De facto, expressei ideias e sentimentos semelhantes e temos sido desde há muitos anos aliados e combatentes intelectuais.
Pondo de parte este facto, a minha crítica a Radnitzky é de natureza capital. A sua crítica ao estado não é suficientemente radical, e a sua “ética deôntica” que propõe não é uma ética mas sim um utilitarismo que ele correctamente rejeita1. Radnitzky chega perto da verdade, mas esta escapa-lhe em última análise, pois como devoto Popperiano, este é cego à possibilidade da necessidade da existência de uma verdade empírica – não hipotética, apriorística – e às “leis naturais”.
Este não é o lugar para disputas epistemológicas fundamentais. Contudo, partindo da tese essencial de Radnitzky, quero exemplificar pelo menos a existência de verdades empíricas necessárias e de leis naturais universalmente válidas e de esclarecer a sua importância na elucidação nas questões abordadas por Radnitzky.
A tese básica de Radnitzky é esta: “Se as pessoas em conjunto querem viver em paz, então a produção de uma decisão colectiva não pode ser evitada. Uso o termo produção de uma decisão colectiva para decisões não unânimes. A produção de uma decisão colectiva constitui o pecado original: como os interesses dos indivíduos não podem ser idênticos, algo é forçado ao grupo. É este o problema moral da política como tal.”
Esta proposição ou é falsa ou está incompleta. Contrariamente à asserção de Radnitzky, não é difícil imaginar uma cooperação humana pacífica sem qualquer produção de decisão colectiva. De facto, não será a “anarquia ordenada” a própria ideia dessa ordem social?
Em primeiro lugar, é necessário realçar que a partir da diversidade dos interesses individuais tal não se traduz na necessidade de conflito. São exigidas mais duas condições. Eu quero que chova, e o meu vizinho quer sol. Os nossos interesses são contrários. No entanto, nenhum dos dois controla o sol ou as nuvens. Assim, os nossos interesses contrários não têm quaisquer consequências. Os interesses contrários apenas se tornam um problema prático, quando os interesses em questão são sobre objectos controláveis ou sobre o controlo em si, ou seja, os bens económicos ou os meios de acção.
E ainda mais, não existirá conflito sobre interesses divergentes relativamente aos bens económicos desde que esses interesses em questão sejam sobre bens diferentes, i.e., fisicamente separados. O conflito surge apenas se houver interesses divergentes sobre os mesmos bens. E a existirem interesses divergentes a incidirem directamente sobre o mesmo stock de bens, a escassez deverá existir. Sem escassez, não há possibilidade de conflito.
Contudo, até mesmo sob condições de escassez, o conflito não é “inevitável”. Pelo contrário, o conflito pode ser evitado, apenas se todos os bens forem todos privadamente possuídos por indivíduos específicos, e ser sempre reconhecível tudo aquilo a quem pertence e a quem não pertence. Os interesses dos diferentes indivíduos podem ser tão divergentes o mais possível, e no entanto não surgirá qualquer conflito, na medida em que estes interesses em questão têm exclusivamente a ver com a sua própria propriedade.
Para mais, para se evitar o conflito logo desde o princípio, é apenas necessário que a propriedade privada seja fundada através de actos de apropriação original – (homesteading) através de acções em vez de meras palavras. O apropriador de um bem anteriormente não utilizado torna-se o seu primeiro apropriador (sem conflito, pois este é o primeiro apropriador). E toda a propriedade vem detrás, directa ou indirectamente, através de uma cadeia de transferências mutuamente benéficas e assim livres de conflito dos apropriadores originais e dos actos de apropriação.
Assim, a resposta à questão: “ Poderão os indivíduos com interesses divergentes coexistir pacificamente sob condições de escassez?” será: sim, através do reconhecimento da instituição da propriedade privada e a sua fundação directa ou indirecta através de actos de apropriação original.
E, mais, esta resposta é apodicticamente, i.e., não hipoteticamente, verdadeira, embora seja relativa a uma questão empírica. Apenas a propriedade privada nos pode ajudar a evitar – sob condições de escassez – o conflito inevitável. E é apenas o princípio de aquisição de propriedade através de meios de apropriação original ou de transferências mutuamente benéficas de um proprietário para outro que torna possível que o conflito possa ser evitado durante todo o tempo – desde o princípio da humanidade até ao fim. Não existe qualquer outra solução. Qualquer outra disposição é contrária à natureza do homem como actor racional.
Nos antecedentes destas explicações relativas à ideia de uma anarquia ordenada de uma sociedade sem a produção de uma decisão colectiva surgem-nos alguns comentários.
Radnitzky refere-se à instituição da propriedade privada e ao estabelecimento da propriedade privada através de meios de apropriação original como uma “convenção”. Isto ou é um equívoco ou é falso. Uma convenção serve um objectivo, e é algo a que existe uma alternativa. Por exemplo, o alfabeto Latino serve o objectivo da comunicação escrita. Existe de facto uma alternativa a este, o alfabeto Cirílico. É por isto que nos referimos a este como uma convenção. Qual é o objectivo de acção-normas? Evitar o possível conflito! As normas geradoras de conflitos são contrárias ao próprio objectivo das normas. Relativamente ao objectivo de se evitar conflitos, contudo, as duas instituições mencionadas não são apenas convencionais. Não existe alternativa a estas.
E ainda, Radnitzky afirma, que a propriedade não é uma pré condição de contrato, mas pode também ser um resultado do contrato. “Dois Robinsons podem concordar como dividir a ilha”. Esta proposição é também equívoca ou errada. É evidente que a propriedade é a pré condição do contrato, e o acordo de Radnitzky dos Robinsons não constitui nem um contrato nem leva à fundação da propriedade.
Por outro lado, um contrato exige pelo menos duas partes contratantes, e ambas as partes devem ser donas de si mesmas e serem independentes de modo a se poder falar de acordo entre elas. Por outro lado, os contratos referem-se à transferência de propriedade. Sem proprietários e propriedade não pode existir contrato.
Radnitzky confunde contratos com meras promessas ou participações. O número de pessoas no seu exemplo dos Robinsons não é desta forma importante. De facto, o que Radnitzky assegura é que a propriedade sobre bens não apropriados pode ser estabelecida através de uma mera declaração. Tal como os dois Robinsons se podem tornar, presumivelmente, co-proprietários da ilha através de uma declaração, também um dos Robinsons pode ser o dono de toda a ilha apenas por o afirmar. No entanto, se a propriedade pode ser adquirida através de meios de declaração (em vez de actos de apropriação ou transferência ), os conflitos não serão evitados mas serão de facto tornados inevitáveis. Radnitzky não toma em linha de conta isto, pois assume a harmonia de interesses entre os dois Robinsons e assim este problema não é concebido. Mas o que será que irá acontecer se a propriedade possa a vir ser estabelecida através de declaração, como Radnitzky alega, sempre que duas pessoas façam prenúncios diferentes?
Finalmente, surgem preocupações sobre a definição de Radnitzky de “coerção” e de “estado”. “Coerção como tal é objectável prima facie e assim exige uma justificação: o onus probandi está sempre sobre quem exerce ou ameace exercer coerção”. Mas contudo como se poderá determinar definitivamente quem exerce coerção e quem apenas se defende contra o exercício da coerção, sem em primeiro lugar se poder determinar quem é o dono do quê? A definição de propriedade deve preceder a de coerção.
E do estado, para mais, definido como “a derradeira autoridade sobre a qual, num dado território, não existe recurso para uma autoridade superior”, Radnitzky afirma, “que a coerção não é uma característica implícita na sua definição. Se (per impossibile) a teoria de contrato fosse uma teoria defensável, então a instituição não seria coerciva e seria assim chamada de estado.” Certamente que somos livres nas nossas definições, mas nem todas as definições são produtivas.
De acordo com a definição de Radnitzky, por exemplo, o fundador-proprietário de uma colónia – uma comunidade fechada – teria que ser considerada um estado, pois este decide sobre as candidaturas (a inclusão e a exclusão) e é a derradeira autoridade sobre todos os conflitos coloniais. No entanto, o fundador da comunidade não passa impostos, mas cobra taxas, contribuições dos seus colonos súbditos. E ele não passa leis, (legisla), relativamente à propriedade alheia, mas todas as resoluções de propriedade colonial é desde o início sujeita à sua derradeira jurisdição.
Igualmente, é concebível de que todos donos de terras privados num dado território, transfiram a sua terra para uma e a mesma pessoa, por exemplo, de forma a estabelecer a autoridade derradeira que, de acordo com Hobbes, é necessária para a paz. Desta forma, estes descem da posição de proprietário para uma de inquilino. Radnitzky também designaria esse termo como um proprietário, estabelecido desta forma, um estado. Mas porquê? É contrária à terminologia habitual e torna-se confusa.
E para com que objectivo, de designar algo inteiramente diferente com o mesmo nome: nomeadamente, uma instituição, que retira a sua posição como autoridade derradeira nem de um acto de apropriação original nem de uma transferência de terras por parte dos apropriadores originais? É esta diferença no génesis da instituição, que nos permite falar de impostos e tributos (coercivos) e de leis e legislação em vez de rendas voluntariamente pagas e padrões comunitários e regras civis aceites. Porque não, de acordo com o discurso comum, reservar o termo de estado exclusivamente para a primeira instituição (compulsória)?
Contudo, relativamente a este estado (compulsório), então isto deve ficar ressalvado: que este instituição é ainda assim injusta, mesmo que (per impossível) repousasse sobre um acordo unânime. O consenso não garante a verdade. Um acordo-estado é inválido, pois contradiz a natureza das coisas. A um qualquer dado momento do tempo, (e ausente qualquer harmonia pré estabilizada), um bem escasso pode ter apenas um dono. Caso contrário, contrariamente ao próprio objectivo das normas, o conflito é gerado em vez de evitado.
E no entanto, a propriedade múltipla relativamente a um mesmo stock de bens é precisamente aquilo implícito num acordo-estado. As partes concordantes não transferiram toda a sua terra ao estado mas consideram-se a si mesmos como proprietários agrícolas livres (e não arrendatários). E no entanto nomeiam o estado como o supremo decisor relativamente a todos os conflitos territoriais e fazem-no desta forma o dono de toda a terra. O preço que deve ser pago por este acordo “injusto” – contrário à natureza das coisas – é o conflito permanente.
O conflito é possível mas não é inevitável. Contudo, é um absurdo considerar a instituição do estado como uma solução do problema do possível conflito, pois é a instituição do estado que faz, logo desde o início, o conflito inevitável e permanente.
- Radnitzky essencialmente admite isto, quando caracteriza a ética deôntica, por um lado, como algo que é aceite “sem consideração pelas consequências associadas ao indivíduo”, e por outro, deseja distinguir a sua ética de eleição como uma cujas proscrições ou proibições são “razoáveis” e “pouco exigentes”. No entanto, o que é o recurso à razoabilidade, não-exigência ou pouca-exigência, se não um recurso à natureza humana? ↩︎